Eu tinha uns 17 anos. E Manuel Bandeira era, então, considerado o maior poeta do país. E com 17 anos é não só desculpável, mas aconselhável que as pessoas façam a catarse de seus sentimentos em forma de versos. Os reincidentes, é claro, continuam vida afora e podem pelos versos chegar à poesia. Morando numa cidade do interior, eu olhava o Rio de Janeiro onde resplandecia a glória litarária de alguns mitos daquela época. Então fiz como muito adolescente faz: juntei os meus versos, saí com eles debaixo do braço e fui mostrá-los a Bandeira e Drummond. Toda vez que, hoje em dia, algum poeta iniciante me procura, me lembro do que se passou comigo em relação a Manuel Bandeira. Para alguns tenho narrado o fato como algo, talvez, pedagógico. Se todo autor quer ver sua obra lida e divulgada, o jovem tem uma ansiedade específica. Ele não dispõe de editoras, e, ainda ninguém, precisa do aval do outro para se entender. E espera que o outro lhe abra o caminho e reconheça seu talento. Ser jovem é muito dificultoso. O fato foi que meu irmão, Carlos, no Rio, conseguiu um encontro nosso com Bandeira. E um dia desembarco nesta cidade pela primeira vez, pela primeira vez vendo o mar, pela primeira vez cara a cara com os poetões da época. Encurtarei a estória. De repente, estou subindo num elevador ali na Av. Beira-Mar, onde morava Bandeira. Eu havia trazido um livro com centenas de poemas, que um amigo encadernou. Naquela época escrevia muito, trezentos e tantos poemas por ano. E não entendia por que Bandeira ou Drummond levavam cinco anos para publicar um livrinho com quarenta e tantos poeminhas. A necessidade de escrever era tal, que dormia com papel e lápis ao lado da cama ou, às vezes, com a própria máquina de escrever. Assim, quando a poesia baixava nos lençóis adolescentes, bastava pôr os braços para fora e registrar. E assim podia dormir aliviado. Mas o poeta havia pedido aos intermediários que eu fizesse uma seleção de textos. O que era justo. E Bandeira tinha sempre uma exigência: o estreante deveria trazer algum poema com rima e métrica, um soneto, por exemplo. Era uma maneira de ver se o candidato havia feito a opção pelo verso livre por incompetência ou com conhecimento de causa. Abriu-se a porta do apartamento. Eu nunca tinha estado em apartamento de escritor. A rigor não posso nem garantir se havia visto algum escritor de verdade assim tão perto. E não estava em condições emocionais de reparar em nada. Fingia uma tensa naturalidade mineira. O irmão mais velho ali ao lado para garantir. A conversa foi curta. Tudo não deve ter passado de dez ou quinze minutos. Me lembro que Bandeira estava preparando um café ou ch;a e nos ofereceu. Havia uma outra pessoa, um vulto cinza por ali, com o qual conversava quando chegamos. Bandeira se levantava de vez em quando para pegar uma coisa ou outra. E tossia. Tossia, talvez já profissionalmente, como tuberculoso convicto. Lá pelas tantas, ele disse: pode deixar aí os seus versos. Não precisa deixar todos, escolha os melhores. Vou ler. Se não forem bons, eu digo, hein?! - Claro, é isso que eu quero - respondi juvenilmente, certo de que ele ia acabar gostando. Voltei para Juiz de Fora. Acho que não esperava que o poeta respondesse. Um dia chega uma carta. Envelope fino, papel de seda, umas dez linhas. Começava assim: "Achei muito ruins os teus versos". A seguir citava uns três poemas melhores e os versos finais do "Poema aos poemas que ainda não foram escritos". Oh! gratificação! ele copiara com sua letra queles versos: "saber que os poemas que ainda não foram escritos/ virão como o parente longínquo,/ como a noite/ e como a morte." Não fiquei triste ou chocado com a sua crítica sincera. Olhei as bananeiras do vizinho com um certo suspiro, esperançoso. Levantei-me, saí andando pela casa, como um ar de parvo feliz. Eu havia feito quatro versos que agradam ao poeta grande. A poesia, então, era possível 20.4.86
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