O cronista é um escritor crônico



        O primeiro texto que publiquei em jornal foi ima crônica. Devia ter eu lá uns 16 ou 17 anos. E aí fui tomando gosto. Dos jornais de Juiz de Fora, passei para os jornais e revistas de Belo Horizonte e depois para a imprensa do Rio e São Paulo. Fiz de tudo (ou quase tudo) em jornal: de repórter policial a crítico literário. Mas foi somente quando me chamaram para substituir Drummond no Jornal do Brasil, em 1984, que passei a fazer crônica sistematicamente. Virei um escritor crônico
        O que é um cronista?
        Luís Fernando Veríssimo diz que o cronista é como uma galinha, bota seu ovo regularmente. Carlos Eduardo Novaes diz que crônicas são como laranjas, podem ser doces ou azedas e ser consumidas em gomos ou pedaços, na poltrona de casa ou espremidas na sala de aula.
        Já andei dizendo que o cronista é um estilita. Não confundam, por enquanto, com estilista. Estilita era o santo que ficava anos e anos em cima de uma coluna, no deserto, meditando e pregando. São Simeão passou trinta anos assim, exposto ao sol e à chuva. Claro que de tanto purificar seu estilo diariamente o cronista estilita acava virando um estilista.
        O cronista é isso: fica pregando lá em cima de sua coluna no jornal. Por isto, há uma certa confusão entre colunista e cronista, assim como há outra confusão entre articulista e cronista. O articulista escreve textos expositivos e defende temas e idéias. O cronista é o mais livre dos redatores de um jornal. Ele pode ser subjetivo. Pode (e deve) falar na primeira pessoa sem envergonhar-se. Seu "eu", como o do poeta, é um eu de utilidade pública.
        Que tipo de crônica escrevo? De vários tipos. Conto casos, faço descrições, anoto momentos líricos, faço críticas sociais. Uma das funções da crônica é interferir no cotidiano. Claro que essas que interferem mais cruamente em assuntos momentosos tendem a perder sua atualidade quando publicadas em livro. Não tem importância. O cronista é crônico, ligado ao tempo, deve estar enxarcado, doente de seu tempo e ao mesmo tempo pairar acima dele.
        Então, constatou, de novo se enganara. Os adultos, mesmo os casados, embora pareçam um ponte onde as naus já atracaram, os adultos, mesmo os casados, que parecem arbustos cujas raízes já se entrançaram, eles também não sabem, estão no meio da viagem e só eles sabem quantas tempestades enfrentaram e quantas vezes naufragaram.
        Depois de folhear um, dez, centenas de corpos avulsos tentando o amor verbalizar, entrou numa biblioteca. Ali estavam as grandes paixões. Os poetas e novelistas deveriam saber das coisas. Julietas se debruçavam apunhaladas sobre o corpo morto dos Romeus. Tristãos e Isoldas tomavam o filtro do amor e ficavam condenados à traição daqueles que mais amavam e sem poderem realizar o amor.
        O amor se procurava. E se encontrando, desesperava, se afastava, desencontrava.
        Então, pensou: há o amor, há o desejo e há a paixão.
        O desejo é assim: quer imediata e pronta realização. É indistinto. Por alguém que, de repente, se ilumina nas taças de uma festa, por alguém que de repente dobra a perna de uma maneira irresistivelmente feminina.
        Já a paixão é outra coisa. O desejo não é nada pessoal. A paixão é um vendaval. Funde um no outro, é egoísta e, em muitos casos, fatal.
        O amor soma desejo e paixão, é a arte das artes, é arte-final.
        Mas reparou: amor às vezes coincide com a paixão, às vezes não.
        Amor às vezes coincide com desejo, às vezes não.
        Amor às vezes coincide com o casamento, às vezes não.
        E mais complicado ainda: amor às vezes coincide com o amor, às vezes não.
        Absurdo.
        Como pode o amor não coincidir consigo mesmo?
        Adolescente que amava de um jeito. Adulto amava melhormente de outro. Quando viesse a velhice, como amaria finalmente? Há um amar dos vinte, um amor dos cinqüenta e outro dos oitenta? Coisa de demente.
        Não era só a estórias e as estórias de seu amor. Na história universal do amor, amou-se sempre diferentemente, embora parecesse ser sempre o mesmo amor de antigamente.
        Estava sempre perplexo. Olhava para os outros, olhava para si mesmo ensimesmado.
        Não havia jeito. O amor era o mesmo e sempre diferenciado.
        O amro se aprendia sempre, mas do amor não terminava nunca o aprendizado.
        Optou por aceitar a sua ignorância.
        Em matéria de amor, escolar, era um repetente conformado.
        E na escola do amor declarou-se eternamente matriculado.

12.6.88


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