Monólogo (ou solilóquio) era no teatro a cena em que o personagem, falando consigo mesmo ou com alguma entidade imaginária, exprimia em alta voz os seus mais íntimos e perturbadores sentimentos. No final do século passado, a literatura inventou o "monólogo interior": um momento, também de introspecção, no qual o personagem do romance deixava fluir seu pensamento sem ponto nem vírgula, num jorro surrealista e onírico de sensações. Dizem que foi o francês Edouard Dujardin quem inventou isto, mas Joyce foi quem capitalizou a descoberta. Pois agora a telefonia celular acaba de criar o monólogo exterior. Como o precedente monólogo interior, o monólogo exterior telefônico também não carece de pontos e vírgulas, é, em muitos casos, um encachoeirado de palavras aflitas e desnecessárias, pura sonorização de ansiedades. Mas diferentemente do monólogo teatral clássico, não nasce de uma introspecção, não é um momento grave de intimismo, não é nada metafísico, é, na maioria das vezes, um blablablá para ocultar o vazio e o oco de muitas cabeças. Não, não sou contra o progresso e o avanço tecnológico, adianto aos pós-modernos. Estou apenas tentando circunscrever um dos mais importantes fenômenos sócio-psíquico-comunicativos desses dias. Dizem que o Brasil já tem uns dez milhões de celulares. Mas a França, que possui um quarto de nossa população já registra 13 milhões desses aparelhos e até o fim deste ano alcançará 20 milhões. Estão prevendo que dentro de quatro anos, 500 milhões de pessoas em todo o mundo terão seu celular particular. Não sei se isto acarretará um zumbido intergaláctico capaz de fazer colidir todos os satélites, mas, pelo que já está acontecendo, dá para imaginar o parlatório cósmico. Dizem que Freud já se referia ao telefone como uma espécie de "prótese" do homem civilizado. Ou seja, um objeto que se tornou um adendo, um apêndice em nossa vida. Freud se referia ao telefone com fio. Imaginem se ele visse o que está ocorrendo com o sem fio? Os estudiosos de nosso cotidiano assinalam que o celular acabou por fundir, misturar e compactar o que seria a vida profissional, a vida social e a vida familiar. E assim como há os teóricos da "celularmania", já há também seus historiadores - pois vivemos numa época em que a história e a interpretação da história ocorrem ao mesmo tempo, de tal modo que não sabemos se estamos vivendo a história ou a sua interpretação teórica. Pois dizem tais historiadores que já houve três momentos na evolução dessa tecnologia: primeiro o aparelho era visto apenas com guardas e funcionários da área de comunicação; depois passou para o ouvido dos executivos e dondocas; agora é símbolo de status de todos os serviçais, dos lixeiros às domésticas. Resulta daí, que os que se querem de elite comecem a ter vergonha de usar o celular em público. Vejam o que é a aceleração dos tempos. Em alguns países desenvolvidos da Europa, o telefone com fio levou cem anos para se democratizar. (No Brasil, nunca). E o celular, em três ou cinco anos, se popularizou tão avassaladoramente quanto o jeans. Os benefícios são óbvios. Vários criminosos no mundo estão sendo presos rapidamente, porque testemunhas da cena chamam a polícia imediatamente. Também dizem que os pais estão tendo melhor controle dos filhos, e os casais estão monitorando seus próprios passos. Há até uma estatística de que a metade das chamadas originam-se ou destinam-se dos e para os lares. Mas nem tudo são flores. Outro dia a televisão mostrou que todos os alunos numa sala de aula tinham celular e se o professor não agisse energicamente interditando-os, a sala se transformaria num teatro onde se executava um concerto para celulares e voz humana. Por outro lado, a famosa Brasserie Lipp, em Paris, proibiu o celular no seu recinto. E o mais ameaçador é que médicos estão alardeando que o celular dá câncer. Estava demorando. Fizeram uma experiência com ratos, pobres ratos, mas há quem diga que isto é um exagero. Vi uma charge numa revista européia onde num amplo restaurante todos estavam falando em seus celulares. Ninguém falava com ninguém presente, só com o ausente. Foi o retrato mais perfeito do que chamo de monólogo exterior. Assim como Beckett fez uma peça - "A última gravação" - onde o personagem solitário conversa com gravações que fez em certos momentos de sua vida, já imagino uma peça onde todos os personagens estarão falando entre si através do celular. Comprovariam que ninguém fala com ninguém. As pessoas falam com o celular. O interlocutor é o objeto. E isto me leva a pensar numa coisa paradoxal. Ao mesmo tempo em que os solitários estão podendo ligar para alguém e sonorizar suas ansiedades, está ocorrendo uma "banalização" da fala e da linguagem oral semelhante à "banalização" da linguagem escrita através do e-mail. As pessoas, em muitos casos, não estão falando entre si, estão falando com o aparelho; do outro lado da linha, o interlocutor é um pretexto. Ou, melhor, um pós-texto. O texto é um simples blablablá. Sentem-se melhor as pessoas externando a ansiedade ou tendo a impressão que estão conectadas com o mundo? Ou é isto mais um exercício de exterioridade, de movimento e de ação que se justifica em si mesmo como a maioria dos filmes americanos, em que acabadas as explosões, tiroteios e brigas não fica nada na cabeça de quem os viu? Por essas e por outras é que nessa sociedade enfartada de tanta visualidade e de tanto apelo à exterioridade é que é necessário valorizar a introspecção e a leitura, esta, uma espécie remanescente do monólogo interior. Falar já foi uma arte. Saber encadear os argumentos, introduzir ironizas, seduzir pelo ritmo e melodia do discurso era fundamental ao êxito social. Vindas da Antiguidade, a arte de falar e a retórica tiveram o seu apogeu nos séculos XVII e XVIII e entraram em declínio no final do século XIX. Vejam bem, não sou contra o celular. Mas não é de hoje que sinto uma inveja daquele personagem de Jean Christophe, de Romain Roland - o tio Gottfried, que tinha em toda sua vida dito apenas 70 palavras, as essenciais. 7.7.99
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