REDESCOBRINDO AFETOS

 

Affonso Romano de Sant’Anna

 

Então, ela disse:-"Por causa dessa guerra, vou aplicar-me mais às delicadezas". E isto dizendo, foi acrescentando:-"O que conta mesmo são as amizades, o afeto, as coisas simples da vida".

Olhei-a com uma correspondente ternura. E ela continuava: -"Vou chamar amigos para jantar. Vou reunir mais gente de que gosto. Quero dispor a mesa, acender velas. Não vou ficar aqui apenas me envenenando com essas notícias".

Ela dizia isto como quem dissesse:-"Olha ali uma gaivota num balé de asas brancas sobre a lagoa". Ou então, como se interropesse um assaltante que lhe apontasse uma arma no rosto e dissesse: -"Espere um pouco que vou ali comprar flores". Ou, então, como quem cortando uma discussão tensa, advertisse:- Ih! Ainda não dei a ração à minha cachorrinha".

Abrigar-se na ternura.

Voltar às delicadezas.

Tirar da banalidade o oculto mel.

Portanto, se a guerra provoca em nós os piores sentimentos, pode, numa reação igual e contrária, despertar a urgência de coisas cotidianamente humanas.

Uma vez num texto de Anibal Machado, -mineiro que nem eu, quer dizer, melhor que eu, uma vez li num texto de Anibal Machado, - cujas poesias ainda penso em reunir num livro com autorização de seus herdeiros, uma vez li num texto de Anibal uma frase que dizia que ele se ligava melhor às coisas no momento mesmo de perdê-las. Já Drummond, mineiro que nem eu, ou melhor, mineiro como nenhum de nós, Drummond dizia que amar o perdido deixa confundido o coração.

Perder a paz.

Ou roubar à guerra a paz de que carecemos?

Sempre pensei em como seria a rotina de um pai ou mãe que têm um filho na guerra. Ele está lá sabendo que em certos momentos, mais que em outros, pode cair morto. A mãe está aqui e tem que arranjar as flores num jarro como se esse fosse o gesto mais importante do mundo. O pai está indo para o escritório e dá bom dia e alô a quem passa, como se um pedaço dele não estivesse prestes a morrer em alguma parte.

Entendo cada vez mais os que se retiram das pompas do mundo, buscando numa casa de campo o reencontro consigo mesmo através das flores, bordados e animais.

Hoje é domingo. E as montanhas em torno estão à nossa disposição levando o nosso olhar em ondas até o horizonte. Ou podemos ir ao quintal antigo onde havia jabuticabeiras, e onde há sempre segredos a descobrir. Da janela podemos ver coisas banalmente tocantes ocorrendo na calçada: um cão enrodilhado, uma criança na bicicleta ou simplesmente as àrvores perfiladas. Cá dentro os objetos da casa estão nos dizendo coisas intimamente preciosas. Olhemos com ternura o corpo amado amanhecendo.

Sim, reunir amigos, potencializar ternuras e afetos.

Pois, apesar de tudo, é primavera.

 

e-mail: santanna@novanet.com.br

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