Três fatores, além de um quarto motivo, me levam a escrever sobre "A vida é bela" de Roberto Benigni. O primeiro fator é que este é um filme, que do ponto de vista de análise formal, pode ser chamado de "carnavalizador". O segundo é o fato de o filme passar no Brasil exatamente durante o carnaval. O terceiro é a coincidência de este filme concorrer ao Oscar ao lado do nosso "Central do Brasil". Algumas pessoas já notaram as semelhanças entre "A vida é bela" e "Central do Brasil". Ambos contam histórias de um adulto com uma criança. No filme italiano, um pai com um menino num campo de concentração. No filme brasileiro, uma mulher com um menino em busca de sua família. As coincidências tornam-se mais curiosas: alguns personagens têm o mesmo nome em ambos os filmes. No italiano: a mãe do menino é Dora, é o menino Josué. No brasileiro, a personagem que escreve cartas para os pobres é Dora e o menino desamparado é também Josué. As coincidências se agravam até nas intenções. Tanto Waltinho Moreira Salles quanto Begnini confessaram que queriam botar o nome de Jeová nos seus personagens infantis. Desistiram pelas mesmas razões óbvias. Ficou, então, Josué. Não sei se pensaram nisto, mas Josué é aquele que, simbolicamente, atravessa o deserto com Moisés, e consegue entrar na Terra Prometida. Ambos os meninos fazem a travessia: um, da tragédia brasileira; outro, da tragédia nazista. E se o filme brasileiro não é exatamente esperançoso, o italiano é gritantemente otimista, bradando, ao final: "a vida é bela". Se Waltinho, descendente de uma das mais ricas famílias brasileiras, optou por narrar dignamente a miséria social da tragédia brasileira, Benigni, que teve seu pai prisioneiro num campo de concentração, decidiu narrar a tragédia do holocausto judeu, porém, em termos de tragicomédia. Waltinho narra o holocausto brasileiro na figura dos retirantes confinados no campo de concentração das grandes cidades. Fez um filme que o FMI inteiro deveria assistir antes de mandar botar cercas de arame farpado na economia brasileira e acender os fornos da recessão. E as semelhanças entre uma obra e outra, apesar das diferenças, são tantas, que necessário seria este jornal inteiro para comentá-las. Restrinjo-me apenas a uma, àquela que citei na ocasião em que comentei aqui o filme brasileiro: a cena do trem. Aliás, deveria é ter centrado a crônica toda nesta cena rápida. No filme italiano o pai explicando ao filho como era curioso, interessante e até divertido o trem miserável que levava os prisioneiros judeus para o campo de concentração; no filme brasileiro, a entrada aos magotes, de centenas de suburbanos pelas janelas e portas do vagão, amontoando-se todos como gado, indo também para um miserável trabalho forçado na grande cidade. Portanto, quem quiser que troque os títulos e diga: "Auschwitz Station" ou "Central de Auschwitz". Dizem que o Brasil é o país do carnaval. Outros povos e os turistas ficam perplexos ao ver como o país com as mais dolorosas e gritantes diferenças sociais do planeta pode esbanjar tanta vitalidade e alegria como se estivéssemos no melhor dos mundos. Igualmente, jamais alguém pensaria que um campo de concentração poderia ser convertido no espaço da carnavalização. E foi isto que Benigni fez. Inverteu, colocou de cabeça para baixo a realidade, expondo o mundo às avessas. Isto é o que se chama de carnavalização: usar a comédia, usar o riso para, pelo avesso, dizer ainda mais fortemente. Diante do estranhamento gerado pelo fato de a tragédia estar sendo representada no palco da comédia, percebemos mais agudamente as coisas. A carnavalização utiliza-se da paródia. Originariamente, entre os gregos, a paródia era o canto que se desenvolvia ao lado de outro, porém, contradizendo-o. Atualmente a paródia é um discurso crítico, que inverte o sentido de outro discurso. Assim em "A vida é bela", quando o soldado nazista entra no alojamento dos judeus e dá, em alemão, uma série de instruções severas, Guido, seu pretenso tradutor, inventa um outro texto debochado, que não tem nada a ver com o original, mas expõe ainda mais a fratura do drama. Igualmente paródico é o discurso que Guido, como pretenso inspetor, faz numa escola mostrando, num balé cômico, seu corpo magro, seu umbigo, seu nariz e sua orelha como exemplares da bela raça ariana. De novo, ele introduz a paródia e inverte os significados, quando surge montado num cavalo branco para arrebatar sua amada. Ao invés do majestoso corcel dos contos de fada, o cavalo que invade a cena do banquete está cômica e pateticamente pintado de verde e traz escrito: "cavalo judeu". E, assim por diante, até mesmo quando Guido se apossa do microfone do campo de concentração e, chamando sua esposa de "princesa", faz ecoar no campo da morte uma pungente declaração de amor. O filme parodístico de Benigni utiliza-se ainda da metáfora do jogo. O tempo todo o pai está fantasiando com seu filho que estão numa partida com outros presos e com os alemães. Eles têm que fazer pontos para ganhar e se o conseguirem o menino ganhará um tanque, aquele enorme tanque americano que ao final vem resgatar o mínimo Josué abandonado do deserto campo de concentração. A arte é também um jogo. A guerra é um jogo. A vida talvez seja um jogo. Mas o diabo é que ao carnaval segue-se a quaresma. Aqui rasgou-se a fantasia e acabou o carnaval do real. A rigor já entramos na quaresma, embora alguns ainda dancem e joguem confetes como inconscientes foliões. |