O gesto poético possível



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(Hoje em Dia-11.1.2000)"


        O que pode um poeta entre os homens senão amar a vida e ensinar aos homens a amá-la? São lições de amor à vida que extraímos com emoção e delícia do novo livro de poemas de Affonso Romano de Sant'Anna Textamentos, publicado pela editora Rocco no finalzinho de 1999, como a preparar uma entrada mais sábia, reflexiva e serena no ano 2000. São também ensinamentos sobre a morte esse conjunto de poemas tão bem guardados pela adequadíssima concepção gráfica de uma capa toda branca apenas tocada ao centro por uma imagem dos Anais do Rei Senaquerib (VII ac.) escritos num prisma hexagonal de argila. A imagem, finamente enquadrada numa espécie de alto relevo, parece querer desgarrar-se da capa assim como os "textamentos" do poeta alçam-se leves da página do livro nos conciliando com a idéia da morte, tornando sua imagem mais aceitável, mais cotidiana (mais "vizinha"), menos aterradora. O caráter absoluto e poderoso da poesia de Affonso corporifica-se deste modo nesse objeto sóbrio, claro, límpido: a poesia que fala diretamente aos olhos, aos ouvidos e à emoção do leitor.
        Considerado por alguns críticos como o sucessor de Carlos Drummond de Andrade, talvez esteja na qualidade direta e clara da dicção lírica destes dois mineiros que melhor se observe a afinidade que os une. A linguagem poética quanto mais depurada, mais se apruma. O sofisticado arsenal de conhecimentos reunidos ao longo da trajetória do crítico, do professor, do jornalista e do homem de letras submete-se ao jugo do poeta para transformar cultura e saber em sabedoria, converter a erudição em experiência existencial, o excesso no essencial. Os poemas do livro "Textamentos" retomam desta forma a tradição da poesia como gesto expressivo e de comunicação entre os homens. Contrariando assim o cisma da ultra-complicação das vanguardas "com ares imperiais" que resultou no afastamento do público desprezado. Eis aqui uma poesia que procura extrair "incalculáveis conseqüências" das "coisas básicas: Vinte e poucas letras de alfabeto/ e os inumeráveis textos e civilizações". Nesse sentido a poesia de Affonso Romano é clássica porque límpida e moderníssima porque sobrevivendo aos modismos deles extraiu apenas o melhor: a capacidade de síntese. Neste livro, o poeta cria suas personas poéticas : o jardineiro íntimo e cuidadoso, observador do que é minúcia e coisa comum e o cosmopolita globe-trotter que, à maneira de um Marco Polo sofisticado e contemporâneo, nos traz as novidades e maravilhas dos outros continentes. O ínfimo e o grandioso são matéria de poesia. A revelação da luminosidade suave dos pequenos momentos( "poesia é o que nos espreita") e a grandeza da experimentação do sublime ( "e ante os afrescos de Lucca Signorelli/ ajoelha e chora") são matéria de poesia. O "descompassado desejo", a vida e a morte são matéria de poesia.
        O caráter exemplar dessas lições revela-se melhor ainda no modo como o poeta medita sobre o amor maduro, como o torna presente, corpóreo: "O júbilo maduro da carne/me enternece./ envelheço, sim. E/ (ocultamente)/ resplandeço."(Velhice Erótica). Esse resplandecimento do gozo maduro, extremamente vigoroso, apaixonado e viril (conf. Modigliani e eu/ Desenhos de Picasso/ Amor de Ostra ), num país em que os poetas contemporâneos parecem recém-saídos do jardim de infância, confere aos poemas de Affonso Romano um sabor ultra-refinado, num campo da experiência humana - o do afeto e da sexualidade - que contraria as máximas do sistema capitalista e da sociedade de consumo com suas apologias do novo e do descartável. Nesse campo, o aprofundamento, a maturação, os ajustes do tempo, conferem a maestria do mestre.
        A meditação sobre a morte aparece tematizada, sobretudo, como "aprendizagem da morte". A experiência da perda dos amigos, das pessoas próximas, a constatação irônica das marcas do tempo no corpo, a reflexão sobre as cercanias da morte constituem um dos fatores da transcendência desses poemas. É verdade que, se Affonso Romano não renuncia ao registro da história e à constatação do cotidiano próximo, é nesses poemas de Memento Mori que a filosofia se irmana à linguagem poética. A poesia é, então, como ele mesmo diz: "amorosa luta com o sublime" sendo " o gesto possível que antecede o baque"
na Cristina Chiara, professora Doutora em Literatura Brasileira, UERJ


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