O Brasil na estrada



        Estou voltando de um fim de semana em Friburgo. Mas poderia estar regressando de qualquer cidade brasileira, que a situação seria a mesma. É que às vezes uma melhor compreensão do Brasil a gente encontra não nos tratados, mas num simples incidente cotidiano.
        Por isto estou ali na estrada. O trânsito vai fluindo normalmente. De repente, na altura de Itaboraí (como acontece freqüentemente), o fluxo dos veículos vai ficando mais lento. Descobre-se a causa: lá está um policial de trânsito fazendo com que os automóveis entrem em fila única. Isto é uma técnica, acredito, deve dar certo na Escandinávia, nunca aqui nos trópicos. A polícia rodoviária deve ter pensado que usando este processo evitaria que na altura de Magé o trânsito virasse um pandemônio. Ela sabe que, se deixar, os motoristas vão começar a ultrapassagem pela contramão, uma vez que não há praticamente movimento aí. É uma forma também de evitar desastres.
        Este é o problema. A polícia rodoviária é brasileira, mas não conhece os brasileiros. Porque ela apenas armou o cenário para a dramatização de mais uma cena representativa do caráter nacional. Vamos começar a assistir ao rito do "brasileiro esperto" que "leva vantagem em tudo".
        Ali estou com a família tentando ser bom brasileiro. O trânsito é lento, mas se continuarmos assim chegarei ao Rio a tempo de encontrar Hans Magnus Enzensberger, esse poeta alemão que também ultrapassou os conceitos velhos de vanguarda e antivanguarda, moderno e pós-moderno e produz uma poesia politicamente ativa. Estou descendo a serra mais cedo por causa disto.
        De repente, percebo que um carro lá longe, atrás de mim, passa para a contramão e vem desabaladamente, ultrapassando a todos nós, simples carneiros ali obedientes. Com isto, ele ganhou alguns quilômetros à nossa frente.
        Mas vejo isto e percebo que lá vem outro brasileiro esperto, outro e mais outros, todos na contramão ultrapassando a manada que pacientemente acredita que a ordem social possa levar a alguma coisa.
        Em breve já não somos uma fila única, mas uma fila dupla está se formando sem que surja qualquer guarda alemão ou sueco para controlar o que quer que seja. E a coisa não pára aí. Está, ao contrário, apenas começando. A ultrapassagem agora não é só pela minha esquerda. Começam a avançar pela minha direta, contra todas as ordens de trânsito. São ônibus, caminhões e carros que vão andando metade no asfalto, metade no barro e lama. Parecemos um exército de ocupação, uma romaria. Alguns ônibus estão cheios de torcedores de futebol, que cantam e batem na lataria, hostilizando os que transitam na pista certa.
        Minha mulher adverte que daqui a pouco isto vai virar estória de Cortázar: ninguém conseguirá andar, as pessoas vão ter que fazer camping, começar a comer o que resta e esconder os cadáveres dos que forem morrendo no porta-malas dos carros.
        Nisto percebo que já não somos três filas apenas, mas quatro e cinco filas indo em direção ao caos. Lá de trás vieram outros espertinhos passando pelo matagal, pensando que seus carros são tanques. E não são meninões com tábua de surf, mas respeitáveis senhores e matronas, com bigode e pança, que na segunda-feira vão se assentar nos escritórios para dirigir o país. A irracionalidade é total. Não sei por que, me lembro de Enzensberger criticando os pseudovanguardistas: "Correndo em direção ao futuro, todos os cordeiros crêem ser pastores."
        Meu rádio, por acaso, capta a voz de um policial comentando o engarrafamento: "Câmbio/confusão geral/danou tudo/não tem mais jeito/câmbio". Agora, sim, estamos todos ali perfeitamente brasileiros e infelizes, enquanto a raiva raia sangüinea e fresca em nossos nervos. Ali estamos, achando que íamos iludir o FMI, que o capitalismo selvagem não nos prejudicaria. Ali estamos como o "deputado pianista" e o que vota seu desonesto jeton. Ali estamos como o militar, o ministro e o alto funcionário iludindo o imposto de renda. Ali estamos, posseiros e grileiros, governantes e governados, todos apalermados porque não sabíamos que a história do país pode engarragar.

25.9.85


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