Poeta maior



        Pelo que envolvem de pensamento filosófico e teológico, conhecimentos matemáticos e arquitetônicos, instinto de beleza e refinamento das crenças, para nada dizer da resistência dos materiais e da espantosa concepção da abóbada, sem excluir as técnicas mais apuradas na fabricação do vidro, além da simbologia, não raro irônica, dos adornos exteriores, as grandes catedrais da Idade Média são o testemunho mais complexo do processo civilizatório.

        Processo que também se caracterizou pelo aperfeiçoamento cada vez mais avançado das armas e instrumentos de destruição, com os quais os povos que as construíram passaram a destruí-las com o mesmo empenho, enquanto se exterminavam uns aos outros com fanático fervor: as guerras foram, por longo período (e, aliás, continuam sendo), guerras de religião. Essas contradições do espírito humano e o desdobrar das civilizações acabaram por construir um enorme entroncamento ferroviário, alvo predileto dos bombardeios, justamente ao lado da Catedral de Colônia - que só escapou da destruição pelo que devemos considerar, no próprio e no figurado, como um milagre.

        Era preciso que escapasse, diriam os deterministas, para inspirar a grande catedral literária que é o poema de Affonso Romano de Sant’Anna, reimpresso em edição comemorativa com outra meditação filosófica e histórica em que se completa o díptico mental: a do homem em face de Deus, em face do Cosmos enigmático, em face do "silêncio eterno dos espaços infinitos" que já aterrorizou outro produto refinado da civilização espiritual, o atormentado (e, entretanto, crente) Blaise Pascal (Affonso Romano de Sant’Anna. "A grande fala do índio Guarani"/ "A catedral de Colônia". Rio: Rocco, 1998).

        Um amante de aritmosofia poderia observar que o primeiro desses poemas, como consta da bibliografia, teria sido publicado em 1978, e o segundo em 1987, finalmente reunidos em 1998, ritmo de "correspondência" interiores que desvendam o que, para mim, é mais importante: a natureza necessariamente complementar dos dois textos. De fato, seu sentido profundo é exatamente idêntico, pois a linguagem simbólica da catedral reflete em exata simetria a linguagem mítica do homem primitivo, que se posiciona no universo com o espanto do refinado Pascal, enquanto os arquitetos medievais "traduziam" em pedra o pensamento teológico.

        Na verdade, o poema da catedral apareceu em 1985, mas essas oscilações aritmosóficas serão facilmente interpretadas pelos entendidos em ocultismo, se não preferirmos a explicação mais pedestre do erro tipográfico. Em 1978, quando apareceu "A grande fala", as "vanguardas" que se multiplicavam em nossa poesia estavam claramente exauridas em suas invenções mecânicas. Affonso Romano de Sant’Anna identificava, a essa altura, sete "movimentos" depois do Modernismo, o que lhes mostra, desde logo, o caráter artificial. Era caso de perguntar, mais uma vez: "Que país é este?", título do seu livro de 1980.

        Ele era, escrevi então, "o grande poeta brasileiro que obscuramente esperávamos para a sucessão de Carlos Drummond de Andrade", juízo que foi mal recebido pelos que encaravam Carlos Drummond como sagrado e insuperável (no ambiente emocional do enterro, festejada poetisa declarou à televisão com gestos de desespero que a poesia brasileira havia acabado). De minha parte, assinalei a "coincidência" espiritual dos poemas affonsinos, acentuando que a sua sensibilidade brasileira se manifestava na "consciência de Pátria", realidade não apenas continental, mas também ancestral e ucrônica - tanto na "Grande fala" quanto no terremoto espiritual desencadeado em seu espírito pela catedral de Colônia.

        Os primitivos na sua literatura e os civilizados na sua arquitetura exprimem-se por meio de dois idiomas concomitantes, o profano e o sagrado, este último secreto e incompreensível para os não iniciados. A catedral, além de ser o edifício que todos podem ver, tem uma "significação" que nem todos percebem; de seu lado, as orações e cantos religiosos dos indígenas respondem a valores e inquietações que estão na origem de uns e de outros - e na origem do poeta moderno, que, saindo da pequena cidade mineira, ela própria impregnada de valores religiosos, mergulhou na corrente profunda de uma civilização milenar: "procuro o texto que me salve", diz ele, mas o texto que o pode salvar e que nos salva é o da sua própria poesia, identificada com a textura humana.

        Em segmento de sarcasmo vingador ("Um índio na catedral"), o poeta registra o abismo que separa, de um lado, o monumento espiritual dos séculos e, de outro, os "índios" supostamente civilizados que são os turistas ignaros. De fato, não há maior contraste do que o testamento da civilização e o mundo real em que ela acabou por se constituir.

        Pensando buscar o "texto do seu tempo", ele encontra o texto intemporal que produziu as crenças e as catedrais, as religiões que se cristalizaram em orações propiciatórias. A lição de tudo isso é paradoxalmente de relativismo e equivalência: absoluto é apenas o espírito que construiu as catedrais e codificou os sistemas religiosos: "a vida é o impoemável poema". Não é sem razão, mas antes por instinto, que, a propósito desse poema de primitivos, ele evoca os nomes de cientistas que imaginaram as catedrais do universo cósmico, mistério insondável até hoje, apesar de tantas explicações científicas: Giordano Bruno e Galileu, ao lado dos criadores ultraliterários, Huidobro e Sandburg.

        É também a busca iniciática da liberdade que move os poetas na decifração do Destino, mas eles só podem escrever sobre a liberdade perdida, porque a liberdade existente não inspira os cânticos nostálgicos. Assim vai a marcha dos milênios: os 600 anos que durou a construção da catedral e o século e meio que esperou por seu poeta. Catedrais antigas e Popol-Vuh modernos são apenas a metáfora do Tempo, matéria prima da poesia.

[jornal O Globo, caderno Prosa e Verso, 25.12.1998]


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