MEMÓRIAS FAMILIARES DE GUERRAS

 

Affonso Romano de Sant’Anna

Meu avô paterno, apesar de músico, participou da Revolta da Armada em 1893, no Rio. Meu pai, esperantista, atuou como oficial da Polícia Militar de Minas nos movimentos armados de 1924, 1930 e 1932. Quando estourou a guerra de Suez, em 1956, e o Brasil mandou tropas para o conflito, eu era soldado- meio-poeta ou poeta-meio-soldado. Então, publiquei o "Poema do pracinha que não vai a Suez"e um sargento me repreendeu porque soldado não faz poesia, atira.

Embora nascido num país que se gaba de estar livre de vulcões, terremotos e guerras, outros vulcões, outros terremotos nos assolam e guerras alheias nos atordoam. Na Segunda Guerra Mundial colecionava figurinhas, aquelas que tinham o "soldado australiano", o "general Clark", o "expedicionário brasileiro". A gente prendia as figurinhas em carteirinhas feitas de papelão e elástico e jogava bafinho na calçada para aumentar a coleção. De vez em quando ficava-se sabendo que um rapaz da vizinhança for a convocado para fazer o "tiro de guerra". Certa manhã começou-se a cochichar na rua que a casa de um vizinho alemão tinha amanhecido coberta de pixe.

Eu tinha um primo- Tião. Foi à guerra na Itália. Quando voltou, voltou esquisito. Diziam que tinha neurose de guerra. Tinha. De guerra e de paz. Terminou mal.

Certa manhã de maio de 1945 jogava bola no meio da rua quando a estripitosa voz do Repórter Esso anunciou que a guerra tinha acabado.

"-De onde foi que eu e meu amigo Nelinho tiramos que acabada a guerra, seria tudo de graça?

-De onde foi que eu e meu amigo Nelinho tiramos que iam acabar a guerra de graça?

-De onde foi que eu e meu amigo Nelinho tiramos, que iam acabar a guerra e nos deixar brincando na praça?"(*)

Mas em 1950 meus ouvidos começaram a se entarrecer com notícias da guerra na Coréia. Fascinado por Castro Alves, publiquei longo poema que começava assim: "Era a metade do ano,/ era a metade do século./ Coréia duas metades, /sendo uma do americano/ e do russo a outra parte" e depois falava de abutres, sangueira,etc.

Durante a guerra do Vietnam - orgulho-me de revelar - salvei vários americanos de morrerem em combate. Dava aulas na Universidade da California e um dos critérios para se recrutar soldados era convocar primeiro os que não alcançavam notas maiores que sete. Desesperados, alunos me expunham seus trabalhos, pediam mais um ponto ou dois e assim fui desenterrando futuras cruzes do cemitério de ex-combatentes diante do meu apartamento.

Fiz, sim, vários poemas sobre aquela guerra e participei de marchas da paz comandadas por Luther King. Aliás, dou-me conta que incluindo essa guerra no Afeganistão, a guerra povoa a vida e morte de meus textos. Quando eclodiu a guerra nas Malvinas, em 1982 estava eu na França e os franceses, de certo modo, estavam bizarramente orgulhosos, porque o foguete exocet, produzido por eles era a grande vedete das batalhas. Também lancei poemas por aí.

Quantas guerras além da do Paraguai e das diversas batalhas separatistas, insurreições e ditaduras tivemos? Fiz o primário na ditadura de Getúlio e doutorado na ditadura de 1964. Quantos que comigo comiam nos bandeijões das faculdades em Belo Horizonte , não morreriam na guerrilha? Basta lembrar Juarez de Brito, lugar tenente de Lamarca. Esse Lamarca sobre quem Rui Mourão acaba de publicar esplêndido romance-"Invasão no Carrossel".

Outro dia Fernando Brant referiu-se aqui a um estudantil poema meu que começava assim:"outubro ou nada". Conforme constatei com ex-guerilheiros, anos depois, deu "nada".

Meu avô esteve na revolta da Armada, meu pai em três revoluções e eu me intrometi poeticamente em várias guerras. E como dizia um outro rapaz nascido também em Minas e que neste também outubro estaria fazendo 99 anos:

"Lutar com palavras

é a luta mais vã.

Entanto, lutamos

Mal rompe a manhã".

*Trecho do poema "A catedral de Colônia",Rocco, Rio, 1985

 

E-mail para esta coluna: santanna@novanet.,com.br

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