Os que nos governam estão liberando o sinal vermelho do trânsito a partir das 22h para que escapemos da morte. O assaltante perverso pode estar na esquina e nos matará como se estivesse num noturno esporte de caça ao pombo. Várias pessoas já foram assim eliminadas, por nada e para nada. O Governo confessa assim sua incapacidade e incompetência em proteger o cidadão. Que cada um fuja como puder. É um toque de dispersar como nas batalhas insustentáveis diante de um virulento inimigo. O cruzamento. A cruz da cidade grande. O momento crucial. Morrer crucificado e não poder ressuscitar a não ser na crônica do jornal. E, no entanto, era do intenso e doce azul desse inverno que eu ia falar. Era dessa praia mais jovem do que a praia de verão, cheia de corpos adolescentes, luminosos corpos para quem o imprevisto do desastre é inimaginável. Corpos que parecem sempre em férias. Corpos que ainda não saíram da praia para a vida. Escrevi semana passada aquela crônica na qual falava das pessoas de minha geração que estão partindo. Ângela Carneiro, escritora e amiga, me manda um e-mail assinalando que, por sua vez, tem visto muitos jovens partirem. Referia-se aos que com ela freqüentavam academia, malhação, praia e expectativas. De repente, no alvoroço da festa da vida, tomam um carro, embriagados de vida e juventude, e espatifam-se desastradamente nas árvores da madrugada. E aí, ela crivou uma expressão - "morrer de juventude". Sim, a juventude também mata. E mata de diversas maneiras. Seja porque muitos dos bandidos que nos espreitam nos cruzamentos são jovens como suas vítimas, seja porque o jovem, por se julgar imortal, morre. Morre de juventude. Por achar que a morte é assunto exclusivo dos mais velhos, a juventude colide intempestivamente com ela - a morte. Vejam as estatísticas. Às vezes as guardo, às vezes, não. Na hora em que preciso nunca as encontro. Mas o que sei é que vocês também sabem: que os jovens morrem muito entre os 17 e 25 anos, e morrem de tiros e morrem de desastres. Morrem assim mais do que morrem de doenças. Morrem nas nossas cidades, mais do que antes morriam nas guerras. Os jovens brincam de deuses. Vivem no olimpo da idade dourada. Têm um capital imenso à sua disposição, uma vida que se crê longuíssima. E, no entanto, a juventude é como uma febre, uma febre florida, mas que se despetala em opaca pele. E aos 30 vem o primeiro estremecimento ou baque, começam a aparecer as primeiras promissórias assinadas distraidamente e que agora viram dívida e cobrança pessoal e social. Dos Estados Unidos, Diane Grosklauss me manda um e-mail também sobre esse assunto: as pessoas que se vão e os emblemas de nosso tempo. E refere-se ao John-John Kennedy que acaba de desaparecer com a mulher e a cunhada nas águas do Atlântico. Não que fossem exatamente adolescentes, mas em torno do nome Kennedy há essa aura que os transforma em deuses solares e fascinam pelo trágico e meteórico desfecho de suas vidas. A televisão e os jornais estão aí mostrando de novo as fotos do John menino, coisa de nosso tempo. Mas Diane se surpreendeu, que, ao comentar esse fato com a balconista de um supermercado nos Estados Unidos, percebeu que a moça não sabia direito quem era aquela figura. Memórias também se esvaem. Ou podem ser assassinadas ou porque, na encruzilhada da História, podem ressuscitar. Estava eu vendo uma série de reportagens da BBC sobre as Cruzadas. Em vez de sair à rua à noite ficar sangrando numa encruzilhada suburbana, preferi ficar ali angustiado numa encruzilhada histórica. Confesso que estava horrorizado, já com engulho na alma, envergonhadíssimo com a espécie humana. Narravam-me que após o cerco a uma cidade muçulmana, os cruzados cristãos assaram as crianças árabes e as comeram. Antes, um tal de Renaud Chatillon já havia arrasado Chipre e mandado cortar o nariz de todos os religiosos inimigos. Ai, leio no jornal essa notícia: "Novecentos anos depois de um dos mais violentos episódios da História, ocorrido em Jerusalém, um grupo de cristãos evangélicos chegou ontem à cidade para pedir perdão pela morte de 40 mil muçulmanos e de seis mil judeus, em 36 horas de massacre durante a Primeira Cruzada cristã". Esses cristãos evangélicos eram descendentes físicos e espirituais dos cruzados e levavam seu pedido de perdão num documento em inglês, árabe e hebraico, e leram-no, ali, em Jerusalém. Eu já tinha lido há algum tempo uma coisa terrível sobre essas Cruzadas. Por exemplo, que em 1212 houve uma Cruzada das Crianças. Vocês podem imaginar isto? Como é que um bando de meninas e meninos decide sair de suas casas na França e na Alemanha e ir em demanda de Jerusalém? Antes já haviam feito cruzada de todo tipo. A primeira foi comandada por um tal de Pedro o Eremita, que saiu espalhando que quem fosse batalhar contra os árabes e morresse iria direto para os céus e que se voltasse teria todas as dívidas e pecados perdoados. Resultado: juntou-se a ele um bando heterogêneo que saiu saqueando e matando no caminho da Terra Santa, até que foram dizimados pelos inimigos. E com a Cruzada dos Meninos não foi diferente. Muitas das crianças alemãs morreram ao tentarem cruzar as montanhas geladas dos Alpes, e as francesas mal chegaram a Marselha foram transformadas em empregadas e jogadas em bordéis. É desse episódio absurdo que surgiu a lenda do Flautista de Hamelin, que passou tocando sua flauta e arrastando as crianças atrás de si. Enquanto escrevo a manhã continua insultuosamente azul, a juventude irresistivelmente eterna sobre as praias, mas nossos governantes não sabem o que fazer com os meninos e meninas do país. Vamos tirá-los dessa espécie de trabalho escravo em que os metemos? Vamos tirá-los das ruas? Vamos, é claro. Discursamos sobre isto. Legislamos sobre isto. E nem por isto. Abro o jornal e leio outra notícia: "a nova homepage da Cruzada do Menor, www.cruzadadomenor.org.br, está no ar para arrecadar recursos para projetos sociais". Estou na Idade Média? Em que cruzamento estou à mercê de árabes e cruzados? 21.7.99
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