O MORCEGO E A SOCIEDADE.

por : Carlos Esbérard

Várias são as causas que dificultam a conservação dos morcegos : (1) Os morcegos são um dos grupos mais cercados de mitos, entre os quais podemos citar a lenda do vampiro, dificultando com isso, a preservação de espécies deste grupo; (2) O conhecimento de que uma das espécies - o Morcego-Hematófago – poder ser um dos vetores para a raiva, suplanta a imagem de que as outras espécies como controladores de insetos, polinizadores e dispersores de sementes; (3) A destruição da cobertura vegetal para agricultura e ocupação urbana, restringe grandemente a diversidade de espécies de morcegos e (4) O aproveitamento das áreas cársticas para produção de cimento e outros produtos, destroi as cavernas, refúgio importante para grande número de espécies de morcegos.

Na listagem de espécies ameaçadas de extinção do Brasil de 1990, nenhuma espécie de morcego havia sido considerada como ameaçada de extinção. Em 1995, através de reunião produzida pela Conservation International e Museu de Biologia Mello Leitão, os especialistas brasileiros em morcegos elaboraram uma lista de espécies de morcegos ameaçadas de extinção, indicando 8 espécies, pelos critérios da União Internacional de Conservação da Natureza (AGUIAR & TADDEI, 1996). Tal listagem foi ratificada em 1997 pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Renováveis através da sanção de portaria incorporando estas espécies a atual Lista de Espécies Animais Ameaçadas de Extinção do Brasil.

Com isso, nota-se a necessidade de preservar também os morcegos, mas a adoção de uma campanha preservacionista direcionada à este grupo colide com os dois primeiros aspectos listados acima. Para uma reversão deste antagonismo, mostra-se necessário planejar estratégia diferenciada para este grupo. Passo primordial para isto reside na análise do conhecimento da sociedade da biologia deste grupo.

O Projeto Morcegos Urbanos da Fundação RIOZOO tem como objetivo a preservação dos morcegos e desde 1994 vem analisando o conhecimento sobre os morcegos em vários segmentos da sociedade. Duas outras pesquisas anteriores já foram realizadas, demonstrando que a diversidade de morcegos é desconhecida do público e que a sociedade acredita que parte da lenda do vampirismo é verdadeira (ESBÉRARD, 1995; ESBÉRARD et al., 1996).

Realizou-se uma pesquisa na Fundação RIOZOO nos dias 12 e 13 de dezembro de 1998. Esta pesquisa analisou os pagantes de forma aleatória, onde a cada dez pagantes um era convidado a responder. Cinco entrevistadores aplicaram o questionário entre 10:00 e 16:00h. O questionário, com 10 perguntas com respostas em múltipla escolha foi preenchido em 202 entrevistas, correspondendo a 3,76% do total de visitantes que adquiriram ingresso do período.

À cada entrevista caracterizamos os entrevistados quanto a origem, faixa etária, sexo e escolaridade. Observamos um percentual de abstinência de 5% em média para cada pergunta, que foi considerado individualmente para cada questão. Com isso, o total de respostas consideradas não chega a 100% e a diferença representa o total de entrevistas que não responderam a tal questão.

O perfil dos entrevistados – Obtivemos entrevistas em idades variando de dez a 60 anos, com predominância para a faixa entre 30 a 35 anos (25%). Foram entrevistados mais homens (53%) do que mulheres (38%). A origem dos entrevistados foi predominante do Município do Rio de Janeiro (70%), sendo o restante dividido em outros municípios do estado (20%), de outros estados (4%) e estrangeiros (1%). O nível de escolaridade foi maior para o segundo grau completo (36%), seguido pelo primeiro grau (33%) e pelo terceiro grau (26%).

Os morcegos tem alguma função ? Cerca de 2/3 dos entrevistados apontam os morcegos como importantes contribuintes para a qualidade do meio. O total de 65% dos entrevistados responderam que os morcegos tem alguma função benéfica – controle de insetos (31%), replantar (23%) e polinizar (11%). Das respostas, 11% afirmaram que os morcegos tinham como hábito lamber sangue e 18% de que os morcegos não apresentavam qualquer função.

Onde se encontram mais morcegos ? Mais da metade dos entrevistados apontaram as cavernas (57%) como o principal local para morcegos, enquanto 29% apontaram áreas urbanizadas – 17% em quintais, 10% em depósitos de lixo e 2% nas cidades. Apenas 9% das entrevistas apontaram as florestas. Certamente as cavernas são importante refúgio para morcegos, mas é em áreas florestadas onde a maior diversidade de morcegos pode ser observada. No Município do Rio de Janeiro 42 espécies foram relatadas (ESBÉRARD, 1999), mas apenas 12 (28,6%) são encontradas em áreas mais degradadas. Nas áreas urbanas as poucas espécies podem apresentar contigentes populacionais elevados, destacando-se duas insetívoras (Myotis nigricans e Molossus molossus), uma nectarívora (Glossophaga soricina) e três frugívoras (Artibeus lituratus, Artibeus fimbriatus e Platyrrhinus lineatus) (ESBÉRARD et al., 1994).

A alusão aos depósitos de lixo pode se dever à aversão que este grupo causa em algumas pessoas causam ou pela suposição de que visitam estes locais para capturar os insetos de que se alimentam.

Para espantar um morcego de sua casa você faria o que ? Metade dos entrevistados apontaram luzes como um eficiente meio de repelir os morcegos e 8% indicaram o uso de sons. No entanto, 4% usariam métodos pouco funcionais, como alho e enxofre, com 2% para cada. A alusão a alho provavelmente advém dos filmes de vampiros, onde os personagens utilizam restias de alhos para se proteger do ataque de vampiros. O uso de enxofre, naftalina e outros produtos odoríferos já foi citado por moradores incomodados com a presença de morcegos em suas moradias, sem qualquer resultado satisfatório ou duradouro. No entanto, 29% dos entrevistados associaram a presença de morcegos às árvores do paisagismo urbanos ou de quintais, sugerindo o corte destas. Várias árvores do paisagismo são atrativas para os morcegos e, quando próximas às residências podem causar problemas como a entrada eventual destes animais e/ou a deposição de dejetos e restos no mobiliário urbano (ESBÉRARD et al., 1994). somente com um planejamento poder-se-á minimizar este problema, empregando doravante árvores não atrativas para a fauna muito próximas a residências.

Por que não gostam dos morcegos ? Mais da metade dos entrevistados apontaram os morcegos como perigosos – 38% por transmitirem doenças e 17% por morderem. Dos demais entrevistados 38% apontaram razões não ligadas a periculosidade – 31% por serem feios, 6% por não serem úteis e 1% por serem frios. Morcegos mordem de fato e duas razões podem ser apontadas : (a) para defesa quando manipulados – mordeduras defensivas e (b) para alimentar-se, restritas aos Morcegos-Hematófagos, processo que raramente envolve seres humanos e serve para obter alimento – mordeduras alimentares. Morcegos podem ser transmissores da raiva, assim como as demais espécies de mamíferos e são o segundo grupo responsável pela transmissão desta doença em meio urbano, superado pelos carnívoros domésticos, os cães e gatos. Mas os animais domésticos não resultam em aversão ou são perseguidos por isso.

Considerar os morcegos feios não parece ser uma razão válida, visto que a maioria não consegue visualiza-los com detalhes, mas apenas uma silhueta em movimento durante o período noturno. Úteis eles são, atuando como polinizadores, dispersores de sementes e controladores de insetos. E sendo mamíferos, são homotérmicos, isto é, tem a temperatura elevada, variando de 31 a 40° C e não frios como sugere a opinião desta pesquisa.

Morcegos são agressivos quando ...? Ao ser feita esta pergunta obtivemos de cerca da metade dos entrevistados (47%) a afirmativa de que os morcegos eram agressivos quando pertubados. A este valor podem ser somados ainda, 24% quando estão com filhotes, 5% quando estão comendo e 2% quando estão dentro das residências. Apenas 17% afirmaram que os morcegos nunca são agressivos. Morcegos só mordem se manipulados ou por acidente, exceção feita aos ataques realizados por Morcegos-Hematófagos, que só ocorre em período de repouso da presa, que não acorda com a mordedura e, que são extremamente raros. Cremos que a maioria das pessoas considera erroneamente ataques quando o animal aproxima-se ainda em vôo.

Morcegos são aparentados dos ...? A maior parte das respostas foi dirigida aos ratos (65%), seguida por corujas (18%), mariposas (8%), cangurús (3%) e macacos (3%). Estudos recentes sugerem a formação de um grande grupo, unindo, por afinidade, as ordens dos primatas (macacos) e quirópteros (morcegos), além dos insetivora ( topeiras) e dermopteros (lemures voadores) (EISENBERG, 1991). No entanto, os macacos só corresponderam a 3% das respostas válidas.

A associação às corujas e mariposas (total de 26%) pode ter sido feita unindo os grupos com capacidade real de vôo, que os morcegos também apresentam e são os únicos entre os mamíferos. É fato conhecido a associação de morcegos à ratos velhos (ESBÉRARD, 1995 e ESBÉRARD et al.,1996). Os nomes vulgares dados pela população aos morcegos já associam erroneamente aos ratos : em espanhol murciélagos (mur = ratos, ciélagos = cegos), em francês chauve-souris (rato careca) e em alemão fledermaus (rato voador). O suposto parentesco a formas consideradas pragas nada pode ajudar a preservação dos morcegos.

O que comem os morcegos ? A maioria das respostas apontou como alimento os frutos (62%), seguido por sangue (20%) e insetos (10%). Néctar só foi escolhido por 3% dos entrevistados e nenhum entrevistado escolheu peixes. Das 42 espécies relatadas para o Município do Rio de Janeiro (ESBÉRARD, 1999), 42,9% são insetívoras, 28,6% são frugívoras, 9,5% são nectarívoras, 7,1% são hematófagas, 4,8% são carnívoras, 4,8% são onívoras e 2,3% são piscívoras (GARDNER, 1977). Em meio urbano é muito mais fácil observar-se a ingestão de frutos, explicando-se com isso a maior escolha pelos entrevistados. É grandemente elevado o número de respostas atribuídos ao sangue, quando um reduzido número das espécies do Estado do Rio de Janeiro emprega o sangue de aves e mamíferos. Os morcegos insetívoros, apesar de mais numerosos em espécies e poderem ser observados voando antes mesmo do escurecimento não tem o hábito alimentar reconhecido pelos moradores da cidade, provavelmente, por capturarem insetos de porte muito reduzido, que passam desapercebidos.

Quanto pesa um morcego ? Os entrevistados apontaram para 5g (2% das respostas), para 10g (13%), para 30 g (24%), para 100 g (29%) e para 150 g (26%). Tal resultado demonstra que os moradores atribuem grande tamanho aos morcegos. Analisando-se as espécies do Município do Rio de Janeiro obtém-se que a média de peso das 42 espécies é de 29,3 g, variando de 4 a 120 g. As espécies mais fáceis de serem observadas pelos moradores são as espécies do gênero Artibeus, que se alimentam de frutos do paisagismo urbano e refugiam-se entre ramos e em construções residenciais (ESBÉRARD et al, 1999). Este gênero é representado em meio urbano por duas espécies, Artibeus lituratus e Artibeus fimbriatus, com respectivamente, 70 e 60 g de peso. Fato que pode ter sido responsável pelo grande peso apontado pelos moradores.

Quanto mede um morcego de asas abertas ? De maneira contrária ao peso, a envergadura apontada pelos moradores foi próxima ao real. A maior envergadura entre espécies urbanas não deve exceder 60 cm, sendo uma das maiores, a do gênero Artibeus. Dos entrevistados, 9% apontaram para 10 cm de envergadura, 38% 20 cm, 36% 50 cm, 10% 80 cm e 3% 100 cm.

Quando um morcego nasce ...? Dos entrevistados, 26% escolheram que são dependentes da genitora e 33% que se desenvolvem rápido. O restante das respostas apontaram fatos errôneos – 26% acompanha a mãe, 8% que já voava ao nascer e 1% que já nascia grande. A maioria das espécies de morcegos no Município do Rio de Janeiro tem um único filhote por parto e algumas 2 ou até 4 filhotes (Gêneros Eptesicus e Lasiurus, respectivamente). Até 2 partos são apresentados a cada ano e apresentam período lactacional de 4 a 16 semanas (NOWAK, 1991). A prole compreende até 25% do peso materno nas espécies já estudadas.

Por várias vezes ouvimos relatos de moradores que observam f6emeas com seus filhotes voando junto às casas. Os morcegos ao atingirem a capacidade de voar apresentam o tamanho normal da espécie, permitindo discernir que os morcegos menores apontados pelos moradores tratam-se de exemplares de espécies diferentes.

Com base nestes resultados e de pesquisas anteriores podemos apontar que campanhas preservacionistas a serem adotadas no Município do Rio de Janeiro devem ser centradas em :

  1. Divulgação da diversidade de espécies, demonstrando a gama de nichos ecológicos ocupados por este grupo de mamíferos e sua importância como dispersores de sementes, polinizadores e controladores de insetos;
  2. Desmistificar os morcegos, desvinculando primordialmente da lenda do vampirismo;
  3. Demonstrar a existência de populações urbanas de morcegos, que se utilizam dos recursos disponíveis, tais como fazem outros grupos, como aves e
  4. Ressaltar a necessidade da preservação dos remanescentes florestais para se alcançar a perpetuação da maior parte das espécies de morcegos atuais.

A aversão a estas espécies pode ser notada nos resultados obtidos. Creio que o único método capaz de reverter este quadro é apresentação com exemplares, como já experimentamos em algumas ocasiões. É importante que seja notado que morcegos não se parecem com ratos, possuem o corpo coberto por pelos, apresentem formas e portes diferenciados. Dada a dificuldade de manter um elevado número de espécies para tal fim e que não seja estimulado o contato direto dos moradores com estes animais, mostra-se ideal o uso de animais preservados em meio líquido ou taxidermizados. É primordial enfatizar sempre que morcegos encontrados caídos ou no interior de casas jamais devem ser tocados pelos moradores.

Para obter-se uma convivência mais pacífica com os morcegos em meio urbano também é necessário adotar o quanto antes planejamento da arborização urbana, não empregando espécies atrativas, isto é, aquelas que produzem recursos para a fauna junto às áreas residenciais. É importante divulgar que as espécies arbóreas que atraem aves durante o dia também atrairão morcegos. A implantação de corredores para a fauna deve ser adotado para permitir o fluxo genético entre os remanescentes, no entanto, a arborização em bairros densamente povoados e em logradouros de largura reduzida deve se restringir a espécies arbóreas não atratrivas. Outro ponto a ser aplicado para minimizar possíveis percalços com a existência dos morcegos consiste na reformulação da arquitetura, produzindo estruturas a prova de animais, evitando vãos de dilatação abertos, espaços entre os aparelhos de ar-condicionado, frestas em telhados, etc. Órgãos estatais devem apoiar e priorizar pesquisas em métodos de repelir a fauna em residências e o uso de refúgios artificiais, diminuindo assim as interações indesejáveis com a fauna presente em áreas urbanas, como já foi proposto o uso de pombais como meio de minimizar o uso por pombos de construções próximas.

Agradecemos aos estagiários Roberta Cruz, Mariane S. Nunes, Alessandra D. Hamond, Rodrigo A. Carneiro e Eliane M. Luz, que ajudaram na realização das entrevistas e as criticas a uma das versões deste manuscrito a Claudia Magnanini.

AGUIAR, L. M. & V. A. TADDEI (1995) : Workshop sobre a conservação dos morcegos brasileiros. Chiroptera Neotropical 1 (2) : 24-29.

EISENBERG, J. F. 1991. Mammalian radiations – na anlysis of trends in evolution, adaptation, and behaviour. Athlone Press, 610 p.

ESBÉRARD, C. E. L., M. R. NOGUEIRA, M. A. O. MOCELIN, A. M. C. SANTANA & A. POL. 1994. Análise preliminar dos problemas com morcegos em meio urbano no Município do Rio de Janeiro (RJ, Brasil). Anais do I Encontro de Ciências Ambientais 1 : 348-362.

ESBÉRARD, C. E. L. 1995. Morcego : uma vitima das superstições. Ciência Hoje 18 (105), 71-72.

ESBÉRARD, C. E. L., A. S. CHAGAS, E. M. LUZ & R. A. CARNEIRO. 1996. Pesquisa com público sobre morcegos. Chiroptera Neotropical 2 (1) : 44-45.

ESBÉRARD, C. E. L., A. S. CHAGAS, E. M. LUZ, R. A. CARNEIRO & L. F. S. MARTINS 1998. Considerações sobre o morcego hematófago (Desmodus rotundus) na cidade do Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Revista Brasileira de Medicina Veterinária 19 (5) : 209-215.

ESBÉRARD, C. E. L., A. S. CHAGAS & E. M. LUZ. 1999. Uso de residências por morcegos no Estado do Rio de Janeiro (Mammalia : Chiroptera). Revista Brasileira de Medicina Veterinária 21 (1) : 17-20.

ESBÉRARD, C. E. L. 1999. Diversidade de Chiroptera em unidades de conservação do Maciço da Tijuca, Município do Rio de Janeiro, RJ. Tese de Mestrado, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 94 p.

GARDNER, A. L. 1977. Feeding habits. Special Publications, The Texas Tech University. 13, 293-350.

NOWAK, R. M. 1991. Walker's mammals of the world. 3rd ed. Vol. 1, John Hopkins University Press. 1629 p.

WB01343_.gif (599 bytes)     WB01345_.gif (616 bytes)

1