É tempo de poeta



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(Hoje em Dia-11.1.2000)"


        Há um homem chorando na Rua Piauí, mas o que pode a Rua Piauí num mundo onde irmãos matam irmãos, onde a morte chega nos foguetes e na garganta ( que não sabe nenhuma canção) dos tanques de guerra?
        Há um homem chorando em Belo Horizonte, masa que pode Belo Horizonte num mundo onde balas extraviadas matam crianças?
        Há um homem chorando em Minas, mas o que pode Minas para melhorar o mundo?
        Há um homem chorando no Brasil, mas o que pode o Brasil para pôr uma canção na boca dos fuzis , das metralhadoras e das escopetas?
        Há um homem chorando na América do Sul, mas o que pode a América do Sul contra as lágrimas?
        Que fizeram ao homem que está chorando?
        Roubaram a mulher do homem que está chorando?
        Prenderam numa cela com grades a liberdade do homem que está chorando?
        Sequestraram a esperança do homem que está chorando?
        Não: o homem está chorando na Rua Piauí, em Belo Horizonte, em Minas, no Brasil e na América do Sul, por uma razão que já não usa mais. O homem está chorando porque leu um poema tão bom, tão bonito, tão urgente como a água na hora da sede, o pão na hora da fome, a boca na hora do beijo. O homem leu o poema "O pai" do livro" Textamentos" ,escrito por um poeta maior, poeta raro, desses que não acontecem sempre, de nome Affonso Romano de Sant'Anna, nascido em Belo Horizonte, criado em Juiz de Fora, domiciliado no Rio de Janeiro.
        No que começou a ler , o homem pensou:
        -Ah, esse pai não é apenas seu, Affonso, esse pai é meu, esse pai é da Rua Piauí, é de Belo Horizonte, de Minas, e do Brasil ,é da América do Sul.
        -Esse pai, Affonso, estava escondido dentro do meu peito como um passageiro clandestino no porão de um navio nos mares de Minas.
        -Esse pai, Affonso, com seus salmos e sua flauta domingueira, esse pai estava em três revoluções, mesmo sendo um militar, tem um coração civil.
        -Esse pai é pai de todos nós, Affonso.
        Os grandes poetas( vai pensando o homem que está chorando) deviam ser exilados nas mesas dos bares, nas coberturas dos apartamentos, na pota das fábricas, na poltrona ao lado da bela do avião, nas ilhas desertas, para que ficassem apenas fazendo poemas, assim como os pássaros cantam e as borboletas voam. Sem obrigação, por prazer, de tal maneira que nos pudessem oferecer livros tão belos e tão fortes e tão bons quanto " Textamentos", que Paulo Rocco, com sua sabedoria de livreiro, houve por bem editar.
        O homem que está chorando enxugou as lágrimas e leu todos os poemas de "Textamentos". Leu abrindo cada página ao acaso. Leu tão empolgado que sentiu vontade de subir no alto da Serra do Curral e declamar o poema "Os Bois" como quem reza ou faz um comício:"De madrugada matam os bois/ que comemos ao amanhecer./No entanto, eles tinham seus projetos:comer a erva da manhã/mascar o azul do entardecer/ e cercados de aves e borboletas/ ir adubando o dia por nascer".

Roberto Drummond


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