Conheci Drummond aos 18 anos, ali no seu gabinete no Ministério da Educação. Havia lhe enviado uma cartinha interiorana e alguns poemas, e agora subia o elevador para vê-lo de perto. Naquele tempo, Manuel Bandeira é que era o mais celebrado poeta do país, Drummond mesmo o louvavo em prosa e verso. E eu, achando-me destemido e justiceiro, na conversa comuniquei ao poeta que eu o achava melhor e mais importante que Bandeira. Era uma maneira adolescente e estouvada de declarar amor. Fui taxativo. E estava certo. Ele sorriu desconversando porque nunca soube o que fazer quando lhe mostravam o afeto à flor da pele. Do que se falou ali durante uns quarenta minutos não me lembro muito. Estava tão encantado de poder ouvi-lo, que me lembro vagamente de algumas frases e sugestões. E o fato é que a partir daí julguei-me com permissão para incomodá-lo. Discretamente. De quando em quando. O mínimo possível. Praticando aquilo que ele recomendava - um distanciamento e uma proximidade relativos. Isto explica uma cena quase absurda acontecida entre nós. Uma cena só justificável entre dois mineiros e entre um mestre e um discípulo, que tem também suas crises de timidez. Uma outra feita, vinha eu de Minas. E lá ia em direção ao seu gabinete. Vir ao Rio e visitar certos escritores era um ritual. Um ritual que só pode fazer quem mora no interior, pois quem vive aqui não tem tempo para isto. Então, lá ia eu para o MEC. Desci ali no centro, caminhei sob as colunas do prédio de Niemeyer, passei pelos azulejos de Portinari e fui na direção do elevador. Não havia ninguém na fila. Eu sozinho. Chegou o elevador, entrei. Quando estou lá no fundo do elevador, vejo vir a figura do poeta. Também sozinho. Vem e entra naquela angustiante caixa de madeira. Mas ele vinha como sempre vinha: com os olhos no chão, cabisbaixo, meditativo, voltado para suas montanhas interiores. Vinha com o seu terno, seus óculos, sua gravata, sua mitologia, mas olhando para o chão. E ali estamos os dois. Em silêncio total. Eu, um adolescente acuada num ângulo do elevador, como se ele - o poeta - fosse o domador. De sua parte, ele é que estava acuado no ângulo oposto; e olhando para o chão de si mesmo sabia que do outro lado havia uma presença humana qualquer. E o elevador subia. Subia e nenhum dos dois denunciava a presença do outro. Ele com o olho fixo no chão. E eu pensando: não me viu. Ou melhor (como mineiro, julgando): ele não me reconheceu, não quer me ver, meu Deus, que é que eu vim fazer aqui? O homem está ocupado e eu subindo para chateá-lo. E o elevador subia. Não parava em nenhum andar. Não parecia nenhum passageiro para nos socorrer. Se entrasse alguém, talvez ele levantasse o olho do chão, quem sabe me reconheceria. Mas não entrava ninguém. E o elevador subindo. A mim parecia que o prédio do MEC tinha ficado da altura do Empire State Building, em Nova York. Mas-eis-então-senão-quando a porta se abre e o elevador chega ao andar em que o poeta trabalhava. Que fazer? Saio junto com ele? Vou andando por "acaso" no corredor e o encontro por "acaso"? Espero que ele chegue à sua sala e depois apareço lá como que por encanto - "Oh, que surpresa! Há quanto tempo...". Resultado: o elevador parou. O poeta saiu. Eu fiquei, fiquei com o elevador subindo outra vez até o fim, até onde pode subir uma pessoa confusa e equivocada. Subi e desci. Desci sem dirigir uma só palavra ao poeta que fora visitar. Tomei o ônibus para Minas sem falar com ele. Aconteceu só essa vez? Não. Muitas outras. Uma vez ficamos vendo livros, uns quinze minutos, na vitrine de Leonardo da Vinci, sem nos olharmos e nos cumprimentarmos. A mesma síndorme. O mesmo respeito. E olha que nessa altura eu já era um homem viajado, já havia morado no exterior, visitado sua casa, levado para a minha o seu arquivo e escrito minha tese sobre ele. Mas não tinha jeito. De repente, dava aquele respeito e não mexia um dedo. Ele construía uma tal atmosfera de individualidade, que às vezes era impenetrável. No entanto, outra vez nos encontramos na rua, e como eu vinha sofrendo como um cão danado do mal do amor, me fez enormes confidências sobre sua juventude amorosa... Outra vez apareceu em casa com um presente, me assustando e encantando a mim e a Marina. Era um homem imprevisto. Respeitava e se fazia respeitar, até mesmo pelos seus poucos inimigos. Agora se foi. Ele que vivia com aquele ar de quem estava mal alojado e sempre se despedindo. Na verdade, Drummond não morreu. Apenas nos deixou a sós com os seus textos. Textos com os quais temos uma intimidade total, que nada pode inibir. |