A Cimeira de Proust e Joyce



        - O que conversam as pessoas importantes? Que coisas excelsas dizem entre si os artistas? Como é o diálogo olímpico entre os deuses e como entre si falam os presidentes numa Cimeira?
        Não nos iludamos.
        Ouçamos de novo as fitas do BNDES para constatarmos como são negociadas as influências e decididos os acordos ou lembremo-nos das fitas do escândalo Watergate, nos Estados Unidos, para ouvir os palavrões e ameaças que o ex-presidente Nixon, como um Júpiter irado, desferia sobre os desafetos.
        É claro que, às vezes, homens de pensamento conseguem nos impressionar com o tipo de papo que sabem levar. Aliás, Sócrates ficou famoso por isto - por ficar batendo papo com discípulos fora dos muros da cidade, e Platão ficou tão tocado que registrou ou reinventou tudo de memória. Outra mostra disto é o famoso "Conversações de Goethe com Eckermann", em que Johann Peter Eckermann relata perorações que durante nove anos manteve com o autor de "Fausto". Confesso que nessa mesma linha de conversas fabulosas cheguei a fazer umas anotações para uma peça de teatro em que Clarice Lispector conversava com Guimarães Rosa. É que um dia me indaguei: - como é que esses dois monstros da literatura viviam na mesma cidade, freqüentavam até o espaço do Itamaraty e não se tem nenhum registro imaginário ou real de um possível diálogo entre eles?
        Pois, vejam só. Às vezes, a realidade desmente nossa ansiosa fantasia. Tomemos como exemplo dois escritores que atingiram o ápice, que chegaram ao cume e que estão na cúpula ou Cimeira da literatura do século XX: Proust e Joyce. O francês Marcel Proust com os volumes "Em busca do tempo perdido" havia se tornado célebre a partir de 1913. Asmático, sempre doentinho, queridinho da mamãe que o chamava de mon petit jaunet (meu amarelinho), mon petit benêt (meu palerminha) ou mon petit nigaud (meu idiotinha), logrou mesmo assim ser um dos grandes reinventores do romance moderno. Descobriu técnicas de descrever de maneira minuciosa, fascinante e, às vezes, irritante um determinado objeto ou uma cena. Podia, por exemplo, gastar 17 páginas para descrever uma pessoa com insônia na cama. Mas era genial.
        Já o irlandês James Joyce, em 1922, com a publicação de "Ulisses" implodiu de vez o romance tradicional. Inventou palavras, criou técnicas para contar em cerca de 850 páginas algo que ocorreu no dia 16 de junho de 1904. Na verdade, não é romance para se ler, é romance para se estudar.
        O que conversariam Proust e Joyce, os dois gigantes da literatura de nosso tempo no dia em que se encontrassem? Que coisas sublimes se diriam? Que revelações deixariam cair do banquete verbal em que se refestelavam e que poderiam alimentar a plebe e os cães vadios da literatura universal?
        Leio um livro delicioso - traduzido por Luciano Trigo - "Como Proust pode mudar sua vida" (Ed. Rocco), no qual Alain de Botton, num ensaio sem as chaturas acadêmicas (ele nem diz de onde tira as citações), narra que em 1922 Proust e Joyce se encontraram. Isto se deu no famoso restaurante Ritz, em Paris, num banquete oferecido a Stravinsky, Diaghilev e aos membros do Balé Russo, para festejar a encenação de "Le Renard", de Stravinsky. Era, como se vê, uma Cimeira artística.
        Mas, contrariando a expectativa, Joyce chegou atrasado, e pior, sem smoking. Proust já estava lá, mas como vivia doente (ele morreria nesse mesmo ano de 1922), nem tirou o casaco de pele com medo talvez de alguma corrente de ar. Mais tarde Joyce contaria como foi esse encontro entre os dois titãs da literatura: "Nossa conversa constituiu somente na palavra ‘Non’. Proust me perguntou se eu conhecia o duque fulano-de-tal. Eu respondi: ‘Non’. Nossa anfitriã perguntou a Proust se ele já tinha lido algum trecho de ‘Ulisses’. Proust disse: ‘Non’".
        O não-diálogo entre Proust e Joyce, contudo, não terminou ali. Continuou no táxi, após a ceia. Joyce, meio rústico (como os estereótipos irlandeses) entrou, sem pedir permissão, no carro que conduzia também os anfitriões da noite, Violet e Sidney Schiff. E foi logo abrindo a janela e acendendo um cigarro. Acho que inconscientemente ele queria matar acidentalmente seu concorrente no pódio da literatura do século, porque todo mundo sabia que o petit Marcel era uma flor que podia fanar-se à qualquer corrente de ar. Com efeito, repito, Proust morreu naquele ano e isto deixa Joyce sob suspeita.
        Durante o trajeto que o táxi fazia, Proust ia falando sem parar com os seus anfitriões Violet e Sydney Schiff, e Joyce o olhava meio de esguelha. Mas não se dirigiam um ao outro. Tanto não estavam interessados em trocar palavras que, ao chegar à sua casa, na Rua Hamelin, Proust cochichou no ouvido de Sydney Schiff: "Por favor, peça a Monsieur Joyce que permita que o meu táxi o leve até em casa".
        Assim foi. É possível que além daqueles dois "Non" durante o jantar eles tenham trocado um "boa noite" ao se despedir. Mas não há registro disto.
        Ia eu lendo essa narrativa no livro de Allain de Botton e já estava pensando em fazer uma crônica sobre que outro diálogo poderia ter ocorrido entre Proust e Joyce quando o ensaísta, adiantando-se ao meu gesto, criou no parágrafo seguinte um diálogo cortês entre os dois, no qual à imaginária pergunta de Violet Schiff: ("Marcel, você conhece o grande livro de James?"), Proust responderia: "Ulisses? Naturellement. Quem não leu a obra-prima deste novo século?"
        Diante disto, "Joyce enrubesce com modéstia, mas sem conseguir ocultar o seu prazer", e Violet Schiff, de novo querendo fazer conversação, insiste: "Você se lembra de algum trecho do livro? Ao que Proust imediatamente acrescenta: "Madame, eu me lembro do livro inteiro. Por exemplo, quando o herói vai à biblioteca - desculpe o meu sotaque, mas não posso resistir (começa a citar)..."
        Contudo, esse diálogo generoso não corresponde à relação que os artistas em geral mantém entre si.
        Ao ler, contudo, aquele não-diálogo entre Joyce e Proust, pensei: isto está parecendo conversa de mineiro. Aliás, Guimarães Rosa dizia que todo grande autor nasce no sertão. Proust, sem dúvida, tinha alma de mineiro. Aquela coisa de passar anos e anos num quarto forrado de cortiça ruminando na sua escrita o mundo à distância, não me engana. Por outro lado, quanto a Joyce, apesar de seus viés paulista, poderia ser mineiro, porque todo mundo sabe que o irlandês tem alma de mineiro ou vice-versa, daí aquela ironia que está em Swift, Shaw, Beckett etc. Só não é totalmente mineiro aquele diálogo, porque se Proust realmente mineiro fosse, ao ser indagado se havia lido o "Ulisses", em vez de ter dito "Non", teria perguntado a respeito de Joyce exclamativamente: "Ah, mas ele também escreve?".

30.6.99


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