A poesia tem morrido com uma overdose de cultura, que transformou a sua fruição em um exercício de decifrar enigmas. Jovens que mal foram alfabetizados, já iniciam-se citando - e citando de forma errada - os poetas ditos centrais, no desespero adolescente e egótico de estabelecer conexões que garantam a sua inclusão na periferia destas obras. Produzindo poemas livrescos, tudo que eles conseguem é criar a náusea do poético. Para estes pequenos monstros líricos, tudo é literatura. Otto Maria Carpeaux dizia que cultura é aquilo que sobra quando esquecemos tudo que lemos. Seria, então, correto pensar que poesia é aquilo que conseguimos obter quando esquecemos nossas leituras. Sendo o poeta afetadamente literário um pervertido das letras, ele presta um desserviço. Quem lê um poema rarefeito de qualquer sumidade vanguardista do momento vai achar que, se literatura é isso, para que serve a literatura? Poderíamos então exigir a morte destes poetas para o bem e a felicidade geral da república das letras? Isso é absolutamente desnecessário, porque geralmente são natimortos. É preciso apenas saber pular os seus cadáveres e descobrir os poetas que esbanjam vitalidade. Se a poesia se divorciou do real, transformando-se apenas em um fato lingüístico, estaremos fadados a viver exilados poeticamente de nosso tempo? Nem tanto, mas é necessário um esforço para identificar onde estão as fontes poéticas do momento. Com uma antologia recém-publicada, Intervalo amoroso (L&PM Pocket, 1998), Affonso Romano de Sant'Anna dá uma amostragem de sua produção que, contrariando a imagem mais ou menos consensual do poeta cívico, revela-o essencialmente um poeta da paixão, este sentimento que se sobrepõe à lucidez e à razão. Emblematicamente, o texto de abertura, "ARS", diz: "A arte é luz e sina. A arte aluzcina. Quero aluzcinarte". Tirando o trocadilho, obtido através do uso da palavra dentro da palavra, tributo pago aos cacoetes de sua geração, o poema cifra esta relação entre arte e desvario, que no caso em questão se estende para a própria linguagem. Pertencente a um tempo de grandes esperanças, depositadas nas lutas política e estética, o saldo positivo da poesia de Affonso Romano pode ser localizado no que poderíamos chamar de mitificação do instante presente. Seus poemas não se direcionam a prospecções arqueológicas, o que seria dirigir a atenção a fatos distantes no tempo ou no espaço. Eles também não apostam na utopia que é vista pelo poeta como uma faca de três gumes, que dá alento para o homem em troca da ilusão de uma recompensa que não virá: "As utopias são ambíguas: podem aliviar o presente das fadigas, mas no futuro levam a um muro sem saída" (p.92). O que prevalece, portanto, é um espírito de realidade e de imediaticidade. O homem só conta com o presente, com a sua condição atual. Ser um partícipe deste tempo é, nesta ótica, a principal missão poética. Daí os grandes poemas de Affonso Romano versarem sobre as experiências vividas pelo homem na sociedade real e imediata, com todos os seus problemas, com as suas vilezas. Ele não posterga para dias melhores a atividade poética, optando por exercê-la no difícil momento. Assim é o seu antológico "Que país e este?", peça de indignação com a natureza explorada do país no interregno democrático dos anos 60 e 70, que intensificou as nossas mazelas. Ao acolher esta matéria espúria de um tempo podre, o poeta está se solidarizando com a sua circunstância histórica e com sua latitude geográfica. Se há este lado mais cívico de sua poesia, existe um outro, mais ligado a sentimentos particulares, em que se destacam os poemas de amor. Falar do amor não é falar de uma idéia de amor, mas da mulher amada, em carne e osso, com todas as suas particularidades, algumas nada animadoras.
Algumas vi surgir, outras aprofundei. Olho tuas rugas. Compartilho-as, narciso exposto, No teu rosto. Ponho os óculos Para melhor ver na tua pele As minhas/tuas marcas. (p.43)" Pressentindo a presença iminente da morte, o autor desenvolve esta poética do instante presente. O seu, portanto, não é um amor sublimador, projetado em um tempo outro ou em um signo da perfeição feminina, é o amor à mulher presente, que pode ser a companheira ou outra na qual ele exercita a sua permanente paixão pela amada. Onde a união entre os poemas sociais e a lírica amorosa? Esta união pode ser encontrada na paixão. Quando fala no país miserável ou na mulher diante de seus olhos, o poeta está tomado de um mesmo entusiasmo pelo objeto presente. A paixão é este sentimento ardente que só pode ser experimentado no abismático agora. A paixão não é uma recordação de alguém ou de algo que ficou retido no passado (este é um papel que cabe ao amor) e nem uma esperança de usufruir algo no futuro. Paixão é sentimento conjugado apenas no aqui e no agora. É de forma apaixonada que Affonso Romano escreve seus poemas cívicos e amorosos. A paixão, muito mais do que o amor, é uma luta desesperada contra a morte, contra o fim de tudo. Arder rapidamente, arder com urgência, verticalizando o presente. Esta condição de poeta da paixão pode ser vista ainda na própria maneira de encarar o estético. Affonso Romano de Sant'Anna não se dedica ao trabalho racional e demorado da linguagem. Não investe no paciente trabalho de ourivesaria, ele não possui a linguagem, é antes possuído por ela. Seu verso brota, arde, medra, nunca é construído, nunca é fruto de planejamentos. Trata-se de uma linguagem em estado de espontaneidade lírica, que não busca o acabamento, aceitando a imperfeição própria do ser humano:
que depois de tanto rigor, ardor, odor, horror partiram para a impureza (consciente) das formas podendo ou não rimar em ar ou ão procurando o avesso do aprendido o contrário do ensinado interessado não apenas em calar, mas em falar não apenas em pensar, mas em sentir não apenas em ver, mas em contemplar fugindo do falso novo como o diabo foge da cruz"
ego e louco cego e pouco ébrio e oco cheio de sound and gury in-sano in-mundo" [jornal Gazeta do Povo, Caderno G, 15.02.1999] |