O poeta no auge da rima



Gazeta Mercantil - 19.1.2000

    Em "Textamentos", Affonso Romano de SantíAnna canta a maturidade falando da morte, espreitando a poesia sem olhar para o lado

        O jornalista e ensaísta Affonso Romano de Sant'Anna anda se perguntando se Textamentos é mesmo seu melhor livro de poesia, como não param de lhe dizer emocionados amigos. Crônica doença do ofício. O poeta Affonso sabe o ponto da árvore e não se espanta com o fruto. Talvez não imaginasse que à sua sombra coubesse tanta gente. Aí devagar, devagarinho, os leitores vão chegando, se aninham próximos ao largo tronco e lhe roubam, poeticamente, o descanso. Quem mandou plantar palavras íntimas? Agora trate de (es)colher a pública satisfação na ampla praça da poesia. Vai longe seu tempo de promessas; cuida agora da estação das flores.
        No seu mais novo livro, um "testamento de texto" recém-lançado pela Rocco, o autor confessa, ensina e declama versos e reversos do aprendizado da vida. Que tem na morte a grande lição e tema, presa última da maturidade. Como viver sem a morte rondando, espreitando-nos o cotidiano, interrompendo belas tardes com péssimas notícias e o alarde da perda sem volta? Desabafando em rimas a morte do amigo Hélio Pellegrino, conversando com nomes distantes imortalizados pela arte ou filosofando para o seu cachorro, Affonso Romano de SantíAnna traduz a nossa perplexidade ante o fim, sem sobressaltos, ainda que, por vezes, com idêntica indignação pelo sangue estupidamente derramado, ou pela voz precocemente calada. A morte alheia nos faz pensar (e viver) a nossa própria morte, È o que nos lembra o poeta. E nos mausoléus de palavras vivas, depositamos nossa saudade coletiva. Os curtos e livres poemas de "Textamentos" tangenciam a prosa, como admite o autor, mas não são flechas para umúnico alvo. Não poderiam faltar as musas, a beleza, o amor, e a nostalgia, já que lemos do arco da experiência no arremate da escrita. Afinal, "ìpara a ausência caminhamos aspirando a plenitude". Temos "a vida por viver", como repetiria o cronista Affonso. O amor, para ele, requer humildade, porque eterno aprendizado entre as pancadas de Beethoven e o oboé de Mozart. Enquanto ouvimos, também choramos, quem sabe de raiva, justificada assim no poema "Amor e ódio": "Te odeio porque em ti naufrago, quando era de ti que tinha que vir o meu socorro". Ser um discípulo da beleza pode ajudar na aceitação do dilema amoroso. Affonso se debruça sobre a história em suas viagens, extasiando-se diante das paisagens de sua querida Itália. E aproveita para cortejar em silêncio uma garçonete etrusca, ou degustar a lua em uma praça medieval. Ou simplesmente mirar o nada, "limpando os filtros da percepção". .
        Um sentido pleno de compreensão acompanha cada palavra atada em "Textamentos". Contemplando seu instante no auge da rima, o poeta define assim tal estado: "Entender certas coisas é libertar-se/ Como quem, mudo, canta um hino".. Mesmo que numa página anterior tenha admitido que a pesquisa de si não vai nunca terminar. E essa busca sem fim, não angustia? Talvez. Mas organiza o sofrimento, responde noutro momento.
        Ao lermos que "a poesia está na fresta dos dias", quase chegamos a lamentar a falta de capacidade para tê-la mais próxima, criá-la e recriá-la em nós e nossa época de tanta pressa e pouca observação. O triste é que muitas vezes amamos a poesia sem lhe saber o nome não como as flores que despertaram no poeta a paixão pelo inominado. Affonso Romano de SantíAnna confirma com estilo em"Textamentos" que não é preciso olhar "fora da moldura, além do quadroæ, onde estariam todas as respostas nos aguardando, suficientes e justas. A poesia pode ser conjugada diariamente, se tivermos em mente que a vida, "mais que um jeito de doer, È um modo de doar".
        E muito além da dor que lateja, o poema é a doação do poeta aos vivos e aos mortos.
        Assim, num dos mais belos poemas da língua ("O Pai") , a evocação familiar é também uma grave meditação sobre o passado irrecuperável, para sempre proustianamente perdido, e sobre o remorso de termos deixado escapar a vida quando a vivíamos. Mas, é também a integração no Universo, metaforicamente representado pelas catedrais seculares, civilizações extintas, línguas mortas, antecipação do futuro, pelo " silêncio eterno dos espaços infinitos": em face das misérias corriqueiras do cotidiano, o Pai leva-o à contemplação dos astros, "Júpiter, a enorme estrela"- "peixes, ursas maiores e menores/ tudo a brilhar em mim/ estrelas que com ele eu distinguia/ e desde aquela noite/ nunca mais pude encontrar."
        Os camonianos desencontros do mundo conduzem também à ironia e ao sarcasmo vigativo, como na espécie de paráfrase do conto em que Machado de Assis resumiu a história da humanidade:" No primeiro dia/ o Demônio virou o universo e tudo o que nele há/ e viu que era bom" colocando implacáveis marcos quilométricos no trajeto do poeta: "Sou um homem de 47 nos/ andando na 5a. avenida de Nova York/ e vivo num mundo onde todos se devoram".
        Há o amor, claro está, que move o sol e outras estrelas, e há o grotesco e o ridículo de tudo, ou quase tudo, em particular na vida literária- a vida literária que, por inércia mental, ainda não reconheceu em Affonso Romano de Sant'Anna o poeta dos poetas em nossa literatura contemporânea.

Fábio Lucas


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