O IMPENSADO E O IMPENSÁVEL
Affonso Romano de Sant’ Anna
Nossa percepção (ou aceitação) da realidade vai por patamares. Poderia dizer, "limites", que vão se alargando, conforme as exigências pessoais, sociais, históricas. Há fatos que embora sejam extravagantes, perversos e macabros, já entraram no universo dos possíveis. São vergonhosos, são eticamente imundos, alguns são esteticamente repulsivos, mas convivemos enojadamente com eles. Quando nos deparamos com uma dessas situações pensamos ter já atingido o limite de nossa (des)humanidade. É como se estivéssemos num patamar extremo, depois do qual tudo é inviável, insuportável, inadimissível. Mas, de repente, rompe-se a barreira de nossas expectativas e atônitos somos forçados a admitir o inadimissível, a pensar o impensado, e a suportar o impensável.
Até há pouco ninguém havia pensado em jogar aviões cheios de apavorados e inocentes passageiros contra as torres do WTC, que recebiam diariamente umas 50 mil pessoas. Antes da década de 60 ninguém cogitava sequer que se pudesse sequestrar aviões. Avião era feito para voar e o medo era de que ele caisse sem mais nem menos, e não que pudesse ser até abatido pela própria força aérea de nosso país.
Pois tais coisas entraram no quadro das possibilidades. Tenho impressão que isto começou lá pelos anos 60. A princípio eram sequestros políticos, simples desvio de rota para pedido de asilo. Depois ocorreram sequestros com tiroteios e mortes a bordo. Ninguém pensava que se pudesse ir além disso. Mas fomos.
Se o impensado é aquilo é um não nomeado estoque depossibilidades, o impensável é o pesadelo que atonitamente não queremos admitir. Mas a realidade, abrindo patamares novos, sem nos consultar nos faz pensar o impensado e nos joga no impensável. Passamos admitir, suportar e conviver com coisas que às vezes a ficção de ontem nem sonhou.
Quem quiser pode recorrer aos exemplos clássicos.
Os primeiros cristão conheceram na carne o impensado e o impensável quando começaram a definhar nas cruzes e a morrer no céu da boca das feras .
Experimentaram o impensado e conviveram com o impensável aqueles que viram seus corpos arderem nas fogueiras da Inquisição.
Experimentaram o impensado e conviveram com o impensável os árabes que viram os cruzados cristãos devastarem suas cidades e comerem a carne de seus filhos como churrasco.
Perguntem aos judeus de ontem e ao palestino de hoje o que é o impensado e o impensável. Perguntem aos japoneses de Hiroshima e Nagasaki, aos milhões que Stalin e Mao Tse Tung exterminaram.
Houve quem dissesse que a história é a história da liberdade.
Houve quem dissesse isto de cabeça para baixo: - que a história é a história da repressão.
Então, talvez se possa dizer, sumarizando, que a história é também a história da transgressão. De como limites vão sendo quebrados tanto no ímpeto da construção, quanto da destruição. A história vista como a história da sucessiva e ilimitada transgressão. Da transgressão que transgride a si mesma, sempre com novos ímpetos e absurdos.
No princípio brigava-se em terra firme com as garras e mãos, depois com pau e pedra, depois com espada, revólver e canhão, depois isto foi levado para os mares, depois para os ares até chegarmos nos perplexos tempos atuais em que globalizamos a guerra antes de globalizar a paz. E depois do WTC o imaginário começa a se adiantar para não ser colhido de surpresa. Os limites do terrorismo se expandiram e atônitos estamos redimensionando o impensado e o impensável. E a paranóia está no ar.
Houve um tempo em que, americanamente feliz, o presidente achava que a Casa Branca só poderia ser atacada por mísseis e não por qualquer avião de passageiro, que decola do aeroporto a 10 minutos dali. Ele era feliz e não sabia.
Os limites se expandem. A história desborda.
Quanta distância entre o namoro antigamente, com aquelas mensagens em lencinhos, cartas, flertes no teatro, o culto da pureza e virgindade, e o de hoje?
Quem poderia supor, há poucas décadas, que os grandes jornais que circulam entre as famílias tivessem natural e comercialmente em suas páginas, anúncios de prostituição masculina e feminina? E os programas pornoespetaculares de televisão? E a música, a literatura e as artes em geral? Trocaram ou não de patamar através de transgressões sucessivas?
Portanto, ética e esteticamente estamos cada vez mais convivendo com o impensável o impensado.
Estranho são os seres vivos: tanto os pretensiosos seres humanos quanto os virus da gripe ou da aids, que vão se adaptando e criando novas resistências para sobreviverem.
Então, nos dizemos:-"Não suporto mais. Isto já passou dos limites". E no dia seguinte suportamos mais coisas insuportáveis, alargamos os limites de nossa subserviência e o que era impensado e impensável ontem é a nossa (des)humana rotina hoje.
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