Sandapilários, Capitu, folhetins



24/11/98

        Que semana, meu Deus! Bem me disse Fernando Sabino: ‘‘Não escreve sobre política, escreve sobre literatura’’. E eu lhe disse: "O diabo é que a política é que invade minha crônica’’. Mas resolvi atendê-lo. Sobretudo, porque ele acabava de me dar um livro polêmico. Fernando reescreveu Machado de Assis. Reescreveu o ‘‘Dom Casmurro’’ e mudou-lhe o título para ‘‘O amor de Capitu’’.

        Muitos vão dizer - ‘‘uma ousadia’’. Ele sabe disto. O subtítulo do livro diz: ‘‘O romance de Machado de Assis sem o narrador Dom Casmurro’’. Fernando mexeu na ferida. Todo mundo sempre detestou o personagem Dom Casmurro. Acho que até Machado o detestava. E os críticos sempre diziam que o processo de culpa de Capitu estava prejudicado porque só tínhamos a palavra, a versão, a acusação do Casmurro narrador insinuando que ela o traíra.

        Pois Fernando resolveu fazer uma experiência. Afastou Dom Casmurro como narrador, instituiu um outro narrador neutro, mas manteve o mais possível o texto de Machado. É o processo de Capitu revisto sob outra ótica.

        Achei a iniciativa tão ousada que comuniquei ao Fernando que estava com ímpetos de imitá-lo ainda mais radicalmente. Reescrever aquela estória num estilo Rashomon: ou seja, assim como no filme de Kurosawa cada um dos personagens dá uma versão diferente sobre o crime, seria instigante saber como Escobar, Ezequiel, José Dias, Dona Glória, Sancha, tio Cosme, padre Cabral e outros personagens, além de Capitu e Bentinho viveram a verdade ficcional.

        Claro, isto correria o risco de transformar-se numa CPI, que como todos sabem, nunca dá em nada, como disse o próprio presidente do Senado. Aliás, sem querer falar em política ou economia, enquanto estávamos todos imersos nessa crise que mostrou que o ministro da Comunicação estava se comunicando em demasia, e onde uns estavam condenando outros, saiu uma notícia de que o mega investidor Nagi Nahas foi absolvido em mais um julgamento.

        Mas, voltemos correndo às coisas do espírito, à literatura.

        Vocês sabiam que Clarice Lispector andou escrevendo poesia?

        Leio isto no volume ‘‘Manuel Bandeira-Seleta de Prosa’’, editado pela Nova Fronteira e que Maria Helena, sobrinha-neta do poeta, ela também poeta, enviou-me. O volume tem no final umas cartas de Bandeira que estão no arquivo da Casa Rui Barbosa, e numa, a de 23 de novembro de 1945, ele diz a Clarice: ‘‘Se tivesse comigo aqueles poemas seus que você me mostrou um dia, incluiria você também. Ficará para a segunda edição. Quer me mandar alguma coisa? Você é poeta, Clarice querida. Até hoje tenho remorso do que disse a respeito dos versos que você me mostrou. Você interpretou mal as minhas palavras. Você tem peixinhos nos olhos; você é bissexta: faça versos, Clarice, e se lembre de mim’’.

        Muito instrutivas e divertidas até as crônicas onde Bandeira narra seu contato com a poesia concretista nos anos 50. Lá, diz que os concretistas quando explicam em prosa seu procedimento poético viram uns ‘‘sandapilários’’. Nota: sandapilários eram os que conduziam numa maca os mortos pobres ao cemitério. Será que Bandeira estava dizendo que elas carregavam o cadáver da poesia?

        Vocês devem ter visto, no GLOBO de domingo, uma reportagem sobre o livro eletrônico. Ele é do tamanho mesmo de um livro e dentro dele cabem de uma só vez dez volumes. Você pode ler no escuro, aumentar o tamanho das letras, fazer anotações à margem etc. Com isto, se modificará o conceito de editora, de livraria e de biblioteca. Será que os livros se converteriam em disquetes? Não, mais que isto. Disquete já era: hoje você já passa o seu computador diante de outro computador e a memória de um passa para a do outro através de raios infravermelhos.

        Somos uns privilegiados por viver nesta época, se bem que como advertiu sabiamente Israel Klabin, essa crise financeira internacional que está aí apenas precede uma terrível castrástrofe ecológica cada vez mais evidente e que os países ricos insistem em não ver.

        Mas enquanto o livro eletrônico não se vulgariza, vou à primeira Feira do Livro em Juiz de Fora, organizada, imaginem, pela própria sociedade civil sob a liderança do médico José Augusto Gaburi e, em Porto Alegre, constato que a Feira do Livro ali vendeu 416 mil exemplares, 30% mais que em 97. Claro que isto só é possível num estado com alto índice de alfabetização e onde o Instituto Estadual do Livro edita e promove os autores gaúchos competentemente em todas as escolas. Já disse e repito: quando crescer, quero ser autor gaúcho.

        E ali, na banca de doutoramento de Antonio Hohlfeldt, para examinar a tese ‘‘Deus escreve direito por linhas tortas: o romance-folhetim dos jornais de Porto Alegre entre 1850-1900’’, aprendo coisas relevantes. Primeiro, que naquele período foram editados 227 folhetins. Segundo, que no interior do estado os imigrantes alemães publicavam folhetins até em gótico Em terceiro lugar, que havia autores sofisticados como Jean Charles Moré e Carlos Jansen, sendo que este, na minha opinião, foi o verdadeiro introdutor da literatura infanto-juvenil entre nós adaptando as Mil e uma Noites, Robson Crusoé, Dom Quixote, Gulliver e as estórias do Barão de Munchausen.

        No mais, a vida, mais que a literatura, parece mesmo um folhetim. Como a política. Sim, sei que bom é pensar que Deus escreve direito por linhas tortas. Mas estamos entortando tanto as linhas, que está ficando difícil entender o que Deus escreve.
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