(Gazeta do Povo, Curitiba-17-01/2000) Iniciada por Gonçalves Dias, a dinastia realda poesia brasileira continuou com Castro Alves, Olavo Bilac, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, cada um deles marcando o respectivo período com o selo pessoal do seu temperamento na sucessão das "escolas" que representaram, mas todos relacionados pelo fundo comum de sensibilidades que os identifica como poetas brasileiros .Gregório de Matos e Tomás Antônio Gonzaga foram posteriormente incorporados, na reconstrução histórica, como fundadores da tradição que afinal veio a se constituir numa entidade ao mesmo tempo inconfundível e variada, confirmada, de momento a momento, pela constelação de poetas que deles recebiam luz e calor. De grande poeta para grande poeta, a continuidade não só parecia, mas era, de fato, evidente, de forma que, em teoria, alguém deveria " suceder" a Carlos Drummond de Andrade, assim como ele" sucedeu" a Bandeira, e Bandeira a Bilac, e Bilac a Castro Alves, e Castro Alves a Gonçalves Dias. Houve, contudo, e por inesperado, a ruptura provocada por João Cabral de Melo Neto, que se reconhecia estranho e inassimilável à essa tradição: "A poesia brasileira é uma poesia essencialmente lírica, e por issome situo na linha dos poetas marginais, porque sou profundamente antilírico". Era um cerebral no mundo poético dos emocionais, escrevendo, dizia ele, como o operário que pedra a pedra constrói uma casa.Drummond assegurou, para além de João Cabral e ao lado dele( numa convivência sem afinidades) a tradição poética brasileira, retomada, em paralelo, duas gerações mais tarde, por Affonso Romano de Sant'Anna, que " saltou" sobre a Geração 45 e o concretismo para restabelecer a linhagem dinástica interrompida nos anos 40( Textamentos, Rio, Rocco: 1999).Seus mestres, diria num poema irônico e sentimental, eram Mário, Bandeira,Drummond, Murilo, Cecília, Jorge e Vinícius: galeria de retratos de que João Cabral está conspicuamente ausente. Como acontece com os da mesma família espiritual, observei a propósito de A poesia possível(1987) , "os sucessores não são epígonos dos anteriores, mas, ao contrário, acrescentam-lhes alguma coisa, expandem o campo de visão, enriquecem a herança, alargam os horizontes mentais, afirmam, em uma palavra, a própria personalidade sem desligar-se de sua posição relativa na série de uma tradição criadora:" Assim. Affonso Romano de Sant'Anna está além de Carlos Drummond de Andrade, "não por meio de marcos materialmente cronológicos, nem em termos de qualidade, pois o raciocínio só tem sentido se admitirmos que, quanto a este último requisito, todos se equivalem e situam-se lado a lado no mesmo plano ou no mesmo nível estético". Com Affonso Romano de Sant'Anna, recoloca-se a poesia brasileira na grande criação intelectual, fruto da cultura literária, vivência pessoal, integração profunda no fluxo da civilização. O valor catalítico dessa poesia, como de toda grande poesia, é o Tempo, com maiúscula, ou seja, a percepção contraditória da permanência e da efemeridade, o sentimento de urgência que a domina, a temática da Morte( que é o outro nome do Tempo), cada vez mais insistente, cada vez mais real. Assim, num dos mais belos poemas da língua ("O Pai") , a evocação familiar é também uma grave meditação sobre o passado irrecuperável, para sempre proustianamente perdido, e sobre o remorso de termos deixado escapar a vida quando a vivíamos. Mas, é também a integração no Universo, metaforicamente representado pelas catedrais seculares, civilizações extintas, línguas mortas, antecipação do futuro, pelo " silêncio eterno dos espaços infinitos": em face das misérias corriqueiras do cotidiano, o Pai leva-o à contemplação dos astros, "Júpiter, a enorme estrela"- "peixes, ursas maiores e menores/ tudo a brilhar em mim/ estrelas que com ele eu distinguia/ e desde aquela noite/ nunca mais pude encontrar." Os camonianos desencontros do mundo conduzem também à ironia e ao sarcasmo vigativo, como na espécie de paráfrase do conto em que Machado de Assis resumiu a história da humanidade:" No primeiro dia/ o Demônio virou o universo e tudo o que nele há/ e viu que era bom" colocando implacáveis marcos quilométricos no trajeto do poeta: "Sou um homem de 47 nos/ andando na 5a. avenida de Nova York/ e vivo num mundo onde todos se devoram". Há o amor, claro está, que move o sol e outras estrelas, e há o grotesco e o ridículo de tudo, ou quase tudo, em particular na vida literária- a vida literária que, por inércia mental, ainda não reconheceu em Affonso Romano de Sant'Anna o poeta dos poetas em nossa literatura contemporânea. Wilson Martins |