PEDAGOGIA DA GUERRA

 

Affonso Romano de Sant’Anna

 

 

 

Uns dizem:-"Não consigo trabalhar, não consigo prestar atenção no que faço, fico o tempo todo atado às notícias, ligo a CNN, entro na Internet, leio e assino todos os abaixo-assinados que circulam, tomo conhecimento dos artigos que estão aí atachados, minha vida está toda paralizada por causa dessa guerra, até já me esqueci de alguns compromissos. Que angústia, meu Deus!"

Outros, dizem:-"Desliguei-me. Não dá para ficar nessa paranóia, só olho a manchete do jornal no dia seguinte, para saber se a guerra já começou ou já acabou. Não tenho resistência para isso, se continuasse absorvendo as notícias pirava de vez".

De uma maneira ou de outra, portanto, nosso cotidiano está alterado. Lembra-me o título de um livro de Marques Rabelo- "A guerra dentro de nós". Então, aprendemos a primeira lição: não há como ficar fora desta hecatombe. O

mundo globalizou a guerra antes de globalizar a paz. E vamos perdendo as últimas ingenuidades. Como uma represa que se arrebentasse e inundasse toda uma cidade, como se uma incontrolável peste negra atingisse a todos indiscriminadamente, estamos sitiados por essa guerra de notícias e mortes macabras.

Os jornais dessa semana reproduziram frases de autoridades americanas dizendo que este é um conflito de verdades e mentiras. No princípio, isto poderia soar como anúncio de uma querela entre a verdade de um lado e a mentira do outro, ou como foi tolamente anunciado, a luta do "bem" contra o "mal". Mas os militares e políticos foram mais cruelmente explícitos e aprofundaram esse pensamento: vão ocultar a verdade, vão mentir para que a sua verdade seja vitoriosa. Um deles chegou a dizer que, às vezes, é necessário proteger a verdade com uma mentira. Então, como vamos nos guiar nessa batalha de projéteis e palavras? Em que, quem, quando e como acreditar?

De repente, caimos, resvalamos, precipitamo-nos num pantanoso problema, que não é só estratégico e político, mas filosoficamente perturbador. Coisa para o Moacyr Laterza discutir com seus alunos. Se o falso pode servir ao verdadeiro, se o errado pode servir ao certo, então, fomos realmente expulsos de nossa milenar puerilidade e temos que refazer nossos princípios éticos e estéticos.

Ou será que os estrategistas da guerra da comunicação estão apenas confirmando algo antiquíssimo e que recentemente foi reapareceu no domínio das artes, quando o "fake" (o falso) passou a ocupar o lugar do verdadeiro e o "feio" passou a ocupar o lugar do "belo"? Será que estão apenas revalidando o que a sociedade mediática de consumo está cansada de nos mostrar? Ou seja, que o insosso, que o aparente e que a imagem construída ocupam o lugar de pessoas e obras mais consistentes, essenciais e autênticas? Se assim for, essa guerra começa por ser tragicamente pedagógica. Está nos atualizando em nós mesmos. Ela vai nos ensinando não apenas coisas que achávamos desnecessárias, tipo -onde fica o Afganestão? o que é a cultura islâmica? o que é terrorismo de estado e terrorismo de grupos e indivíduos? Ela parece mexer com a geografia de nossa alma, com a paisagem de nossos conceitos, enfim, expulsa-nos do éden da ingenuidade em que vivíamos.

Por exemplo, passados os primeiros momentos de discursos de solidariedade, agora cada país está cobrando descaradamente seu apoio. O do Paquistão custou trezentos e tantos milhões de dólares. A Rússia já deu seu preço. Os outros países estão se achegando e entrando no leilão. Brasil, cuja economia está sendo tão bombardeada quanto Kabul, como é que entra nessa?

Estamos, portanto, diante de uma fenômeno duplo: uma guerra de verdade envolta numa guerra de mentiras. Onde está a verdade? De que lado ficar?

A solução, se existe, talvez esteja com o velho Sócrates:-"a verdade não está com os homens, mas entre os homens" .

E-mail para esta coluna: santanna@novanet.com.br

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