De Aurélio Buarque de Holanda, que nos deixou esta semana, guardo algumas lembranças. Todas alegres. Uma vez, por exemplo, estávamos num congresso de escritores em Brasília. Assentados no auditório ouvíamos as doutas palavras que eram ditas no palco onde alguém proclamava as virtudes de um texto literário. A rigor, o texto em questão era a "Canção do exílio", de Gonçalves Dias, que até dez anos atrás todos os brasileiros sabiam de cor, não exatamente por causa da ditadura recente, mas porque era texto que aparecia em todas as antologias escolares. Quem tem mais de trinta anos e estudou português e não a famigerada comunicação e expressão se lembra dos primeiros versos:
Onde canta o sabiá, As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Mal se pronunciou esta frase, ouviu-se do fundo do auditório um vozeirão contestando e reclamando: - Perdão, mas esta idéia é minha. A platéia voltou-se estupefata. Era Mestre Aurélio, que levantando-se da poltrona e encaminhando-se desassombradamente para o palco continuou falando: - Sim, esta idéia é minha. Tive poucas, não sei se terei outras e tenho que defendê-las. Isto posto assumiu seu imprevisto lugar à cabeceira das idéias e fez um brilhante aparte que virou uma conferência. Sabia e gostava de falar. Uma vez dava uma entrevista na antiga TV Rio. E a entrevistadora, sabendo que ele quando se apoderava da palavra não a largava mais, preveniu-o: - Mestre Aurélio, temos só quinze minutos de entrevista. Quando faltarem cinco minutos para acabar, faço-lhe um sinal cutucando-o com os pés por debaixo da mesa. E assim combinado, lá ia transcorrendo a conversa. Faltando os cinco minutos, a entrevistadora lhe dá o toque de pé, discretamente. O professor falando. E ela dizendo: - Como nossa entrevista está chegando ao fim... - e ele falando, e ela cutucando. - Professor, temos infelizmente que terminar - e ele calmamente dissertando. - Professor, receio que... - e ele entusiasmadíssimo. Resultado: outro programa entrou no ar, ele não se deu conta, continuou dando sua entrevista, até que, quinze minutos mais tarde, ao se aperceber, explicou sorrindo à entrevistadora que o que tinha dizer era muito importante e não podia parar. E ele tinha razão. Outra estorinha sobre Aurélio já é clássica. Tendo que ir à Academia, uniformizado com espada e chapéu, ficou ali na Glória aguardando táxi, até que um parou. O motorista fascinado com a sua indumentária, olhando pelo retrovisor, de repente indagou: - Ainda que mal pergunte: sois algum reis? A construção da frase era estranha, mas o motorista estava jogando até com a possibilidade de "folia-de-reis" tendo em vista a semelhança entre a fantasia dos acadêmicos e a do folclore. Aurélio explicou que não, falou da Academia. O chofer não entendeu muito bem. Mas quando Aurélio lhe pediu para se apressar, porque estava atrasado, o outro atalhou confiante: - Pode deixar, doutor, que do jeito que o senhor está vestido, nada começa antes do senhor chegar. Uma outra vez, Mestre Aurélio me disse uma frase sapientíssima: "Temos que dar oportunidade às palavras". Referia-se às palavras como se fossem pessoas, objetos, roupas que se usam, coisas que se comem, parentes que a gente visita. "Temos que dar oportunidade às palavras." Um dia ainda faço uma crônica inteira sobre isto. Agora, no entanto, quem pede espaço é a poesia. Para um homem de muitas palavras, essas outras, poucas e parcas: Lá se nos foi Aurélio. Alguns dirão: foi para a última morada. Não. Foi para a última palavra. A só pronunciável de corpo inteiro. Outras palavras, amigas, foram ao enterro e choraram. Alguns ali ficaram e se tornaram inscrição. 5.1.89
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