"O amor com seus contrários se acrescenta"
e sempre foste minha, ainda quando a cor e a forma tua se fundiam com outra forma e cor que tu não tinhas. Por isto é que te falo de umas coisas que não lembras nem nunca lembrarias de tais coisas entre mim e ti ainda quando tu não me sabias e dividida em outras te mostravas e assim dispersa me ouvias. Tu sempre foste uma ainda quando o corpo teu com outro corpo a sós se punha, pois o que me tinhas a dar a outro nunca o deste e nunca o doarias. Por isto é que te sinto com tanta intimidade e te possuo com tanta singeleza desde quando recém vinda ostentavas nos teus olhos grande espanto de quem não compreendia a antiguidade desse amor que em mim fluía. Fragmento 2
é quando com teu corpo eu me confundo, não apenas nesta mistura de massa e forma, mas quando na tua alma eu me introduzo e sinto que meu sangue corre em ti, e tudo que é teu corpo não é que um corpo meu que se alongou de mim. Eu sei quando te amo: é quando eu te apalpo e não te sinto, e sinto que a mim mesmo então me abraço, a mim que amo e sou um duplo, eu mesmo e o corpo teu pulsando em mim. Fragmento 3
que eu te possua é tão natural que tu me tenhas, que eu não me compreendo um tempo houvesse em que eu não te possuísse ou possa haver um outro em que eu não te tomaria. Venhas como venhas, é tão natural que a vida em nossos corpos se conflua, que eu já não me consinto que de mim tu te abstenhas ou que meu corpo te recuse venhas quando venhas. E de ser tão natural que eu me extasie ao contemplar-te, e de ser tão natural que eu te possua, em mim já não há como extasiar-me tanto a minha forma se integrou na forma tua. Fragmento 4
tu o não soubeste e nunca o saberias. Sozinho a sós contigo em mim mesmo eu te criava, em mim te possuía De onde vinhas nessas horas em que inteira eu te envolvia, nem eu mesmo o sei e nunca o saberias Contudo, em paz eu recebia o carinho, compungindo o recebia, tranqüilo em meu silêncio e tão tranqüilo e tão sozinho que calmamente eu consentia: - que ainda que muito me tardasse mais ainda, um outro tanto, eu sempre esperaria. Fragmento 5
tanto mais eu me absorvo e me extasio Como te explicar o que em teu corpo eu sinto, o que em teus olhos vejo, quando nua nos meus braços no meus olhos nua, de novo eu te procuro e no teu corpo vou-me achar? Como te explicar se em teu corpo eu me eternizo e de onde e como sendo eu pequeno e frágil pelo amor me dualizo? Tanto mais eu te possuo tanto mais te tornas bela, tanto mais me torno eu puro. E à força de tanto contemplar-te e de querer-te tanto, já pressinto que em mim mesmo eu não me tenho, mas de meu ser, ora vazio, pouco a pouco fui mudando para o teu ser de graça cheio. Fragmento 6
e eu pressinto que me partes, e partindo, em ti me vai levando, como eu que fico e em mim vou te criando. Tanto mais tu me despedes e te alongas, tanto mais em mim vou te buscando e me alongando, tanto mais em mim vou te compondo e com a lembrança de teu ser me conformando. Estás partindo de mim e eu pressinto na verdade, há muito que partias, há muito que eu consinto que tu partas como um mito.. Mas não és a única que partes nem eu o único que fico: sei que juntos e contrários nos partimos: -pois tanto mais nos desencontros nos revemos, tanto mais nas despedidas consentimos. Fragmento 7
é o nosso amor, amante-amiga, que não se farta de partir-se e não se cansa de querer-se. Amor todo feito de distâncias necessárias que te trazem e de partidas sucessivas que me levam. Que espécie de amor é esse amor que nos doamos sem pensar e sem querer com tanto amor e tão profundo magoar? Estranho e duro amor que não se basta e de outros amores se socorre e se compensa e neste alheio compensar-se nunca se alimenta, mas se avilta e se desgasta. Estranho amor, ferino amor, instável amor feito sem muita paz, com certo desengano e um desconsolo prolongado. Feito de promessas sem futuro e de um presente de saudades. Chorar tão dúbio amor quem há-de? Estranho amor e duro amor incerto amor, que não te deu o instante que esperavas e a mim me sobejou do que faltava. Fragmento 8
o leito que vazio se contempla. Contemplo agora o leito que vazio em mim se estende e se me aproximo existe qualquer coisa trescalando aroma em mim. Onde o teu corpo, amante-amiga, onde o carinho que compungido em recebia e aquela forma que tranquila ainda ontem descobrias? Agora eu te diria o quanto te agradeço o corpo teu se o me dás ou se o me tomas, e o recolhendo em mim, em mim me vais colhendo, como eu que tomo em ti o que de ti me vais doando. Eu muito te agradeço este teu corpo quando nos leitos o estendias e o me davas, às vezes, temerosa, e, ofegante, às vezes, e te agradeço ainda aquele instante (o percebeste) em que extasiado ao contemplá-lo em mim me conturbei - (o percebeste) me aguardaste e nos olhos te guardei. Eu muito te agradeço, amante-amiga, este teu corpo que com fúria eu possuía, corpo que eu mais amava quanto mais o via, pequeno e manso enigma que eu decifrei como podia. Agora eu te diria o que não soubeste e nunca o saberias: o que naquele instante eu te ofertava nunca a mim eu já doara e nunca o doaria. Nele eu fui pousar quando cansado e dúbio, dele eu fui tomar quando ofegante e rubro, dele e nele eu revivia e foi por ele que eu senti a solidão, e o amor que em mim havia. Teu corpo quando amava me excedia, e me excedendo com o amor foi me envolvendo, e nesse amor absorvente de tal forma absorvendo, que agora que o não tenho não sei como permaneço nesta ausência em que tuas formas se envolveram, tanto o amor e a forma do teu corpo no meu corpo se inscreveram. |