Gravata: Affonso Romano de Sant'Anna relança poemas antigos e prepara projeto sobre as relações delicadas entre cultura e poder O poeta e ensaísta mineiro Affonso Romano de Sant'Anna anda com fôlego de gato depois de ter consumado sua aposentadoria. "Tenho 24 horas por dia para fazer o que eu sempre quis a vida inteira - escrever e ler. Se bem que eu deveria era seguir o exemplo de Rossini, que lá pelas tantas parou de fazer música para se dedicar à culinária. Comeu bem à beça", disse ao Caderno G. Ele recém-lançou num único volume dois livros de poemas que ajudaram a consolidar sua fama, nos anos 70 - A Grande Fala do Índio Guarani e A Catedral de Colônia. Também tem engatilhado pelo menos três coletâneas de escritos da última safra e assiste à distribuição de Barroco, do Quadro à Elipse, ampliação da restrita edição de Barroco, a Alma do Brasil, agora com direito a observações sobre culinária e moda. E tudo isso é só começo de conversa. Acostumado a ficar na ofensiva, principalmente quando a briga em questão atende pelo nome de 'política cultural' - assunto que conhece tão bem quanto a cigana que lê a palma da mão - Romano prepara um texto que promete alvoroço. Ele vai tratar das relações perigosas entre a intelectualidade e o poder. "Se Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade tivessem registrado tudo o que viram e o que passaram em seus cargos, talvez nosso futuro tivesse sido diferente", avalia. "Não quero padecer do mesmo erro." A escolha pelo tema se deu de forma natural. Durante décadas Affonso esteve às voltas com funções públicas. O período de seis anos em que ficou à frente da Biblioteca Nacional, a partir do início da década, contudo, foi a gota d'água, culminada com sua saída do cargo após contínuos desacordos com o ministro Francisco Weffort. Mas as crenças do fundador do Programa Nacional de Leitura (Proler), hoje quase em estado terminal, não ruíram. "Continuo achando que o governo tem uma função muito importante na cultura. Há coisas que só ele pode fazer, como editar os clássicos e defender nosso patrimônio. Negar isso é esquizofrenia pura", considera o autor que está dando a seu próximo lançamento o formato de um diário. Nele, conta dia após dia a agonia de quem aguarda ver pingar algum benefício para o setor cultural. "Relatar o que presenciei à frente da Biblioteca se tornou uma questão de responsabilidade social e histórica. Minha intenção é aumentar o entendimento sobre a intrincada máquina da burocracia. E tornar presente minha crítica às políticas culturais desenvolvidas no país." Para tanto, antecipa, não há como desviar sua fala da frieza dos partidos políticos, verdadeiros icebergs quando o assunto é Ministério da Cultura. "Quem se importa com ele?", pergunta, apontando um equívoco histórico que ronda ainda hoje as cercanias dos palácios de Brasília, onde as belas artes são entendidas como um chantilly, um enfeite, um ornamento ao qual se pode ter acesso depois de se atingir uma determinada classe social. "Entendê-las na sua dimensão antropológica e sociológica modificaria significativamente esta postura", declara, propondo a interação como medida de todas as coisas. "Na hora em que se abre uma represa, o Ministério tem de estar presente para registrar as manifestações populares que ficarão submersas. E também para pensar a moradia dos funcionários. É preciso sair do circuito da alta-cultura e fazer ver que a música, a dança, a literatura são essenciais para pensar o Brasil. Basta de isolamento. Chega de não participar das conversas sobre ciência e tecnologia. Cultura não é só para patrocinar balé." Exemplos desta viseira presa aos olhos não faltam. Um deles, conta Affonso Romano de San'Anna, envolveu recentemente o presidente Fernando Henrique Cardoso, na visita que fez a Portugal. Ao jornalista que lhe perguntou por que o Brasil não estava dando força à formação da comunidade dos povos de língua portuguesa, respondeu que este assunto ainda não estava na agenda de suas preocupações. "Como é que um governante que se diz intelectual, de um país de tamanha importância, não tem um projeto para seu idioma pátrio? Estive em Moçambique, Angola... A África está sedenta em trabalhar conosco. Outro dia a rainha da Espanha foi a Pequim para prestigiar o lançamento de uma edição chinesa de Don Quixote. Pelo visto não podemos esperar atitude parecida em se tratando de um autor brasileiro."
Poemas comemoram 20 anos de publicação A Grande Fala do Índio Guarani e A Catedral de Colônia, agora lançados em edição conjunta pela Editora Rocco (182 páginas, R$25), foram escritos em 1978, momento em que Affonso Romano de Sant'Anna - embora não fosse um exilado oficial - ainda vivia às turras com a ditadura. A seu modo, estas obras "gêmeas", como as classifica, refletem o estado de ânimo daqueles tempos bicudos e nasceram da contradição que havia no regime de quartel implantado no país. O primeiro livro traz o poeta falando de sua pátria tendo como argumento o costume ancestral de uma tribo indígena. O segundo coloca esta voz no Velho Continente, longe de casa, diante de uma igreja monumental, que levou seis séculos para ser concluída. Estranhamente as duas situações se completam nos versos de Sant'Anna. No linguajar dos antropólogos, "o grande falar" é aquele momento em que o pajé se distancia de seu grupo, envereda pela floresta e inicia um ritual de transe para poder se comunicar com os antepassados. Nesta conversa, não usa o vocabulário comum, mas uma língua estranha, indecifrável, uma espécie de glossolalia (dom sobrenatural de falar idiomas desconhecidos). "A poesia se parece com este fenômeno: ela é por vezes um discurso que ninguém entende. Ao mesmo tempo, é um diálogo do poeta com a sua história e com seu país. A Grande Fala do Índio Guarani surgiu como uma conversa minha com tantas coisas que aconteciam ao meu redor naquela época", explica. A Catedral de Colônia surgiu em sentido oposto, embora chegue a destino semelhante. Quando lecionava na Alemanha, o poeta se deu conta de que o templo principal da cidade de Colônia havia assistido desde 1248, ano de seu início, aos acontecimentos mais importantes do passado da Europa. Napoleão invadiu a região e hospedou seu exército dentro do prédio. Também foi um edifício sobrevivente da Segunda Grande Guerra. "Para um brasileiro, que tem uma atmosfera histórica muito rala, pálida, malcontada, é um choque dar de cara com toda aquela tradição", diz Sant'Anna, que repassou em versos, diante da catedral, a própria biografia e a vida brasileira, traçando uma metáfora entre o fazer poético, a História e a construção de um lugar de culto ao longo dos séculos, estando sempre sujeito a recomeçar. "Não passo de um índio atônito diante de uma igreja maravilhosa. Chego a imaginar um carvanal alucinatório em frente do portal, uma alegoria no tempo e no espaço por onde desfilam Carmen Miranda, Fidel Castro, Júlio César, Chiquinha Gonzaga e Villa-Lobos." Na verdade, o poema da catedral apareceu em 1985, mas essas oscilações aritmosóficas serão facilmente interpretadas pelos entendidos em ocultismo, se não preferirmos a explicação mais pedestre do erro tipográfico. Em 1978, quando apareceu "A grande fala", as "vanguardas" que se multiplicavam em nossa poesia estavam claramente exauridas em suas invenções mecânicas. Affonso Romano de Sant’Anna identificava, a essa altura, sete "movimentos" depois do Modernismo, o que lhes mostra, desde logo, o caráter artificial. Era caso de perguntar, mais uma vez: "Que país é este?", título do seu livro de 1980. Ele era, escrevi então, "o grande poeta brasileiro que obscuramente esperávamos para a sucessão de Carlos Drummond de Andrade", juízo que foi mal recebido pelos que encaravam Carlos Drummond como sagrado e insuperável (no ambiente emocional do enterro, festejada poetisa declarou à televisão com gestos de desespero que a poesia brasileira havia acabado). De minha parte, assinalei a "coincidência" espiritual dos poemas affonsinos, acentuando que a sua sensibilidade brasileira se manifestava na "consciência de Pátria", realidade não apenas continental, mas também ancestral e ucrônica - tanto na "Grande fala" quanto no terremoto espiritual desencadeado em seu espírito pela catedral de Colônia.
Affonso Romano de Sant'Anna se tornou ao longo da última década uma espécie de autoridade em questões de leitura no Brasil. Vários de seus projetos foram encampados por prefeituras, como o da cidade de Juiz de Fora, que promove hoje o programa "Um Livro em Cada Casa". "As estatísticas mostram que em 93% dos lares existem televisores. Por que não alcançar o mesmo índice com o livro?", questiona. Outras boas idéias também surgidas na esteira do Proler, contudo, foram solenemente rejeitadas. A proposta de formar um fundo para promoção da leitura às custas de uma pequena porcentagem de 5% paga por papeleiros e livreiros no ato de cada negociação não vingou no Brasil. Mas é um sucesso na Colômbia. "Aqui isto não foi possível porque os editores de obras didáticas não chegaram a um acordo. Isso é chocante. Eles tinham interesse em vender livros para o governo, nada mais. Não queriam aumentar o número de leitores. Não foi nada inteligente. Aquilo mais parecia uma briga de condomínio", critica. No virar das páginas, porém, Affonso Romano prefere acreditar nos bons ventos que sopram por aí. O Proler, depois do duro golpe sofrido com a perda de apoio governamental, sobrevive no interior do Brasil e ensaia uma volta por cima. "As pessoas querem ler. Não tenho a menor dúvida. Mas muitos dos nossos conterrâneos nunca viram um livro. Nosso desafio é colocá-los cara a cara com um deles. Quando isso ocorre há um caso de amor imediato", reinvindica, e protesta a seguir contra a idéia corrente no Ministério da Cultura de que os investimentos de leitura devam se concentrar na infância. "A leitura não é como a catapora e outras doenças que pegam ou não pegam quando a gente é criança. Temos inúmeros casos para contar de gente que se descobriu leitor na idade adulta." (JCF) [Gazeta do Povo, Caderno G, 05/01/99] |