Sou um dos 999.999 poetas do país



    Fragmento 1

      INTRODUÇÃO SÓCIO-INDIVIDUAL DO TEMA

      Sou um dos 999.999 poetas do país
      que escrevem
      enquanto caminhões descem pesados de cereais
      e celulose
      ministros acertam o frete dos pinheiros
      carreados em navios alimentados com o óleo
      que o mais pobre pagará.

      (- Estes são dados sociais
        de que não quero falar, embora
        tenha aprendido em manuais
        que o escritor deve tomar o seu lugar na História
        e o seu cotidiano alterar.)

      Sou um dos 999.999 poetas do país
      com mãe de olhos verdes e pai amulatado
      ela - a força de áries na azáfama da casa
              a decisão do imigrante que veio se plantar
      ele - capitão de milícias tocando flauta em meio
      às balas
              lendo salmos em Esperanto sobre a mesa
              domingueira.

      (- Estes são sinais particulares
            que não quero remarcar, embora
            tenha aprendido em manuais
            que o que distingüe a escrita do homem
            são seus traços pessoais que ninguém pode
            imitar.)


    Fragmento 2

      DESENVOLVIMENTO HÁBIL E CONTÁBIL DO (P)R(O)BL(EMA)

      Sendo um dos 999.999 poetas do país
      desses sou um dos 888.888
      que tiveram Mário, Bandeira, Drummond,
      Murilo, Cecília, Jorge e Vinícius como mestres
      e pelas noites interioranas abriam suas obras
      lendo e reescrevendo os versos deles nos meus versos
      com deslumbrada afeição.

      Desses sou um dos 777.777 poetas
      que se ampliaram ao descobrir Neruda, Pessoa,
      Petrarca, Eliot, Rilke, Whitman, Ronsard e Villon
      em tradução ou não
      e sem qualquer orientação iam curtindo
      um bando de poetas menores/piores
      que para mim foram maiores
      pois me alimentavam com a in-possível poesia
      e a derramada emoção.

      Desses sou um dos 666.666 poetas
      que fundando revistinhas e grupelhos aspiravam
      (miudamente)
      à glória erótica & literária
      e misturando madrugadas, festas, citações, sonhos
          de escritor maldito e o mito das gerações
      depois da espreita aos suplementos
      batem à porta do poeta nacional para entregar
      poemas
      (com a alma na mão)
      esperando louvor e afeição.

      Desses sou um dos 555.555
      que um dia foram o melhor poeta de sua cidade
      o melhor poeta de seu estado
      dos melhores poetas jovens do país
      e quando já se iam laureando aqui e ali em plena arcádia
      surpreenderam-se nauseados
      e cobrindo-se de cinza retiraram-se para o deserto
      a refazer a letra do silêncio
      e o som da solidão

      Desses sou um dos 444.444 poetas
      que depois da torrente de versos adolescentes e noturnos
      se estuporaram per/vertidos nas vanguardas
      e por mais de 20 anos não falamos de outra coisa
      senão da morte do verso e da palavra e da vida do sinal
      acreditando que a poesia tendia para o visual
      e que no séc. XXI etc. e etc. e tal.

      Desses sou um dos 333.333 poetas
      que depois de tanto rigor, ardor, odor, horror
      partiram para a impureza (consciente) das formas
      podendo ou não rimar em ar e ão
      procurando o avesso do aprendido
      o contrário do ensinado
      interessado não apenas em calar, mas em falar
      não apenas em pensar, mas em sentir
      não apenas em ver, mas contemplar
      fugindo do falso novo como o diabo da cruz
      porque nada há de mais pobre que o novo ovo de ouro
      gerado por falsas galinhas prata.

      Desses sou um dos 222.222 poetas
      que penosamente descobriram que uma coisa
      é fazer um verso, um poema ou mais
      e receber os elogios médio-medianos dos amigos
      e outra, bem outra, é ser poeta
      e construir o projeto de uma obra
      em que vida & texto se articulem
          letra & sangue se misturem
          espaço & tempo se revelem
      e que nesta matéria revém o dito bíblico
      - muitos os chamados, poucos os escolhidos.

      Desses sou um dos 111.111 professores
      universitários ou não
      que antes de tudo eram poetas-patetas-estetas-profetas
      e que depois de ver e viver da obra alheia
      estupefactos
      descobrem que só poderiam/deveriam
      sobreviver
      com a própria
          que escondem e renegam
      por pudor
             recalque
                   e medo.

      Sou um dos 999 poetas do país
      que
      sub/traídos dos 999.999
      serão sempre 999 (anônimos) poetas
      expulsos sistematicamente da República por Platão
      que um dia pensaram em mudar a História com
          dois versos pena & espada
      (o que deu certo ao tempo de Camões)
      e que escrevendo páginas e páginas não mudaram nada
      senão de tinta e de endereço
      Mas foi dessa inspeção ao nada que aprenderam
      que na poesia o nada se perde
            o nada se cria
            e o nada se transforma.


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