Em plena rua de Ipanema ouço uma estranha voz e localizo um mulato forte fazendo um discurso, mas com um megafone montado com copos de papelão de alguma lanchonete. A primeira impressão é a de que é alguém fazendo propaganda de alguma loja ou um desses protestantes que solitariamente querem converter o universo. Mas olho mais atentamente a figura e vejo que sua camisa está toda molhada de suor e algumas pessoas estão prestando atenção em sua fala. No seu corpo estão pregados recortes de jornais e ele gritando desinibidamente: " Quero ser Presidente da República. Quero também poder roubar para ficar rico. Quermo comer churrasco e beber uíque estrangeiro e viver em mordomia". Apesar de lermos os jornais todos os dias e estarmos abismado com o baixo nível ético do país, não é todo dia que se ouve isto assim em plena rua. Nas mãos o homem exibia seus documentos e carteiras a demonstrar que era um trabalhador. E continua: "Trabalhei oito anos na Nova América e agora estou desempregado. Dêem-me um emprego qualquer porque não posso mais ver mulher e filhos passarem fome. Não me forcem a ser ladrão. Ou, então, me elejam Presidente da República. Perplexo ainda, pensando em me aproximar do tipo, de repente, uma mulher pobre de meia-idade, com duas crianças, me aborda: "Sou a mulher dele. Não é doido, não. É fome, moço. Aqui estão os meus dois filhos, e deixei outro em casa." Estendeu-me um chapéu onde depositei o dinheiro. E enquanto a mulher dele se desculpava por essa situação, invertendi a cena, comecei a me desculpar ante ela pela situação dela e pela situação do país. Pois este é o absurdo a que chegamos: a vítima tem que pedir desculpas por ser vítima, o pobre pede desculpas por passar fome, o desempregado pede desculpas por não lhe darem emprego. O discruso cínico daquele pobre amargurado não despertou o riso em ninguém. As pessoas, ao contrário, estavam invejando a sua desgraçada coragem e em silêncio faziam coro. Aquele homem ali, aparentemente sozinho, era um espetáculo duplo. De um lado era o avesso da alegria e da esperança que milhões de brasileiros vivemos juntos na praça durante a campanha das diretas. Era o comício de um homem só. De alguém que não acredita mais em promessas e assume seu cínico protesto. Aquele trabalhadro repões publicamente uma questão fundamental da cultura brasileira. Pois os que tentam explicar o Brasil através das mais variadas teorias têm notado uma diferença fundamental entre a nossa cultura e a americana. Lá, o heroísmo e o individualismo são uma virtude. Estão aí todos os filmes de faroeste e guerra, exebindo o culto do gesto heróico. Ao contrário, assinala-se em nossa formação essa vocação de estar em cima do muro, o gosto de levar vantagem a todo o custo, exatamente como está sendo demonstrado no espetáculo aético do leilão de votos e consciências em que as pessoas se vendem aos magotes, conquanto continuem no poder. E assim reforça-se entre nós a dissolução do indivíduo e se incrementa a vocação de invertebrado. Com efeito, essa campanha eleitoral tem sido uma série de marteladas para quebrar a vértebra moral do país a golpes de dinheiro. Querem deslocar vértebras e coluna, que nenhum Nishimura fortuito poderia jamais corrigir. - Mas será que somos mesmo um país de invertebrados? Aquele anônimo trabalhador não sabe, mas ele é quem nos reanima. Ele descobriu muito bem a sua solução. Botando a boca no mundo, ele vai recolhendo o dinheiro de que precisa para sobreviver e pela denúncia que faz uma catarse de sua angústia. Desesperado, ele achou sua solução. E aí está a lição: cada um pode fazer alguma coisa. Qualquer coisa, menos ficar em pura contemplação do abismo. Se cada um fizer um pequeno gesto que seja, diariamente, para tirar esse país do pântano, acabará por encontrar eco. O comício de um homem começa com ele mesmo. Sobe no caixote de sua consciência e grita. E um grito se junta a outro grito. E, como dizia o poeta João Cabral: assim como um galo pega no ar o grito de outro galo, todos juntos, na alvorada, irão tecendo a manhã. 28.10.84
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