Apenas um tiroteio na madrugada



        São 2:30h da madrugada e eu deveria estar dormindo, mas acordei com uma rajada de metralhadora na escuridão. É mais um tiroteio na favela ao lado.
        Além dos tiros de metralhadora, outros tiros se seguem, mais finos, igualmente penetrantes, continuando a fuzilaria. Diria que armas de divesos calibres estão medindo seu pode de fogo a uns quinhentos metros de minha casa.
        No entanto, estou na cama, tecnicamente dormindo. Talvez esteja sonhando, talvez esteja ouvindo ainda o tiroteio de algum filme policial. Tento em princípio descartar a idéia de que há uma cena de guerrilha ao lado. Aliás é fim de ano, e quem sabe não estão soltando foguetes por aí em alguma festa de rico?
        Não. É tireteio mesmo. Não posso nem pensar que são bombas de São João, como fiz de outras vezes, procurando ajeitar o corpo insone no travesseiro.
        Estou tentando ignorar, mas não há como: é mais um tiroteio na favela ao lado.
        Se fosse durante o dia, talvez saísse ao terraça para olhar o que sucede. Muitas vezes vi carros de policiais estacionados na boca da favela, homens subindo o morro com escopetas e metralhadoras, com os corpos colados aos barracões, como em cena de filme, numa aldeia do Vietnã. Dos prédios ao lado, os moradores com a cabeça para fora das janelas, espiando, acompanhavam a fuga dos marginais se enfiando em moitas e despencando encosta abaixo.
        Meu corpo quer dormir. Afinal, é apenas mais um tiroteio na favela ao lado, amanhã tenho que trabalhar e esse filme eu já vi. Penso isto antevendo que na manhã seguinte as filhas comentarão o tiroteio como se comenta um capítulo da novela, e isto me intriga. O que fazem com os corpos das vítimas? Há um canibalismo diário? Há um cemitério clandestino lá em cima? Também nunca vi ambukância recolher feridos. São tão ruins de mira assim?

        Alguns minutos se passam. Não sei se foram dez ou vinte. Nessa atmosfera de sono não se tem muita noção de tempo. Súbito, novas rajadas de metralhadora perpassam pela madrugada. Se eu estivesse no Líbano, isto talvez fosse normal. É o que pensamos daqui. Não sei se no Líbano já se acostumaram a isso.
        Não sei também o que pensarão os turistas deste bairro. Pois se eu estivesse no Líbano e assistisse a um tiroteio assim, na volta ao meu país ia contar nas festas e jantares o formidável tiroteio que assisti. Exatamente como farão os australianos, americanos, alemães e espanhóis turistas que, como eu, estão em sua cama ouvindo essas rajadas de metralhadora.
        O tiroteio continua e estamos fingindo que nada acontece.
        Sinto-me mal com isto. Me envergonho com o fato de que nos acostumamos covardemente a tudo. Me escandalizo que esse tiroteio não mais me escandalize. Me escandaliza que minha mulher durma e nem ouça que há uma guerra ao lado, exatamete como ela já se escandalizou quando em outras noites ouvia a mesma fizularia e eu dormia escandalosamente e ela ficava desamparada com seus ouvidos em meio à guerra.
        Sei que vai amanhecer daqui a pouco.
        E vai se repetir uma cena ilustratica de nossa espantosa capacidade de negar a realizade, ou de diminuir seu efeito sobre nós por não termos como administrá-la. Vou passar pela portaria do meu edifício e indagar ao porteiro e aos homens da garagem se também ouviram o tiroteio. Um ou outro dirá que sim. Mas falará disso como de algo que acontecesse inexplicavelmente no meio da noite.
        No elevador, um outro morador talvez comente a fuzilaria com o mesmo ar de rotina com que se comenta um Fla-Flu. E vamos todos trabalhar. As crianças para as escolas. As donas-de-casao aos mercados. Os executivos nos seus carros.
        Enquanto isso, as metralhadoras e as armas de todos os calibres se lubrificam. Há um ou outro disparo durante o dia. Mas é à noite que se manifestam mais escancaradamente.
        Ouvirei de novo a fuzilaria. Rotineiramente. É de madrugada e na favela ao lado recomeça o tiroteio. Não é nada. Ouvirei os ecos dos tiros sem saber se é sonho ou realidade e acabarei por dormir. Não é nada. É apenas mais um tiroteio de madrugada numa favela ao lado.

2.1.91


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