Eles estão se adiantando



        Ao ver a fotografia de Julião junto à notícia de sua morte, sentimentos e sensações proustianas começaram a se movimentar dentro de mim. Morrera aos 84 anos, no México, onde vivera exilado, Francisco Julião, o líder das Ligas Camponeses que, nos anos 60, arrebatara o imaginário dos jovens com a utopia da justiça social e econômica no campo.
        Nunca estive com ele. Minto. Nunca estive com ele durante a febre revolucionária que nos acometeu nos anos 60, embora tivesse participado daquela efervescência. Vi-o discursando certa vez na Cinelândia dizendo que era preciso ser radical, e que se radical era tomar as coisas pela raiz, portanto era preciso desenraizar o que a exploração capitalista nos trazia.
        Tenho a impressão de que com o correr do tempo ele foi amaciando. Encontrei-o uma única vez e numa situação insólita. Foi há uns cinco ou seis anos, no Teatro Municipal do Rio, no intervalo não sei se de uma ópera ou balé. Ele veio se dirigindo a mim, aquele homem pequeno com o ar nordestino e humilde e começou a falar não de revolução ou reforma agrária, mas sobre uma crônica de amor que eu havia escrito, cuja cópia ele perdera.
        A princípio fiquei na dúvida se Julião era Julião. Em parte porque depois de certa idade, os nomes das pessoas apagam-se de suas faces quando elas nos reencontram e, por outro lado, porque ele conversava comigo sobre erotismo e amor e não sobre revolução. E, percebendo a minha vaguidão simpática, teve a gentileza de dizer seu nome, ao que hipocritamente recuperado de minhas incertezas, acrescentei aquele "imagina! claro! o Julião de minha juventude!".
        O doce pássaro da juventude.
        Ou, como dizia Paul Éluard: Ontem - era a promessa, ontem - era a juventude.
        Outro dia fui falar de uma coisa qualquer acontecida nos anos 60 e um amigo mais jovem achou que eu estava falando do século XVIII. E ao rememorar Julião nas vésperas do século XXI, parece que estou aludindo aos 300 de Esparta ou, então, a Rolando, que pereceu no desfiladeiro de Roncesvales. Só que, por crueldade do destino, muitos de nós não morremos no meio da batalha, mas tivemos que, vivos, assistir ao desmoronamento e ao aviltamento de nossas ilusões.
        As ilusões estão se desfazendo. As pessoas estão partindo. Há muito.
        Há pouco tempo, em Ipanema, num sábado de manhã, encontrei-me com Walter Poiares. Vinha simpático e falante, como sempre, e estava sensibilizando com a conversa que acabara de ter, logo ali adiante, com um almirante de 92 anos de idade. É que o almirante havia lhe dito, emocionado, que há muito tempo não conversava com alguém que tivesse vivido no mesmo mundo que ele viveu. Estava excitado o Almirante, e não queria interromper a conversa, porque se se despedisse seria como se se afastasse da sua própria realidade e tivesse que se exilar num presente onde os mais jovens tinham outros referentes que não os dele. Aquela conversa era uma bóia de salvação num oceano de esquecimentos.
        Entendo a emoção do Poiares e do Almirante. Uma das vezes em que tive a percepção clara de que meu mundo estava se extinguindo foi quando numa aula disse naturalmente aos alunos: "Como vocês se lembram, no tempo de João Goulart...". Ao que uma aluna na primeira fila disse: "Não, eu não me lembro, eu não tinha nascido".
        Nos anos 60 havia uma canção em inglês que dizia: "Aqueles é que eram tempos, meu amigo! e eu pensava que nunca acabariam"...
        Outro dia tive que ler a notícia da morte do Albino Pinheiro. Assim, de repente. Mas achei bonita a homenagem que lhe fizeram aprontando um carnaval, em pleno cemitério, na sua despedida. Não faz muito, caminhávamos pela praia conversando sobre um projeto do Museu do Carnaval, que, juntamente com Hiran Araújo e Ricardo Cravo Albin, queríamos ver concretizado.
        Pode ser que na próxima década de 60, em 2060, isto aconteça.
        No mesmo dia em que Julião morreu, sem o saber, estava eu fuçando minha estante de livros e separando, para uma antologia, o "Poema para Pedro Teixeira assassinado". Era um poema feito naqueles revolucionários anos da UNE e do Violão de Rua, sobre aquele camponês morto pelo latifúndio nordestino, lá em Sapé, cuja história foi recuperada no filme de Eduardo Coutinho.
        Quarenta anos depois, são os sem-terra que estão acampados em nossa consciência.
        Tirar livros da estante. Botar mortos no caixão.
        Mal peguei aquele poema, reencontrei um livro autografado por Geir Campos, imaginem, em 1955. Geir morreu outro dia. Eu tinha uma relação de ternura agradecida por ele. Adolescente, no interior de Minas, ouvia um programa - "Poesia viva" - que Geir fazia na Rádio MEC. Era uma janela de informações e aprendizado. Havia lá um concurso de poesia. Quem ganhasse recebia um livro autografado, e Geir me enviou "Poesias escolhidas", de Bandeira. Um alumbramento. Numa das últimas vezes que nos falamos, eu dirigia a Biblioteca Nacional e ele mandou me devolver um livro da Biblioteca que um ex-diretor da mesma lhe dera de presente. Era uma obra rara escrita em alemão.
        Pois já que as pessoas estão se despedindo, outro dia, abruptamente, foi-se Dias Gomes. E, de repente, foi-se Carlos Kroeber, o Carlão.
        Eles estão indo, os meus amigos. Mas, por favor, não sintam qualquer coisa de mórbido nesta crônica. É apenas uma anotação à margem. Anotação que talvez tenha se tornado mais enfática, porque junto com este século que está acabando, acabei um novo livro de poemas e me dei conta de que, como no anterior, há vários poemas sobre morte. Mas, não a morte mórbida, doentia, senão a morte vivida, construída, da maneira mais saudável possível. É preciso aprender a morrer. Edificar a morte, ir distraidamente estudando a morte:
Não me canso de estudar a morte.
Como é fértil e reverbera novos ângulos
conforme a hora em que a entrevejo
na minha trajetória.
Preencho-a de significados vários.
Ela cresce, me fascina, me enriquece,
me habita viva feito fera
que parece domesticada e, no entanto,
soberana
- mansamente me devora.

14.7.99


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