GUERRA: SÍMBOLOS E RITUAIS
Affonso Romano de Sant’Anna
Essa guerra em torno de bin Laden, antes de ser guerra espirrando sangue, estilhaçando corpos e aleijando consciências, é uma batalha de rituais e símbolos.
Sempre foi assim. Imperadores e generais em outros tempos, preparavam grandes banquetes na véspera da batalha. Comer e lutar. Comer o outro e/ou morrer. Na primeira semana após o desabamento das torres do WTC e de parte do Pentágono, os Estados Unidos começaram mobilizar o imaginário da população através de uma série de rituais, cuja função era dupla: aglutinar os cidadãos atônitos e servir de catarsis para a perplexidade.
O primeiro ritual consistiu em mobilizar um símbolo nacional- a bandeira. Embora nem precisasse, porque nos momentos de catástrofes nacionais os símbolos nacionais ressurgem do inconsciente coletivo, o governo recomendou que as pessoas portassem, acenassem, exibissem seu amor ao país através de bandeiras. Resultado: o estoque de bandeiras teve que ser mil vezes reposto. Lojas, automóveis, edifícios, roupas e até mesmo nos campos de esporte, imensas bandeiras foram desenroladas em momento de consternação e reafirmação patriótica. Uma foto, entre tantas, poderia ser destacada: aquela da bandeira erguida por bombeiros sobre as ruínas do WTC, como se fossem aqueles soldados americanos numa ilha no Pacífico na Segunda Guerra Mundial.
A isto somou-se a necessidade de expressar os sentimentos de revolta, esperança e vingança através de vários hinos, além do hino nacional. A vocação protestante para entoar músicas socializadoras da fé , num tom militante e marcial, teve impecável performance nos templos, estádios, colégios e fábricas. A Bolsa de Valores, templo do capitalismo- "in God we trust"- abriu sua sessão com cânticos de fé na América e no mercado. Esse tipo de ritual iria expandir-se por todo o mundo e na maioria dos países ocidentais e em vários orientais as pessoas das mais diferentes religiões foram às igrejas . E em algumas dessas igrejas o hino americano soou religiosamente. Dir-se-ia que o espaço cívico, o espaço econômico, o espaço esportivo foram religiosamente imantados. Não estranha que o presidente americano tivesse começado a falar em "cruzada"contra os bárbaros e infiéis, assumindo a retórica da "guerra santa".
Os rituais continuaram. Visitar as ruinas do WTC, seja para Bush, Clinton, Giugliani ,Chirac ou para qualquer líder, passou a ser um ritual necessário. Ali, o Calvário, ali, a Meca da indignação. Aquele lugar ganhou macabra sacralidade. Lugar do sacrifício, da imolação. Era dali que deveria surgir a resposta, a ressureição. Por isto, Bush foi lá cumprir o ritual discursando sobre os destroços, prometendo sobre as ruínas, a vingança e a destruição dos inimigos. E quando dias depois foi ao Congresso para discursar como líder da cruzada americana, entre outras coisas emblemáticas, ostentou o escudo que a viúva de um bombeiro morto lhe ofertou, dizendo como o imperador romano- "In hoc signo vince" , com esse símbolo vencerás .
Poder-se-ia dizer ainda que, num desses dias, quando muitos cidadãos novaiorquinos se dirigiram a vários caminhões cheios de pedaços de aço e pedra do WTC e começaram a surrupiar dali lembranças da tragédia, que não estariam apenas agindo comercialmente, querendo vender relíquias, mas que muitos deles estavam realmente querendo levar para casa um pedaço da trágica história, para dela não mais se esquecerem.
Shows, espetáculos continuaram a ritualização dos sentimentos americanos. E quando os atores foram convidados e apareceram em público atendendo chamados telefônicos de pessoas que queriam doar dinheiro para as vítimas, aí a realidade e o imaginário cinematográfico se superpuseram claramente. Os artistas transformaram-se em mediadores. Mediadores com um papel muito importante. Saídos da ficção, vivendo também a hedionda realidade, ali estavam eles potencializando sentimentos e generosidades.
Sintomaticamente correu o boato de que até um estúdio de Holywood sofreria um atentado terrorista. A realidade e a ficção se entrelaçando uma vez mais. Impossível, por isto, não lembrar, reativar tantos símbolos, estereótipos e imagens estocadas no imaginário americano. De repente, Bush, texano, bem poderia ser aquele caubói, que no filme "Dr. Strangelove" despenca nos céus cavalgando a bomba atômica que cairá sobre os inimigos.
Nas estórias de quadrinho americanas, muito antes de James Bond no cinema tipificar isto, há muito que o Superhomem, o Capitão Marvel ou Batman tinham como inimigos não um governo, mas um indivíduo representando todo o mal. Torna-se difícil para parte da população norte-americana não considerar os mulçumanos em geral como marcianos, ETs e alienígenas.
Enfim, os fatos vieram alterar a ficção. Nos dias atuais não se trata mais de enfrentar um " exterminador do futuro". Embora , para alguns, o Islam seja parte de outra galáxia, não é mais do futuro que vem a ameaça de nossa extinção. Estamos diante do "exterminador do presente". Alguns o identificaram em bin Laden. Outros acham que Bush empunhando a espada justiceira da fé pode roubar de bin Laden o papel principal.
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