Que país é este?



    para Raymundo Faoro

    "¿Puedo decir que nos han traicionado? No. ¿Que
    todos fueram buenos? Tampoco. Pero alli está
    una buena voluntad, sin duda y sobretodo, el ser así."
    César Vallejo

    Fragmento 1

          Uma coisa é um país
          outra um ajuntamento.

          Uma coisa é um país,
          outra um regimento.

          Uma coisa é um país,
          outra o confinamento.

      Mas já soube datas, guerras, estátuas
      usei caderno "Avante"
          - e desfilei de tênis para o ditador.

      Vinha de um "berço esplêndido" para um
          "futuro radioso"
      e éramos maiores em tudo
          - discursando rios e pretensão.

          Uma coisa é um país,
          outra um fingimento.

          Uma coisa é um país,
          outra um monumento.

          Uma coisa é um país,
          outra o aviltamento.

      Deveria derribar aflitos mapas sobre a praça
      em busca de especiosa raiz? ou deveria
      parar de ler jornais
                e ler anais
      como anal
            animal
                hiena patética
                         na merda nacional?
      Ou deveria, enfim, jejuar na Torre do Tombo
      comendo o que as traças descomem
                                                             procurando
      o Quinto Império, o primeiro portulano, a viciosa
          visão do paraíso?
      que no impeliu a errar aqui?

      Subo, de joelhos, as escadas dos arquivos
      nacionais, como qualquer santo barroco
                         a rebuscar
      no mofo dos papiros, no bolor
      das pias batismais, no bodum das vestes
          reais
      a ver o que se salvou com o tempo
      e ao mesmo tempo
                                          - nos trai


    Fragmento 2

      Há 500 anos caçamos índios e operários,
      Há 500 anos queimamos árvores e hereges,
      Há 500 anos estupramos livros e mulheres,
      Há 500 anos sugamos negras e aluguéis.

      Há 500 anos dizemos:
          que o futuro a Deus pertence,
          que Deus nasceu na Bahia,
          que São Jorge é guerreiro,
          que do amanhã ninguém sabe,
          que conosco ninguém pode,
          que quem não pode sacode.

      Há 500 anos somos pretos de alma branca,
          não somos nada violentos,
          quem espera sempre alcança
          e quem não chora não mama
          ou quem tem padrinho vivo
          não morre nunca pagão.

      Há 500 anos propalamos:
          este é o país do futuro,
          antes tarde do que nunca,
          mais vale quem Deus ajuda
          e a Europa ainda se curva.

      Há 500 anos
          somos raposas verdes
          colhendo uvas com os olhos,

          semeamos promessa e vento
          com tempestades na boca,

          sonhamos a paz na Suécia
          com suiças militares,

          vendemos siris na estrada
          e papagaios em Haia,

          senzalamos casas-grandes
          e sobradamos mocambos,

          bebemos cachaça e brahma
          joaquim silvério e derrama,

          a polícia nos dispersa
          e o futebol nos conclama,

          cantamos salve-rainhas
          e salve-se quem puder,

          pois Jesus Cristo nos mata
          num carnaval de mulatas

      Este é um país de síndicos em geral,
      Este é um país de cínicos em geral,
      Este é um país de civis e generais.

          Este é o país do descontínuo
          onde nada congemina,

          e somos índios perdidos
          na eletrônica oficina.

          Nada nada congemina:
             a mão leve do político
             com nossa dura rotina,

             o salário que nos come
             e nossa sede canina,

             a esperança que emparedam
             e a nossa fé em ruína,

             nada nada congemina:
             a placidez desses santos
             e nossa dor peregrina,

             e nesse mundo às avessas
             - a cor da noite é obsclara
               e a claridez vespertina.


    Fragmento 3

      Sei que há outras pátrias. Mas
      mato o touro nesta Espanha,
      planto o lodo neste Nilo,
      caço o almoço nesta Zâmbia,
      me batizo neste Ganges,
      vivo eterno em meu Nepal.

          Esta é a rua em que brinquei,
          a bola de meia que chutei,
          a cabra-cega que encontrei,
          o passa-anel que repassei,
          a carniça que pulei.

      Este é o país que pude
             que me deram
                e ao que me dei,
      e é possível que por ele, imerecido,
                   - ainda morrerei.


    Fragmento 4

      Minha geração se fez de terços e rosários:
                         - um terço se exilou
                         - um terço se fuzilou
                         - um terço desesperou

      e nessa missa enganosa
          - houve sangue e desamor. Por isto,
      canto-o-chão mais áspero e cato-me
             ao nível da emoção.

      Caí de quatro
             animal

                   sem compaixão.

          Uma coisa é um país,
          outra uma cicatriz.

          Uma coisa é um país,
          outra é abatida cerviz.

          Uma coisa é um país,
          outra esses duros perfis.

      Deveria eu catar os que sobraram
          os que se arrependeram,
          os que sobreviveram em suas tocas
      e num seminário de erradios ratos
                suplicar:
                         - expliquem-me a mim
                         e ao meu país?

      Vivo no século vinte, sigo para o vinte e um
      ainda preso ao dezenove
          como um tonto guarani
          e aldeado vacum. Sei que daqui a pouco
          não haverá mais país.

      País:
          loucura de quantos generais a cavalo
          escalpelando índios nos murais,
          queimando caravelas e livros
                   - nas fogueiras e cais,
          homens gordos melosos sorrisos comensais
          politicando subúrbios e arando votos
          e benesses nos palanques oficiais.

      Leio, releio os exegetas.
      Quanto mais leio, descreio. Insisto?
      Deve ser um mal do século
      - se não for um mal de vista.

          Já pensei: - é erro meu. Não nasci no
             tempo certo.
          Em vez de um poeta crente
          sou um profeta ateu.
          Em vez da epopéia nobre,
          os de meu tempo me legam
          como tema
                   - a farsa
          e o amargo riso plebeu.


    Fragmento 5

      Mas sigo o meu trilho. Falo o que sinto
      e sinto muito o que falo
          - pois morro sempre que calo.
      Minha geração se fez de lições mal-aprendidas
          - e classes despreparadas
      Olhávamos ávidos o calendário. Éramos jovens.
      Tínhamos a "história" ao nosso lado. Muitos
      maduravam um rubro outubro
          outros iam ardendo um torpe agosto.
      Mas nem sempre ao verde abril
          se segue a flor de maio.
      Às vezes se segue o fosso
          - e o roer do magro osso.
      E o que era revolução outrora
          agora pasas à convulsão inglória.
      E enquanto ardíamos a derrota como escória
      e os vencedores nos palácios espocavam seus
          champanhas sobre a aurora
      o reprovado aluno aprendia
          com quantos paus se faz a derrisória estória.
      Convertidos em alvos e presa da real calçada
      abriu-se embandeirado
          um festival de caça aos pombos
          - enquanto raiava sangüínea e fresca a
          madrugada.

      Os mais afoitos e desesperados
      em vez de regressarem como eu
                   sobre os covardes passos,
      e em vez de abrirem suas tendas para a fome dos
      desertos,
      seguiram no horizonte uma miragem
                      e logo da luta
                         passaram
                      ao luto.

      Vi-os lubrificando suas armas
          e os vi tombados pelas ruas e grutas.
      Vi-os arrebatando louros e mulheres
          e serem sepultados às ocultas.

      Vi-os pisando o palco da tropical tragédia
          e por mais que os advertisse do inevitável final
          não pude lhes poupar o sangue e o ritual.

      Hoje
          os que sobraram vivem em escuras
          e européias alamedas, em subterrâneos
          de saudade, aspurando a um chão-de-
             estrelas,
          plangendo um violão com seu violado
             desejo
          a colher flores em suecos cemitérios.

      Talvez
          todo o país seja apenas um ajuntamento
          e o conseqüente aviltamento
                - e uma insolvente cicatriz.

          Mas este é o que me deram,
          e este é o que eu lamento,
          e é neste que espero
                - livrar-me do meu tormento.

      Meu problema, parece, é mesmo de princípio:
      - do prazer e da realidade
                - que eu pensava
      com o tempo resolver
                - mas só agrava com a idade.

          Há quem se ajuste
          engolindo seu fel com mel.
          Eu escrevo o desajuste
          vomitando no papel.


    Fragmento 6

      Mas este é um povo bom
                   me pedem que repita
                   como um monge cenobita
                   enquanto me dão porrada
                   e me vigiam a escrita.

      Sim. Este é um povo bom. Mas isto também
      diziam os faraós
      enquanto amassavam o barro da carne escrava.
      Isso digo toda noite
                enquanto me assaltam a casa,
      isso digo
                aos montes em desalento
      enquanto recolho meu sermão ao vento.

      Povo. Como cicatrizar nas faces sua imagem
          perversa e una?
      Desconfio muito do povo. O povo, com razão,
                   - desconfia muito de mim.

      Estivemos juntos na praça, na trapaça e na desgraça,
      mas ele não me entende
          - nem eu posso convertê-lo.
      A menos que suba estádios, antenas, montanhas
      e com três mentiras eternas
          o seduza para além da ordem moral.

      Quando cruzamos pelas ruas
      não vejo nenhum carinho ou especial predileção
          nos seus olhos.
      Há antes incômoda suspeita. Agarro documentos,
          embrulhos, família
      a prevenir mal-entendidos sangrentos.

      Daí vejo as manchetes:

             - o poeta que matou o povo
             - o povo que só/çobrou ao poeta
             - (ou o poeta apesar do povo?)

      - Eles não vão te perdoar
                - me adverte o exegeta.
      Mas como um país não é a soma de rios, leis,
      nomes de ruas, questionários e geladeiras,
      e a cidade do interior não é apenas gás neon,
      quermesse e fonte luminosa,
      uma mulher também não é só capa de revista,
      bundas e peitos fingindo que é coisa nossa.

      Povo
             também são os falsários
                   e não apenas os operários,

      povo
             também são os sifilíticos
                   não só atletas e políticos,

      povo
             são as bichas, putas e artistas
                   e não só os escoteiros
                   e heróis de falsas lutas,
             são as costureiras e dondocas
                   e os carcereiros
             e os que estão nos eitos e docas.

      Assim como uma religião não se faz só de missas
             na matriz,
      mas de mártires e esmolas, muito sangue e cicatriz,
      a escravidão
             para resgatar os ferros de seus ombros
                                                                                  requer
      poetas negros que refaçam seus palmares e
      quilombos.

      Um país não pode ser só a soma
      de censuras redondas e quilômetros
      quadrados de aventura, e o povo
      não é nada novo
                - é um ovo
                      que ora gera e degenera
                      que pode ser coisa viva
                               - ou ave torta

      depende de quem o põe
                      - ou quem o gala.


    Fragmento 7

      Percebo
          que não sou um poeta brasileiro. Sequer
          um poeta mineiro. Não há fazendas, morros,
          casas velhas, barroquismos nos meus versos.

      Embora meu pai viesse de Ouro Preto com
          bandas de música polícia militar casos de
          assombração e uma calma milenar,
          embora minha mãe fosse imigrando
             hortaliças protestantes tecendo filhos
             nas fábricas e amassando a gé e o pão,
             olhos Minas com um amor
             distante, como se eu, e não minha mulher
             - fosse um poeta etíope.

      Fácil não era apenas ao tempo das arcádias
      entre cupidos e sanfoninhas,
      fácil também era ao tempo dos partidos:
             - o poeta sabia "história"
             vivia em sua "célula",
             o povo era seu hobby e profissão,
             o povo era seu cristo e salvação.

      O povo, no entando, é o cão
      e o patrão
             - o lobo. Ambos são povo.
             E o povo sendo ambíguo
             é o seu próprio cão e lobo.

      Uma coisa é o povo, outra a fome.
      Se chamais povo à malta de famintos,
      se chamais povo à marcha regular das armas,
      se chamais povo aos urros e silvos no esporte
             popular

      então mais amo uma manada de búfalos em
      Marajó e diferença já não há
      entre as formigas que devastam minha horta
      e as hordas de gafanhoto de 1948
                   - que em carnaval de fome
                   o próprio povo celebrou.

      Povo
          não pode ser sempre o coletivo de fome.
      Povo
          não pode ser um séquito sem nome.
      Povo
          não pode ser o diminutivo de homem.
      O povo, aliás,
          deve estar cansado desse nome,
      embora seu instinto o leve à agressão
      e embora
      o aumentativo de fome
                      possa ser
                               revolução


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