20/10/98 Todo ditador se julga um Deus. É essa pretensão, aliás, que levou Pinochet a assumir o destino das vidas de seu país. Como um Deus, o ditador quer imperiosamente construir o seu país à sua imagem e semelhança. Alguém pode dizer: - Mas o dirigente democrático também tenta fazer isto. Sim, ele tenta. Mas sabe que o seu ego não pode, nem deve, sozinho, configurar o ego público. Num regime democrático estão ali o Congresso, as lideranças políticas, comunitárias, religiosas, militares, a imprensa e a própria voz gritantemente muda das ruas. Mas na ditadura não existe mediação entre o ego do dirigente e o ego do povo. Este tem que ser igual àquele. Perguntem a Hitler, indaguem a Stalin, pesquisem Mao-Tsé-Tung. Há aí um jogo de espelhos. Um reflete o outro. Reflete, mas sem refletir. Reflete, mas sem reflexão. Ou seja: há a repetição da imagem de um no outro, mas não há pensamento crítico - aquilo que transforma o indivíduo em cidadão. A própria palavra ‘‘ditadura’’ explicita isto. Vem de ‘‘ditado’’. Exatamente como ocorre com o professor: ele dita e a classe escreve. A função do aluno é copiar. Nada de originalidade. Para usar uma expressão que entrou em uso recentemente, é o exercício do Pensamento Único, da escrita única. Na ditadura é assim: escreveu não lei, o pau comeu. Por isto, há que tomar cuidado até mesmo com os professores no poder, porque eles tendem a achar que os outros não sabem nada, só eles têm a palavra certa. No entanto, o inimaginável aconteceu. Prenderam Pinochet. Assim, sem mais nem menos. Da noite para o dia. Ouvi a notícia e não acreditei. Ouvi outra vez, tornei a não acreditar. Foi necessário reouvir para crer. É que de tanto ouvir o que não queremos, quando se ouve o de que carecemos, desconfiamos. Pois prenderam Pinochet lá na Inglaterra, quando ele se instalou ali para uma cirurgia. E o fizeram quando ninguém mais pensava nisto. Seus crimes vêm de 1973 e os crimes antigos, diz a perversa legislação, com o tempo, são prescritos. E o mais curioso: isto foi a pedido da justiça espanhola que quer esclarecer o assassinato de cidadãos espanhóis durante a repressão no Chile. A gente (quer dizer, outros, não eu) já estava até esquecendo que na era Pinochet foram mortas umas cinco mil pessoas, sem contar os milhões de sonhos destroçados. De tanto se falar no milagre econômico chileno a gente (quer dizer, os outros, não eu) já achava que esse número não era assim tão alto e que se alguns morreram, foi para a felicidade geral de todos. Mas ainda outro dia, para não deixar o reflexo da história ir se refletindo equivocadamente, saíram publicados nos jornais do mundo, os diálogos do general e seus comandados momentos antes de ordenar o bombardeamento do palácio onde estava residindo e resistindo Allende. Era para matar mesmo. E se Allende se entregasse e fosse preso a ordem era liquidá-lo, por exemplo, num desastre aéreo. E pensar que Pinochet era auxiliar de Allende. Como se vê, todo dirigente é sempre um criador de monstros. Como vocês sabem, tenho umas teorias sobre isto. Não há uma pessoa de caráter que exercendo o mando não tenha criado à sua revelia, os seus monstrinhos. Eles rastejam e, de repente, vicejam e assumem a própria cara. Seus primeiros gestos são sempre de destruir o outro que secretamente invejavam. Mas o inimaginável pode acontecer. E aconteceu. O que nos dá um alento, uma nítida esperança. Se eu soubesse de cor citaria aqui uma frase de Rui Barbosa que, paradoxalmente, vi escrita na parede de um antigo DOPS - aquela polícia política da nossa ditadura. Dizia algo assim: de tanto ver a injustiça prosperar, de tanto ver isto e aquilo, o homem chega a desesperar da justiça, da bondade, etc. Portanto, é necessário que, vez por outra, o bem vença. Porque do jeito que está, ficou insuportável. O mal estava e está dando de lambuja, de 10 a 0. Um golzinho de vez em quando a nosso favor, pode fazer com que tenhamos a esperança de que o bem saia da terceira divisão (onde foi parar o Fluminense), regresse da segunda divisão (onde caiu Flamengo) e, quem sabe, aspire a disputar qualquer coisa, numa nova rodada do interminável campeonato que, dizem, começou no Jardim do Éden. Pode ser que o Rei da Espanha e a Rainha da Inglaterra acabem se entendendo e que não aconteça nada a Pinochet. Mas o fato é que, pelo menos do ponto de vista simbólico, alguma coisa já é alguma coisa. O ideal seria esperar agora que algum juiz processasse e exigisse indenização também dos Estados Unidos por terem patrocinado e articulado aquele golpe de estado em 1973. Mas talvez isto já seja querer demais. Ou não? A justiça às vezes nos surpreende. Na ‘‘Época’’ desta semana há um diálogo-denúncia dos deputados José Genoíno e Miro Teixeira, que merece destaque para que se entenda melhor os métodos do governo. Diz Genoíno sobre o Congresso Nacional: ‘‘Viramos uma casa de homologação. No dia de grandes votações, os ministros vão ao plenário da Câmara ou do Senado oferecer cargos e favores em troca de votos. Os celulares não param de tocar no plenário e, em muitas ligações, é o próprio FH cabalando os últimos votos e negociando com os deputados. Ficamos desmoralizados’’. |