Poemas para a Amiga



    "O amor com seus contrários se acrescenta"
    Camões

    Fragmento 1

      Tu sempre foste una
      e sempre foste minha,
      ainda quando a cor e a forma tua se fundiam
      com outra forma e cor que tu não tinhas.

      Por isto é que te falo de umas coisas
      que não lembras
      nem nunca lembrarias
      de tais coisas entre mim e ti
      ainda quando tu não me sabias
      e dividida em outras te mostravas
      e assim dispersa me ouvias.

      Tu sempre foste uma
      ainda quando o corpo teu
      com outro corpo a sós se punha,
      pois o que me tinhas a dar
      a outro nunca o deste
      e nunca o doarias.

      Por isto é que te sinto
      com tanta intimidade
      e te possuo com tanta singeleza
      desde quando recém vinda
      ostentavas nos teus olhos grande espanto
      de quem não compreendia
      a antiguidade desse amor que em mim fluía.


    Fragmento 2

      Eu sei quando te amo:
      é quando com teu corpo eu me confundo,
      não apenas nesta mistura de massa e forma,
      mas quando na tua alma eu me introduzo
      e sinto que meu sangue corre em ti,
      e tudo que é teu corpo
      não é que um corpo meu
      que se alongou de mim.

      Eu sei quando te amo:
      é quando eu te apalpo e não te sinto,
      e sinto que a mim mesmo então me abraço,
      a mim
      que amo e sou um duplo,
      eu mesmo
      e o corpo teu pulsando em mim.


    Fragmento 3

      É tão natural
      que eu te possua
      é tão natural que tu me tenhas,
      que eu não me compreendo
      um tempo houvesse
      em que eu não te possuísse
      ou possa haver um outro
      em que eu não te tomaria.

      Venhas como venhas,
      é tão natural que a vida
      em nossos corpos se conflua,
      que eu já não me consinto
      que de mim tu te abstenhas
      ou que meu corpo te recuse
      venhas quando venhas.

      E de ser tão natural
      que eu me extasie
      ao contemplar-te,
      e de ser tão natural
      que eu te possua,
      em mim já não há como extasiar-me
      tanto a minha forma
      se integrou na forma tua.


    Fragmento 4

      As vezes em que eu mais te amei
      tu o não soubeste
      e nunca o saberias.


      Sozinho a sós contigo
      em mim mesmo eu te criava,
      em mim te possuía

      De onde vinhas nessas horas
      em que inteira eu te envolvia,
      nem eu mesmo o sei
      e nunca o saberias

      Contudo, em paz
      eu recebia o carinho,
      compungindo o recebia,
      tranqüilo em meu silêncio
      e tão tranqüilo e tão sozinho
      que calmamente eu consentia:
      - que ainda que muito me tardasse
      mais ainda, um outro tanto, eu sempre esperaria.


    Fragmento 5

      Tanto mais eu te comtemplo
      tanto mais eu me absorvo
      e me extasio

      Como te explicar
      o que em teu corpo eu sinto,
      o que em teus olhos vejo,
      quando nua nos meus braços
      no meus olhos nua,
      de novo eu te procuro
      e no teu corpo vou-me achar?

      Como te explicar
      se em teu corpo eu me eternizo
      e de onde e como
      sendo eu pequeno e frágil
      pelo amor me dualizo?

      Tanto mais eu te possuo
      tanto mais te tornas bela,
      tanto mais me torno eu puro.

      E à força de tanto contemplar-te
      e de querer-te tanto,
      já pressinto que em mim mesmo
      eu não me tenho,
      mas de meu ser, ora vazio,
      pouco a pouco fui mudando
      para o teu ser de graça cheio.


    Fragmento 6

      Estás partindo de mim
      e eu pressinto que me partes,
      e partindo, em ti me vai levando,
      como eu que fico
      e em mim vou te criando.

      Tanto mais tu me despedes
      e te alongas,
      tanto mais em mim vou te buscando
      e me alongando,
      tanto mais em mim vou te compondo
      e com a lembrança de teu ser
      me conformando.

      Estás partindo de mim
      e eu pressinto
      na verdade, há muito que partias,
      há muito que eu consinto
      que tu partas como um mito..

      Mas não és a única que partes
      nem eu o único que fico:
      sei que juntos e contrários
      nos partimos:
      -pois tanto mais nos desencontros nos revemos,
      tanto mais nas despedidas consentimos.


    Fragmento 7

      Estranho e duro amor
      é o nosso amor, amante-amiga,
      que não se farta de partir-se
      e não se cansa de querer-se.
      Amor
      todo feito de distâncias necessárias
      que te trazem
      e de partidas sucessivas
      que me levam.
      Que espécie de amor
      é esse amor que nos doamos
      sem pensar e sem querer com tanto amor
      e tão profundo magoar?

      Estranho e duro amor
      que não se basta
      e de outros amores se socorre
      e se compensa
      e neste alheio compensar-se
      nunca se alimenta,
      mas se avilta e se desgasta.

              Estranho amor,
              ferino amor,
              instável amor

      feito sem muita paz,
      com certo desengano
      e um desconsolo prolongado.

      Feito de promessas sem futuro
      e de um presente de saudades.
      Chorar tão dúbio amor
      quem há-de?

              Estranho amor
              e duro amor
              incerto amor,

      que não te deu o instante que esperavas
      e a mim me sobejou do que faltava.


    Fragmento 8

      Contemplo agora
      o leito que vazio
      se contempla.
      Contemplo agora
      o leito que vazio
      em mim se estende
      e se me aproximo
      existe qualquer coisa
      trescalando aroma em mim.

      Onde o teu corpo, amante-amiga,
      onde o carinho
      que compungido em recebia
      e aquela forma que tranquila
      ainda ontem descobrias?

      Agora eu te diria
      o quanto te agradeço o corpo teu
      se o me dás ou se o me tomas,
      e o recolhendo em mim,
      em mim me vais colhendo,
      como eu que tomo em ti
      o que de ti me vais doando.

      Eu muito te agradeço este teu corpo
      quando nos leitos o estendias e o me davas,
      às vezes, temerosa,
      e, ofegante, às vezes,
      e te agradeço ainda aquele instante (o percebeste)
      em que extasiado ao contemplá-lo
      em mim me conturbei
      - (o percebeste) me aguardaste
      e nos olhos te guardei.

      Eu muito te agradeço, amante-amiga,
      este teu corpo que com fúria eu possuía,
      corpo que eu mais amava
      quanto mais o via,
      pequeno e manso enigma
      que eu decifrei como podia.

      Agora eu te diria
      o que não soubeste
      e nunca o saberias:
      o que naquele instante eu te ofertava
      nunca a mim eu já doara
      e nunca o doaria.

      Nele eu fui pousar
      quando cansado e dúbio,
      dele eu fui tomar
      quando ofegante e rubro,
      dele e nele eu revivia
      e foi por ele que eu senti
      a solidão, e o amor
      que em mim havia.

      Teu corpo quando amava
      me excedia,
      e me excedendo
      com o amor foi me envolvendo,
      e nesse amor absorvente
      de tal forma absorvendo,
      que agora que o não tenho
      não sei como permaneço nesta ausência
      em que tuas formas se envolveram,
      tanto o amor
      e a forma do teu corpo
      no meu corpo se inscreveram.


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