(Gazeta do Povo, Curitiba-17-01/2000) Os antigos egípcios depositavam nos sarcófagos um Livro dos mortos, contendo fórmulas mágicas, hinos e orações para guiar e proteger a alma (Ka) durante a sua viagem à região dos mortos (Amenti). Affonso Romano de Sant'Anna, ao contrário, publica um guia (ou textamento) para os vivos, ainda que tenha a morte como um dos principais pólos das suas dicotomias. A perspectiva da morte, torna o poeta mais contemplativo, reflexivo e retrospectivo e o tempo dá·-lhe um olhar menos ansioso para cada acontecimento e uma visão mais sincera e franca da vida. Muitos são os poetas que costumam por no papel uma espécie de preparação para a morte, como Manuel Bandeira. Outros lidam com o ocaso transbordando paixões, liberando o amor belamente despudorado, num hino à vida, como Carlos Drummond de Andrade. Affonso Romano de Sant'Anna coloca-se no meio termo, entre Eros e Tanatos: "Amadureço na morte alheia a minha morte // buscando flores e perfumes no que enterrei. Neste sentido, o poema "Meu cão" é emblemático, símbolo e síntese do livro: Meu cão ouve comigo / o adágio da 6a. Sinfonia de Beethoven. / Gosta de música meu cão. // Deitado no tapete / ele respira o ritmo sonoro da orquestra / apascenta-se e chega a dormir ao som dos violinos. // O adágio continua. / Agora / foi uma borboleta que veio ouvir Beethoven / pousando na vidraça. // O cão, a borboleta e eu, / enquanto ao longe, na montanha, uma nuvem / se desfaz / com a imponderável melodia. Nele estão as referências recorrentes em Textamentos: o adágio, o cão e a borboleta. Se na juventude predomina o "allegro", o "adagio", segundo movimento da sonata, é lento e, por isso mesmo, o mais lírico, sugerindo e provocando a contemplação e o encantamento: "Toda vez que soa esse adágio do concerto para oboé de Mozart / paro tudo / ponho os pés sobre a mesa, como agora, / olho a lagoa em frente, cruzo os braços / e começo a levitar ("Musica nas cinzas"). É este o fundo musical do livro e um dos legados deixados nos Textamentos ó a lição de como contemplar e incorporar à existência outros legados, sobretudo os descritos no ìIntermezzo italianoî, parte da obra em que o poeta capta a poesia ìque nos espreita / pela fresta dos diasî, ao nos guiar em visitas a museus, monumentos e ruínas. Nestes caminhos, o cão, personagem de oito poemas, apresenta-se na sua primeira função mítica, a de psicopompo, isto é, guia do homem na noite da morte, após ter sido seu companheiro no dia da vida: "É já ia envelhecendo / quando aprendi a me comunicar com os cães, escreve no poema que dá título ao livro. Em harmonia com o adágio, o cão do poeta também está "adagiato", isto é acomodado, recostado como dizem os italianos. Este adagiamento , ato de pousar, de reclinar-se, de colocar-se em posição cômoda para ficar à vontade (s'adagio sul canape) identifica o poeta e o cão: "Já urinei em várias partes do mundo: // nas ruínas gregas do palácio de Agamenon, / na ilha Comacima lá· em Como, // em Machu Pichu./ Urinava como um cão / marcando o território. // as vezes, não urinava, escrevia. / Escrevia, não em arvores e pedras / como ostensivo turista. / Escrevia / como um cão / marcando na história alheia / meu imponderEavel território. (Cão poeta ). Marcando territórios, Affonso, como todo poeta, busca deixar a sua marca entre os vivos, a certeza da imortalidade, como aquela dos construtores das pir‚mides, edifícios, catedrais, cúpulas e piazzas dos seus poemas, um cão guiando o caminho dos vivos, um poeta-cão guiando o caminho dos vivos. E, como o amor é o elemento mais importante da vida, ou a própria vida, voa nas páginas dos Textamentos a borboleta, (também disfarçada de mariposa), um emblema da mulher em algumas culturas, como a japonesa, com a qual o poeta dança um balé erótico, um "pas -de- deux" ao som de adágios. Essa identificação fica clara em "Lindinha", onde o poeta descreve-a como uma mulher, Cinderela, noiva, rainha. Mas a borboleta é sobretudo aspecto simbólico da metamorfose e da ressurreição: a crisálida é o ovo que contém a potencialidade do ser, a saída do casulo é a saída do túmulo, e, na Antiguidade greco-romana, a própria alma deixa o corpo dos mortos em forma de borboleta. Essa idéia de que se pode envelhecer renascendo eroticamente, mantendo o equilíbrio entre a vida e a morte está belissimamente estampada nos versos :"Estou vivendo a glória de meu sexo / a dois passos do crepúsculo. // Deus na se escandaliza com isto. // O júbilo maduro da carne / me enternece. / Envelheço sim. E / (ocultamente) / resplandeço. Tendo nascido porque o seu destino burlou a morte prematura ("Minha mãe teve dúvidas / se eu deveria nascer ou não. / Pensou em me abortar.), o poeta resplandece, sendo interessante observar que o penúltimo verso citado vem escrito entre parênteses- "-(ocultamente)-" como a simbolizar o casulo da borboleta, do qual os poetas constantemente renascem esplendorosamente, como o Affonso deste livro canditado a muitos prêmios literários. João Domingues Maia |