UM PAIS BEM

MAL AMADO

 

Affonso Romano de Sant’Anna

 

 

Conheci um professor que tendo feito doutorado nos Estados Unidos, vivia em suas aulas louvando a cultura americana. Os alunos acabaram rotulando-o de "vendido aos Estados Unidos". Ao saber disto, ele retrucou: "-Vendido? Me dou de graça".

Esta confissão é idêntica a muitas que têm surgido na imprensa e em conversas informais depois de 11 de setembro. Por outro lado, isto é o avesso de reportagens, artigos e mesas redondas onde se discute porque há tanto ressentimento e até mesmo ódio em relação aos americanos.

Sintomaticamente a internet está cheia de mensagens com fotomontagens e piadas retratando um certo prazer em ver os Estados Unidos atrozmente humilhados. Há até cenas pornopolíticas bem sádicas. Por que isto? Será que essas pessoas querem realmente a vitória de bin Laden?

Duvido. Se forem perguntadas elas dirão que aquilo "é apenas uma piada". Mas é evidente que há aí outros significados. E isto tem alguma coisa a ver com a reação que tenho ouvido de outras pessoas que dizem que evidentemente acham o terrorismo e bin Laden uma coisa nefanda e nefasta, mas não podem deixar de sentir, não exatamente um prazer, mas um sentimento estranho de que os Estados Unidos merecem uma lição.

Há componentes complexos neste sentimento.

Diria que um deles é de ordem psicológica e instintiva. Se há um acidente entre uma bicicleta e um automóvel, à primeira vista o automóvel nos parece o culpado. Se um adulto estiver espancando um menor na rua, mesmo que este seja pivete, a primeira reação de quem assiste à cena é achar que é uma covardia. Todos temos uma admiração instintiva e/ou inconsciente pelo mais fraco que enfrenta o mais forte. Depois podemos, num segundo momento, até refazer o juízo, após sabermos as razões do conflito.

O modelo mítico de Davi e Golias é emblemático. O mais fraco e/ou menor mobiliza nosso imaginário: "-Como é que esse louco acha que vai ganhar essa luta? Não vê o seu tamanho?". Ao mesmo tempo que podemos ter certa pena do pequeno, uma secreta expectativa de que ele vença, parece mexer com pequenas frustrações nossas diante da enorme realidade que nos oprime.

Conforme disse num outro texto:- enquanto os aviões se chocavam contra as torres do WTC e do Pentágono eu estava também dentro de um avião, mas no meio do Brasil , assistindo, inocentemente, a um desenho animado de Tom & Jerry. Esse tipo de desenho nunca me agradou. Acho-o puro sadomasoquismo, de uma violência nada engraçada. Sei que vão dizer que criança gosta de violência, que Freud dizia que desde cedo manifestamos uma perversidade polimorfa. Pode ser. Mas não gosto. Contudo, parece que aquele gato enorme correndo atabalhoadamente atrás do ratinho safado e as armadilhas guerrilheiras do pequeno contra o grande agradam ao público, senão a série não sobreviveria tantos anos e as pessoas no meu avião não estariam dando gargalhadas.

Pois lá estão os maiores exércitos do mundo , felinamente, tentando desentocar o rato bin Laden de suas tocas.

Repito: embora muitos, por razões ideológicas, históricas e até neuróticas, queiram a ruína dos Estados Unidos, outros confessam não exatamente torcer pelo Taliban, mas revelam um certo incômodo diante dos Estados Unidos. Não é inveja, como tolamente alguns alegam. Meu barbeiro e o chofer de taxi, não têm nenhuma inveja da vida americana, não são terroristas, mas manifestaram imediata simpatia pelos árabes.

E adicionemos o seguinte. O cinema americano sempre fez a apologia do herói solitário. O vingador que tendo assistido à morte de seus pais ou da esposa por um bando de malfeitores, sai sozinho como um Davi para desafiar o Golias. A cultura americana insiste sobre o individualismo . É uma cultura de "winners". O indivíduo pode enfrentar e modificar o mundo. Kennedy jogou isto na cara de Kruschev. Quando este, armado das teses do materialismo histórico, veio dizendo que a história era a história do coletivo e das massas, o americano respondeu que não, que os indivíduos é que davam rumo à história.

Pois o herói solitário potencializa o conflito Eu versus Mundo e nele o inconsciente popular vê possibilitada sua chance de vitória. E o que está deixando muita gente agora desorientada é que estamos assistindo a um deslocamento de personagens e cenários. Esse alucinado bin Laden conseguiu, à sua revelia, instalar-se no imaginário coletivo como o fraco contra o forte, o pequeno contra o grande, o pobre contra o rico, o rato contra o gato. Enfim, o herói solitário, tribal, guerreiro e mítico nas montanhas, contra " o império do mal".

De resto, este conflito revela nuances no sentimentos que os Estados Unidos despertam. Há aqueles que são perdidamente apaixonados por eles. Há os que os odeiam. Há os que ficam entre uma coisa e outra. Seja como for, isto demonstra que os Estados Unidos são, desde há muito, o país mais bem-mal-amado do planeta.

E-mail para esta coluna:santanna@novanet.com.br

 

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