Variações Piedosas



27/10/98

        Cheguei até a pensar, olhando os resultados eleitorais e ao mesmo tempo ouvindo aquele poema intitulado ‘‘O desespero da piedade’’, que eu deveria ser desesperadamente também mais piedoso, com os outros e comigo. E disse: tenho sempre votado certo, e sempre deu errado; quem sabe se esses que estão votando errado é que estão certos? E porque estamos de ressaca política e de política não quero falar é que lhe conto que outro dia fui à Bahia.

        Tinha ido a Salvador para, à noite, dizer poemas nos jardins da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco.

        Disse-os.

        Mas, antes, um conjunto tocou peças de Mozart. O cenário não poderia ser mais belo: mangueiras enormes, paredes brancas, noite azulíssima. E de onde estava via torres e fachadas de outras igrejas e os que me ouviram não podiam ser mais piedosamente generosos. Isto faz parte de um projeto de Geraldo Maia, que quer transformar Salvador num espaço poético, o que não é difícil para quem já teve Gregório de Mattos e Castro Alves e tudo o que a baiana tem.

        E como tivesse tempo de sobra, nos outros dias, saía pela cidade, simplesmente bestando, como dizem os baianos. Entrei no Forte, ali da praia, e tive uma experiência marcante sobre a burocracia ou sobre aquilo que Rousseau chamava de ‘‘origem sobre a desigualdade entre os homens’’. Foi cômico e pedagógico. Era um dia de sol estupendo. Eu vinha caminhando pela orla, vendo tudo e pensando nada. Resolvi entrar no Forte, que é uma construção em aberto. Ali estava a porta, também aberta, e, depois que você entra, o Forte é só uma plataforma para os canhões atirarem. Não tem teto, não tem parede, é um cimentado a céu aberto.

        Mas à porta está um funcionário, e como eu vinha com a camisa nas mãos por causa do calor, ele disse: - ‘‘Ponha a camisa. Só pode entrar de camisa’’.

        Olhei o interior do forte ensolarado. Entre o fora e o dentro só a porta. Lá dentro não havia nada, nem ninguém, seria só eu. E tudo aberto. Mas tinha que botar a camisa. Piedosamente a botei, cruzei a soleira. Olhei o mar (de camisa), vi um ou outro canhão (de camisa), voltei pela porta (de camisa), de camisa agradeci ao funcionário, e pisando fora de sua jurisdição, tirei a camisa e fui andando meditando sobre a metafísica da burocracia.

        Bem diz Rousseau que a desigualdade entre os homens nasceu no dia em que botaram uma cerca num terreno. E um burocrata é sempre um ser superior ao cidadão comum.

        Noutra ocasião, fui descendo a Avenida Sete de Setembro, era já de noitinha, havia chegado de viagem, já descansara, queria andar pela cidade e lá fui seguindo, quando percebo uma bela construção barroca. Colunas retorcidas, imponente entrada, olho a placa e me surpreendo, era o Museu de Arte da Bahia. Paro. São seis e vinte da tarde, o Museu fecha às seis e trinta, mas entro, porque antes dez minutos de arte que nada.

        Estou olhando uma exposição de retratos logo na entrada e vem em minha direção uma senhora simpática, que se apresenta, é Sylvia de Athayde - a diretora, e se dispõe a me mostrar todo o museu, mesmo depois do horário. Que lindo museu esse, que em outra época contou com o trabalho de Emanuel Araujo. E que história ilustrativa esta do médico inglês Jonathas Abbott que, no século passado, chegou jovem e aventureiro à Bahia e acabou formando uma preciosa coleção de quadros, que são a essência desse museu.

        Na Bahia, desta feita, Florisvaldo Mattos me oferece alguns livros seus e descubro que não sabia nada sobre a ‘‘revolução dos alfaiates’’ ao ler o seu ‘‘A comunicação social na revolução dos alfaiates’’ E me diga, o que sabe, você, cara pálida, sobre isto? Os livros de História mal citam essa revolução de 1798, que para os baianos (e alguns mais), estão certos, foi mais importante que a Inconfidência Mineira de 1792.

        Pois saibam. Mataram cinco suspeitos na conspiração. Descubro que os revolucionários baianos, tão negligenciados pelos livros de História, tinham até um programa de governo e haviam já desenhado uma bandeira. Aprendo, então, coisas sobre a revolução dos alfaiates, por exemplo, que entre os 49 presos, quatro eram mulheres. E como isto é raríssimo, pois política e revolução antigamente eram coisa de homem, sinto compulsão de escrever aqui o nome dessas quatro mulheres das quais não tenho a menor noção quem eram, mas que merecem minha retardatária e piedosa admiração: Luíza Francisca de Araújo, Lucrécia Maria Gerdent, Domingas Maia do Nascimento e Ana Romana Lopes.

        Por isto, retomando ‘‘o desespero da piedade’’ de Vinícius, e concentrando a piedade nas mulheres, há que dizer: ‘‘Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas/ a vida fere mais fundo e mais fecundo/ e o sexo está nelas, o mundo está nelas/ e a loucura reside neste mundo./ Tende piedade, Senhor, das santas mulheres/ dos meninos velhos, dos homens humilhados, sede, enfim/ piedoso com todos, que tudo perece piedade/ e se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim’’.

        ‘‘Tende piedade dos homens públicos e, em particular, dos políticos/ pela sua fala fácil, olhos brilhantes e segurança nos gestos de mão./ Mas tende piedade, ainda, dos seus criados, próximos e parentes,/ fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também’’, esses são os piedosos versos de Vinícius de Morais, que acabam de ser gravador num CD, na voz igualmente pia de Odete Lara.
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