para Raymundo Faoro
outra um ajuntamento. Uma coisa é um país, outra um regimento. Uma coisa é um país, outra o confinamento. Mas já soube datas, guerras, estátuas usei caderno "Avante" - e desfilei de tênis para o ditador. Vinha de um "berço esplêndido" para um "futuro radioso" e éramos maiores em tudo - discursando rios e pretensão. Uma coisa é um país, outra um fingimento. Uma coisa é um país, outra um monumento. Uma coisa é um país, outra o aviltamento. Deveria derribar aflitos mapas sobre a praça em busca de especiosa raiz? ou deveria parar de ler jornais e ler anais como anal animal hiena patética na merda nacional? Ou deveria, enfim, jejuar na Torre do Tombo comendo o que as traças descomem procurando o Quinto Império, o primeiro portulano, a viciosa visão do paraíso? que no impeliu a errar aqui? Subo, de joelhos, as escadas dos arquivos nacionais, como qualquer santo barroco a rebuscar no mofo dos papiros, no bolor das pias batismais, no bodum das vestes reais a ver o que se salvou com o tempo e ao mesmo tempo - nos trai Fragmento 2
Há 500 anos queimamos árvores e hereges, Há 500 anos estupramos livros e mulheres, Há 500 anos sugamos negras e aluguéis. Há 500 anos dizemos: que o futuro a Deus pertence, que Deus nasceu na Bahia, que São Jorge é guerreiro, que do amanhã ninguém sabe, que conosco ninguém pode, que quem não pode sacode. Há 500 anos somos pretos de alma branca, não somos nada violentos, quem espera sempre alcança e quem não chora não mama ou quem tem padrinho vivo não morre nunca pagão. Há 500 anos propalamos: este é o país do futuro, antes tarde do que nunca, mais vale quem Deus ajuda e a Europa ainda se curva. Há 500 anos somos raposas verdes colhendo uvas com os olhos, semeamos promessa e vento com tempestades na boca, sonhamos a paz na Suécia com suiças militares, vendemos siris na estrada e papagaios em Haia, senzalamos casas-grandes e sobradamos mocambos, bebemos cachaça e brahma joaquim silvério e derrama, a polícia nos dispersa e o futebol nos conclama, cantamos salve-rainhas e salve-se quem puder, pois Jesus Cristo nos mata num carnaval de mulatas Este é um país de síndicos em geral, Este é um país de cínicos em geral, Este é um país de civis e generais. Este é o país do descontínuo onde nada congemina, e somos índios perdidos na eletrônica oficina. Nada nada congemina: a mão leve do político com nossa dura rotina, o salário que nos come e nossa sede canina, a esperança que emparedam e a nossa fé em ruína, nada nada congemina: a placidez desses santos e nossa dor peregrina, e nesse mundo às avessas - a cor da noite é obsclara e a claridez vespertina. Fragmento 3
mato o touro nesta Espanha, planto o lodo neste Nilo, caço o almoço nesta Zâmbia, me batizo neste Ganges, vivo eterno em meu Nepal. Esta é a rua em que brinquei, a bola de meia que chutei, a cabra-cega que encontrei, o passa-anel que repassei, a carniça que pulei. Este é o país que pude que me deram e ao que me dei, e é possível que por ele, imerecido, - ainda morrerei. Fragmento 4
- um terço se exilou - um terço se fuzilou - um terço desesperou e nessa missa enganosa - houve sangue e desamor. Por isto, canto-o-chão mais áspero e cato-me ao nível da emoção. Caí de quatro animal sem compaixão. Uma coisa é um país, outra uma cicatriz. Uma coisa é um país, outra é abatida cerviz. Uma coisa é um país, outra esses duros perfis. Deveria eu catar os que sobraram os que se arrependeram, os que sobreviveram em suas tocas e num seminário de erradios ratos suplicar: - expliquem-me a mim e ao meu país? Vivo no século vinte, sigo para o vinte e um ainda preso ao dezenove como um tonto guarani e aldeado vacum. Sei que daqui a pouco não haverá mais país. País: loucura de quantos generais a cavalo escalpelando índios nos murais, queimando caravelas e livros - nas fogueiras e cais, homens gordos melosos sorrisos comensais politicando subúrbios e arando votos e benesses nos palanques oficiais. Leio, releio os exegetas. Quanto mais leio, descreio. Insisto? Deve ser um mal do século - se não for um mal de vista. Já pensei: - é erro meu. Não nasci no tempo certo. Em vez de um poeta crente sou um profeta ateu. Em vez da epopéia nobre, os de meu tempo me legam como tema - a farsa e o amargo riso plebeu. Fragmento 5
e sinto muito o que falo - pois morro sempre que calo. Minha geração se fez de lições mal-aprendidas - e classes despreparadas Olhávamos ávidos o calendário. Éramos jovens. Tínhamos a "história" ao nosso lado. Muitos maduravam um rubro outubro outros iam ardendo um torpe agosto. Mas nem sempre ao verde abril se segue a flor de maio. Às vezes se segue o fosso - e o roer do magro osso. E o que era revolução outrora agora pasas à convulsão inglória. E enquanto ardíamos a derrota como escória e os vencedores nos palácios espocavam seus champanhas sobre a aurora o reprovado aluno aprendia com quantos paus se faz a derrisória estória. Convertidos em alvos e presa da real calçada abriu-se embandeirado um festival de caça aos pombos - enquanto raiava sangüínea e fresca a madrugada. Os mais afoitos e desesperados em vez de regressarem como eu sobre os covardes passos, e em vez de abrirem suas tendas para a fome dos desertos, seguiram no horizonte uma miragem e logo da luta passaram ao luto. Vi-os lubrificando suas armas e os vi tombados pelas ruas e grutas. Vi-os arrebatando louros e mulheres e serem sepultados às ocultas. Vi-os pisando o palco da tropical tragédia e por mais que os advertisse do inevitável final não pude lhes poupar o sangue e o ritual. Hoje os que sobraram vivem em escuras e européias alamedas, em subterrâneos de saudade, aspurando a um chão-de- estrelas, plangendo um violão com seu violado desejo a colher flores em suecos cemitérios. Talvez todo o país seja apenas um ajuntamento e o conseqüente aviltamento - e uma insolvente cicatriz. Mas este é o que me deram, e este é o que eu lamento, e é neste que espero - livrar-me do meu tormento. Meu problema, parece, é mesmo de princípio: - do prazer e da realidade - que eu pensava com o tempo resolver - mas só agrava com a idade. Há quem se ajuste engolindo seu fel com mel. Eu escrevo o desajuste vomitando no papel. Fragmento 6
me pedem que repita como um monge cenobita enquanto me dão porrada e me vigiam a escrita. Sim. Este é um povo bom. Mas isto também diziam os faraós enquanto amassavam o barro da carne escrava. Isso digo toda noite enquanto me assaltam a casa, isso digo aos montes em desalento enquanto recolho meu sermão ao vento. Povo. Como cicatrizar nas faces sua imagem perversa e una? Desconfio muito do povo. O povo, com razão, - desconfia muito de mim. Estivemos juntos na praça, na trapaça e na desgraça, mas ele não me entende - nem eu posso convertê-lo. A menos que suba estádios, antenas, montanhas e com três mentiras eternas o seduza para além da ordem moral. Quando cruzamos pelas ruas não vejo nenhum carinho ou especial predileção nos seus olhos. Há antes incômoda suspeita. Agarro documentos, embrulhos, família a prevenir mal-entendidos sangrentos. Daí vejo as manchetes: - o poeta que matou o povo - o povo que só/çobrou ao poeta - (ou o poeta apesar do povo?) - Eles não vão te perdoar - me adverte o exegeta. Mas como um país não é a soma de rios, leis, nomes de ruas, questionários e geladeiras, e a cidade do interior não é apenas gás neon, quermesse e fonte luminosa, uma mulher também não é só capa de revista, bundas e peitos fingindo que é coisa nossa. Povo também são os falsários e não apenas os operários, povo também são os sifilíticos não só atletas e políticos, povo são as bichas, putas e artistas e não só os escoteiros e heróis de falsas lutas, são as costureiras e dondocas e os carcereiros e os que estão nos eitos e docas. Assim como uma religião não se faz só de missas na matriz, mas de mártires e esmolas, muito sangue e cicatriz, a escravidão para resgatar os ferros de seus ombros requer poetas negros que refaçam seus palmares e quilombos. Um país não pode ser só a soma de censuras redondas e quilômetros quadrados de aventura, e o povo não é nada novo - é um ovo que ora gera e degenera que pode ser coisa viva - ou ave torta depende de quem o põe - ou quem o gala. Fragmento 7
que não sou um poeta brasileiro. Sequer um poeta mineiro. Não há fazendas, morros, casas velhas, barroquismos nos meus versos. Embora meu pai viesse de Ouro Preto com bandas de música polícia militar casos de assombração e uma calma milenar, embora minha mãe fosse imigrando hortaliças protestantes tecendo filhos nas fábricas e amassando a gé e o pão, olhos Minas com um amor distante, como se eu, e não minha mulher - fosse um poeta etíope. Fácil não era apenas ao tempo das arcádias entre cupidos e sanfoninhas, fácil também era ao tempo dos partidos: - o poeta sabia "história" vivia em sua "célula", o povo era seu hobby e profissão, o povo era seu cristo e salvação. O povo, no entando, é o cão e o patrão - o lobo. Ambos são povo. E o povo sendo ambíguo é o seu próprio cão e lobo. Uma coisa é o povo, outra a fome. Se chamais povo à malta de famintos, se chamais povo à marcha regular das armas, se chamais povo aos urros e silvos no esporte popular então mais amo uma manada de búfalos em Marajó e diferença já não há entre as formigas que devastam minha horta e as hordas de gafanhoto de 1948 - que em carnaval de fome o próprio povo celebrou. Povo não pode ser sempre o coletivo de fome. Povo não pode ser um séquito sem nome. Povo não pode ser o diminutivo de homem. O povo, aliás, deve estar cansado desse nome, embora seu instinto o leve à agressão e embora o aumentativo de fome possa ser revolução |