SAINDO DAS CINZAS
Affonso Romano de Sant’Anna
Um homem está precipitando-se do alto do World Trade Center, em chamas, em Nova York. Não é o único. Dezenas de corpos vivos, incendiados pelo desespero e ódio alheio, jogam-se lá de cima, depois que dois aviões pilotados por terroristas chocaram-se contra aqueles edifícios e contra a humanidade.
Outros estão descendo desesperados pelas escadarias em meio à fumaça, gritaria e destroços. Mas agora um homem está caindo do alto do sólido mundo capitalista e se condensa numa foto antes de se desmanchar no solo.
Estou acompanhando esse corpo que cai.
Sei que dentro de poucos minutos serão milhares de mortos e feridos empilhados nas ferragens dos dois edifícios que derretem-se, derretem-se paradoxalmente em chamas ante o nosso gelado espanto. Mas meus olhos estão paralizados nesse corpo que se jogou lá de cima, embora, ao lado, acima, já antes dele, outros corpos risquem o espaço numa precipitada chuva de desilusões e pânico.
Concentro-me nesse único corpo que cai, porque como dizia outro poeta "meus olhos são pequenos para ver" a imensidão do horror que por toda parte se espalha.
Há quinze minutos, no entanto, aquele homem estava no seu escritório atendendo um telefonema. Falava com sua mulher sobre um compromisso que teriam à noite, e ia começar a conferir números do mercado financeiro. Estava com os pés sobre a mesa e olhava através do altíssimo e envidraçado edifício o mundo lá for a. A vida era estável. Lá no alto as oscilações da bolsa o embalavam. Lá do alto via toda a ilha, a baía com os barcos e os aviões que chegavam e partiam. Não, ele não sabia que um avião havia decolado contra seu corpo e seu país e vinha ferozmente em sua direção, arrebentando a placenta de aço e vidro onde se aninhava.
Diria, portanto, que ele estava aburdamente tranquilo. Afinal, era um belo dia aquele, dia azulzíssimo. Havia se despedido dos filhos, depois do suco de laranja, do ovo cozido, do pão com geléia, iogurte e sucrilhos. Havia beijado a esposa, pego o chaveiro, a pasta de trabalho, e tirando o carro da garagem atravessara a cidade fazendo planos e conjecturas para o amanhã. Passou pela portaria do edifício como se fosse um dia comum, cumprimentou pessoas e funcionários, fez uma piada qualquer ao entrar no escritório, como se a vida tivesse alguma graça. Seguiu insensatamente, sem saber que naquele dia deveria ter trazido asas para sobreviver ao acaso. Ele não tinha consciência que mais que a maioria dos homens, ele era um homem que não podia mais adiar sua morte. Tinha quinze ou cinco minutos de vida e continuava sorrindo e fazendo planos.
Do horizonte da história, de repente, surge um avião pilotado pelo ódio. Nenhum radar foi capaz de rastreá-lo, detê-lo. O choque, o estrondo, ecoou por todo o mundo. E quando a perplexidade ainda se concentrava no primeiro edifício, o segundo recebia também o impacto de outro enlouquecido avião. Fugindo das chamas, por entre corpos flamejantes, atordoado agarra-se à tênue linha de vida que sobrou, liga o celular e joga no ar as últimas palavras de amor para sua mulher. Acuado pela apocaliptica irracionalidade e pelo pânico, lança-se ou é lançado absurdamente no vazio.
Agora seu corpo está despencando lá de cima enquanto uma fogueira histórica segue ardendo corpos e consciências.
Com aquele homem e naquele homem despencava mais que um homem. Com os milhares que com ele morreram fez-se algo mais que um simples cemitério. Com aqueles dois edifícios desmoronava-se uma época.
Talvez sobre essas cinzas e sangue ainda se possa construir alguma coisa.
".
Estado de Minas- 15.9.2001-E-mail para esta coluna: santanna@novanet.com.br
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