A Eletrificação nas Ferrovias Brasileiras

Companhia Paulista de Estradas de Ferro


Introdução

Em 1867 a São Paulo Railway logrou ligar o porto de Santos até Jundiaí, cidade na boca do interior paulista, a aproximadamente 140 quilômetros do litoral. Era um avanço e tanto para facilitar o escoamento das colheiras de café, cultura que então avançava triunfalmente pela região. Era vital que a ferrovia continuasse interior adentro, cumprindo sua missão de facilitar o escoamento de cargas e pessoas que se fazia necessário para o progresso do estado de São Paulo. Contudo, os acionistas ingleses que controlavam a São Paulo Railway não tinham o menor interesse em continuar expandindo sua ferrovia. Afinal, eles já tinham a parte do leão: o monopólio do acesso ferroviário ao porto de Santos, arrancado através de manobras obscuras ao Barão de Mauá, o idealizador e primeiro construtor dessa estrada de ferro. Se os brasileiros quisessem mais ferrovias, eles é que corressem o risco, pois os lucros do Império Britânico já estavam garantidos!

Foi justamente o que uma união de fazendeiros de café decidiu fazer: já que a ferrovia inglesa não tinha interesse em explorar o transporte ferroviário a partir de Jundiaí, então que uma ferrovia brasileira o fizesse. Foi constituída então a Companhia Paulista da Estrada de Ferro entre Jundiaí e Campinas, inaugurada em 1868 e ligando, numa primeira etapa, apenas essas duas cidades. Mas logo a pujança da cultura cafeeira possibilitou sua expansão rumo ao interior paulista, primeiramente rumo a Rio Claro, São Carlos, Barretos e Colômbia, no rio Grande; mais tarde, Jaú, Bauru e Panorama, na barranca do rio Paraná. Além disso, incorporou diversas ferrovias tributárias menores ao longo desses dois troncos principais, criando ampla rede ferroviária que atendia à região central do estado de São Paulo, destacando-se a E.F. Douradense e E.F. São Paulo-Goyaz. Ela ainda operava em conjunto com outras ferrovias que partiam a partir de suas linhas tronco, como a Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, em Campinas, e E.F. Noroeste do Brasil, em Bauru, garantindo o fluxo de seus passageiros e carga até a capital paulista e o porto de Santos.

Esse rápido resumo não faz justiça à epopéia da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, uma empresa que, sob sua administração original, sempre se pautou por uma extrema racionalidade no planejamento de sua expansão e por uma excelência técnica ímpar. É realmente inacreditável como uma empresa brasileira pôde ter caráter tão eficiente e racional num país onde a irreverência, imprevidência e a falta de persistência são a tônica do comportamento geral. Não é a toa que ainda hoje, mais de trinta anos após sua extinção como entidade jurídica, a Companhia Paulista de Estradas de Ferro é lembrada com orgulho e saudade. Afinal, desde os seus primórdios, foi reconhecida como sendo uma ferrovia exemplar e símbolo de excelência. Podia-se acertar o relógio com a passagem de seus trens. Seu famoso monograma, com as letras "C" e "P" entrelaçadas - na verdade, um símbolo emprestado do Conde de Pinhal, de São Carlos - ainda assombra os fãs ferroviários, inclusive alguns nascidos muito tempo após o fim da companhia!

Dois símbolos marcaram de forma indelével o nível de excelência da companhia: seus famosos trens de luxo azuis, com carros Pullman Standard, e suas locomotivas elétricas, em especial a famosa e imponente V8, com formato aerodinâmico. Esse era um conjunto marcante pela rapidez, conforto e pontualidade. Nunca mais será possível viajar ao interior contando com a comodidade de carros-restaurante, dormitórios, poltronas giratórias individuais...

A Companhia Paulista foi a primeira ferrovia brasileira de primeira linha que eletrificou suas linhas, ainda na década de 1920, num brilhante trabalho do igualmente lendário engenheiro Francisco de Monlevade, que soube selecionar e dimensionar um sistema que prestou bons serviços por mais de 75 anos - um recorde que demorará a ser quebrado, se é que um dia virá a ser. No Brasil de hoje isso parece corriqueiro, mas é necessário observar que os estudos para a eletrificação da C.P. se iniciaram em 1916, num país periférico, agrário e sem praticamente nenhuma tradição técnica. A implantação de um sistema sofisticado como esse não incluía apenas a compra e instalação de equipamentos caros e sofisticados para a época, como também implicou no treinamento de maquinistas e empregados pela própria companhia. Não haviam escolas, faculdades e universidades que pudessem lidar com o tema no Brasil. E mesmo os técnicos da General Electric e da Westinghouse que aqui vieram acompanhar a implantação do novo sistema de tração puderam aprender bastante com a experiência da Paulista com esta nova tecnologia.

Após a implantação extraordinariamente bem-sucedida do programa de eletrificação entre Campinas e Jundiaí ele foi paulatinamente estendido ao longo das linhas de bitola larga da Paulista, alcançando Rincão, na linha de Barretos, em 1928. Trinta anos após sua implantação, em 1954, ele atingiu a sua extensão máxima, alcançando Cabrália Paulista, na linha de Bauru.

Infelizmente a grave crise econômica que se abateu sobre as ferrovias após a década de 1950 impediu o prolongamento da eletrificação além desses pontos. Ainda assim, o sucesso da eletrificação foi suficiente para mantê-la funcionando por várias décadas a fio. Em 1995, contudo, a administração da Ferrovia Paulista - FEPASA, empresa estatal que havia absorvido a Companhia Paulista em 1971, decidiu que a manutenção da eletrificação era tecnica e economicamente inviável, dada a obsolescência do sistema. Essa decisão administrativa acabou sendo revogada e a eletrificação voltou a funcionar em 1996, ainda que em caráter bastante precário. O golpe de misericórdia veio em 1999, com a privatização da FEPASA: o novo concessionário, Ferrovias Bandeirantes - FERROBAN, não se interessou em manter a tração elétrica. O sucateamento da rede elétrica se deu entre o fim de 1999 e início de 2000. Um final realmente inglório para uma conquista tecnológica espetacular conquistada num país ainda agrário e inculto.




ÍNDICE





1916-1920: Ensaio de Revolução

Se a Paulista não for eletrificada, em breve não distribuirá dividendos.
Eng° Francisco de Monlevade, 1916

Em meados da década de 1910 a escalada nos preços do carvão começou a preocupar seriamente as administrações das ferrovias nacionais. O consumo nacional desse combustível se elevara espetacularmente face ao desenvolvimento do país, que na época era promovido pela fase áurea do ciclo do café. Até então o custo do transporte desse insumo até o país era relativamente barato, pois os mesmos navios que vinham buscar produtos brasileiros de exportação, como café, cereais e carne aproveitavam a viagem para trazer o carvão importado. Contudo, a medida que o volume de carvão consumido aumentou exponencialmente, essa solução já não mais atendia à demanda, forçando a contratação de navios especificamente para trazer esse combustível ao Brasil, obviamente a preços menos favoráveis.

A deflagração da I Guerra Mundial piorou ainda mais a situação, em função do carvão ser necessário ao esforço de guerra das potências beligerantes. Além disso, o transporte marítimo ficou muito mais caro, pois a disponibilidade de navios mercantes diminuiu muito, seja em função das necessidades da guerra, seja em função do torpedeamento de muitos deles ao longo do conflito.

A solução clássica brasileira para esse problema foi a substituição do carvão pela lenha, que era relativamente abundante no Brasil. Contudo, esta solução não era viável a longo prazo, pois seu consumo era muito elevado, mesmo para um país que ainda dispunha de grandes florestas. Essa decisão provocou enorme devastação ambiental. Logo as ferrovias tinham de buscar lenha em pontos cada vez mais distantes, encarecendo o custo do combustível e mobilizando material rodante para seu transporte. Para complicar a situação, o poder calorífico da linha é menor do que o do carvão, requerendo maior volume de combustível para a mesma demanda. A criação de Hortos Florestais para abastecer as ferrovias, como o criado pela Companhia Paulista em Rio Claro, foi uma medida acertada, mas que não logrou resolver completamente a questão.

Essa situação fez que em 1916 a diretoria da Companhia Paulista de Estradas de Ferro solicitasse a seu corpo técnico que fizesse uma análise sobre a possibilidade do uso da tração elétrica. Contudo, o assunto era muito novo e os estudos progrediram lentamente, até em função das dificuldades provocadas pela guerra. Contudo, um relatório interno do departamento de Locomoção da Companhia Paulista, datado de 6 de fevereiro de 1918, já fazia uma detalhada discussão sobre a oportunidade do uso desse novo modo de tração. Esse documento não possui indicação de sua autoria, mas é praticamente certo que tenha sido escrito por Monlevade. Neste relatório já há uma profunda discussão técnica sobre os problemas encontrados na aquisição de lenha e carvão, a possibilidade de adoção da eletrificação, suas vantagens e desvantagens e uma comparação entre os dois sistemas.

É interessante notar que entre os primeiros estudos sobre a eletrificação feitos na Companhia Paulista se inclui um trabalho feito pelo eng° Gabriel Penteado onde se avaliou o potencial hidrelétrico do salto de Capivari, na serra do Mar, a 90 quilômetros de Jundiaí. O trabalho revelou que esse salto permitiria proporcionar 24.000 HP de energia elétrica sem que houvesse a necessidade de uma represa, já deduzidas todas as perdas em função da transmissão e conversão até Jundiaí. A adoção de um reservatório teria elevado a potência dessa usina para 36.000 HP. Acredita-se na época que a energia gerada por essa usina seria suficiente para atender toda a demanda da Companhia Paulista, mesmo com volume de tráfego triplicado e com a eletrificação se estendendo até São Carlos ou Araraquara, a um custo de Rs 12.000:000$000, considerado relativamente baixo em função dos benefícios que proporcionaria. Há também alguma evidência que já nessa época a E.F. Sorocabana tinha interesse em aproveitar o potencial energético dessa queda d'água numa eventual eletrificação de suas linhas. Ela era sempre citada quando se cogitava sua eletrificação... E, de fato, essa ferrovia acabou construindo uma usina hidrelétrica nesse local em 1940, mas para fornecer energia elétrica para suas estações e instalações nessa região. Posteriormente essa usina foi expandida no final da década de 1950 para suprir de energia o trecho eletrificado ao longo da Serra do Mar da linha Mayrink-Santos.

A proposta final do relatório de 7 de novembro de 1918 consistia em se eletrificar o trecho Jundiaí a Cordeirópolis em uma só etapa e, após dez anos de operação, analisar a viabilidade de se estendê-lo ao menos até Araraquara e reavaliar a questão do suprimento de energia elétrica.

Somente em 1919, com o fim do conflito, é que foi possível que uma comissão pudesse visitar as ferrovias eletrificadas nos Estados Unidos e Europa, observando na prática os avanços que haviam sido feitos nessa área. Em dezembro desse ano o Eng. Francisco de Monlevade apresentou o relatório de seu estudo à direção da ferrovia.

Esse relatório, publicado num livro por ocasião do Congresso Ferroviário Sul-Americano de 1922, mostrou que já haviam vários sistemas de eletrificação ferroviária em operação comercial. Na Itália e Suíça se usava corrente alternada, trifásica e monofásica, respectivamente; nos E.U.A. usava-se corrente contínua de alta tensão, o mesmo sistema que a França se mostrava disposta a seguir. Monlevade mostrou neste relatório as vantagens e desvantagens de cada sistema de maneira bastante detalhada. Finalmente, chegou às seguintes conclusões:

  1. Sob o ponto de vista technico e experimental, não resta dúvida que a tracção eléctrica póde substituir a de vapor sem desvantagem quanto ao bom funccionamento de seu organismo aliás bastante complexo.

  2. No que diz respeito a resultados economicos, a electrificação não comporta preceitos geraes que determinem com precisão a sua conveniência.

    O custo de suas instalações é sempres muito elevado e cada caso particular exige cuidadosa analyse para que seja possivel verificar se ella será ou não vantajosa.

    O factor principal que deve decidir da sua applicação será o preço do combustível, comparativamente ao da energia electrica disponivel; e só nos casos em que fôr consideravel a diffença entre um e outro, será possivel emprehendel-a com suficientes garantias quanto á remuneração do capital necessario.

  3. As locomotivas electricas têm melhor aproveitamento que as de vapor, as quaes, em igualdade de condições de trafego, ellas substituem em menor numero. Pode-se affirmar que a efficiencia diaria daquellas é superior á delas em 50% ao menos, em igualdade de potencia mechanica.

  4. As reparações e conservação das locomotivas electricas são menos dispendiosas que as de vapor, pelo menos quanto aos dispositivos mechanicos equivalentes em umas e outras. O mecanismo electrico é, porém, delicado, e exige muito cuidado por parte dos machinistas e operarios, para evitar incidentes e avarias, sobretudo nos motores de corrente continua em que se usa a recuperação.

De toda forma, ele aconselhou vivamente a eletrificação da Companhia Paulista, ainda que feita metodicamente, argumentando que:

  1. O combustivel, que no decennio anterior á grande guerra representava apenas 15% das despezas totaes da Companhia, apesar de se usar exclusivamente lenha, ao baixo preço de 4$000 por metro cubico, cresceu em proporções formidáveis quanto ao consumo, porquanto em 1919 consumiu-se um milhão de metros cúbicos, enquanto que em 1909 apenas se gastava 500.000 metros; e não é duvidoso que cresça na mesma proporção, com o grande augmento que se vem notando no trafego, tanto de passageiros como de mercadorias.

  2. O carvão estrangeiro, que até 1915 custava, posto em Jundiahy, 40$000 por tonelada, em media de dez anos, subiu agora a preços inabordáveis, e não é licito suppor que baixe a menos de 70$000, porquanto são bem conhecidas as condições actuaes da Europa e America, no que diz respeito a salarios, e outros elementos de qualquer industria.

    O carvão nacional, quando mesmo se consiga melhoral-o pela briquetagem e pulverisação, de modo a substituir o estrangeiro em egualdade de poder thermico, não custará sensivelmente menos que o inglez ou americano, porque o seu preço acompanhará sempre, com pequena melhoria, o que regular no mercado para os de outras procedencias, tanto mais que as jazidas são distantes do ponto inicial das linhas da Paulista, e os fretes elevados.

    A lenha, que durante muitos annos prestou inestimavel auxilio econômico ás Estradas de Ferro Paulistas, escassêa rapidamente e encarece do mesmo modo. Em 1909 ella custava 4$000 por metro cubico, nos tenders das locomotivas de 1m60; actualmente custa o dobro, e precisa ser conservada, nas zonas mais longinquas, em que ainda é facil encontral-a, para se empregada nos ramaes do interior em que o trafego ainda não justifica as despezas elevadas das installacoes electricas ou mesmo do carvão.

    A cultura florestal que tem mostrado tão promissores resultados nos hortos da Paulista, poderia certamente fornecer lenha de muito boa qualidade, a preços convenientes, ao menos para atender as exigencias da tracção em uma extensão consideravel de suas linhas.

    Seria, porém, um paradoxo economico utilisar para tal fim as varias especies de eucalyptus, cuja applicação ás construções, marcenaria e outros fis, sem contar os dormentes, teriam um resultado muito mais remunerador.

  3. O alargamento da bitola de 1m00, determinado pelo progresso do Estado, já se acha em execução entre S. Carlos e Araraquara (50 kilometros). Em poucos annos será indispensavel fazel-o, por Piracicaba, até Baurú (mais 200 kilometros), e a maioria das locomotivas a vapor que a Paulista possue actualmente, apenas bastará para attender ao trafego daquellas linhas.

    Impõe-se, portanto, nos trechos de intensa circulação (Jundiahy-Campinas e Campinas-Rio Claro) substitui-as pelas elétricas.

    Alargar a bitola, não adquirir mais locomotivas thermicas, electrificar as secções de maior trafego, sem interrupção, mas methodicamente, constitue na Companhia Paulista um programma tão seguro e indicado, que qualquer objecção seria inadmissível, mesmo para os mais intransigentes partidarios da tracção a vapor.

De fato: o acentuado progresso do estado de São Paulo estava impondo um enorme aumento no tráfego da Paulista, principalmente do trecho entre Campinas e Jundiaí, onde ela fazia conexão com a São Paulo Railway. Conforme escreveu Eduardo Coelho em sua importante série sobre a eletrificação ferroviária no Brasil, na época a companhia tinha basicamente locomotivas a vapor 2-8-0 para carga mais 4-4-0 e 4-6-0 para trens de passageiros. A maior parte desse parque locomotor tinha mais de vinte anos e estava obsoleto, tendo ainda de operar com lenha, combustível caro e de rendimento energético inferior. Além disso, 15 locomotivas e 100 vagões tinham de ficar reservados para o transporte desse insumo, apenas no trecho entre Campinas e Jundiaí. Em 1917 a C.P. tinha comprado quatro locomotivas Pacific 4-6-2 da ALCO, mas ainda seriam necessárias mais vinte locomotivas de grande porte para resolver os problemas de tração. Isso configurava um quadro bastante delicado de transição, onde teria de ser tomada uma decisão que traria conseqüências definitivas para a ferrovia - e, na época, também para o estado e o país.

Outro fator favorável à eletrificação seria a possibilidade de se adiar por um significativo período de tempo a duplicação do trecho entre Campinas e Cordeiro (atual Cordeirópolis), uma obra que também estava sendo estudada nessa ocasião. Acreditava-se que a maior eficiência e velocidade das locomotivas elétricas permitiria uma utilização mais intensa da via permanente, minimizando a necessidade de obras de grande vulto para sua duplicação. Além disso, o centro de gravidade mais baixo das locomotivas elétricas permitia manter velocidades mais altas em curvas do que as locomotivas em vapor. Logo, a velocidade média dos trens podia ser aumentada sem investimentos na via permanente, e com menor fadiga para a linha. Curvas com 300 metros de raio onde trens de passageiros conduzidos por locomotivas a vapor tinham velocidade limitada a 80 km/h (em 1918!) poderiam ter sua velocidade elevada para 100 km/h com as novas locomotivas elétricas.

Monlevade mostrou-se particularmente interessado pelo sistema de eletrificação em corrente contínua de alta voltagem, típico das ferrovias elétricas americanas da época, até em função do entusiasmo mostrado por especialistas franceses. Um sistema que o impressionou profundamente e que acabou se tornando a base da eletrificação da CP - e também do país, acabando por ser adotado como padrão por lei de 1934 - foi a eletrificação em corrente contínua de 3 kV usada na ferrovia Chicago, Milwaukee, St. Paul & Pacific - The Milwaukee Road. Eis os seus comentários a respeito desse sistema:

Primitivamente localisado nos tramways e linhas suburbanas, com tensão não excedente de 800 a 1.200 volts, a corrente contínua foi rapidamente emrpegada em voltagem mais elevada na America do Norte, sobretudo pelos esforços da General Electric Company, que não occulta sua preferencia por este systema de electrificação, que parece apresentar na acutalidade um conjuncto de caracteristicas mais completo que qualquer dos outros. Com effeito:

  1. Os motores, do typo serie, permittem um funccionamento em potencia constante, como acontece nas locomotivas a vapor e no systema monophasico.

  2. A variação de velocidade, nas locomotivas movidas por este typo de motores, póde ser feita á montade do machinista, entre limites largamente sufficientes para as exigências praticas de tracção, quasi tão facilmente ocmo no systema monophasico e com muito maior amplitude e efficencia mechanica que no triphasico.

  3. A recuperação de energia pelos ultimos melhoramentos introduzidos, graças a General Electric Company, faz-se quasi tão bem como no caso dos motores triphasicos, e incomparavelmente melhor do que nos monophasicos. (...) Consegue-se uma recuperação bem proxima a 50% da energia produzida pela gravidade em declives de dois por cento, á velocidade de 60 kilometros por hora, como tivemos occasião de observar seguidamente em trens de passageiros da Saint Paul-Milwaukee.

  4. O systema continuo só exige uma linha de contacto, como acontece com o monophasico, apresentando vantagem, portanto, nesse ponto de vista sobre o triphasico, que necessita de duas.

  5. As perturbações produzidas nas linhas de fraca tensão (telegraphos e telephones) são quasi nullas, ao passo que no monophasico e triphasico são consideráveis.

    Essa vantagem é importante em qualquer estrada de ferro. Si fosse resolvido na Paulista adoptar qualquer dos dois outros systemas, as despezas para protecção daquellas linhas seriam consideráveis.

Mas Monlevade também alertou para as desvantagens da eletrificação em corrente contínua:

O maior inconveniente da corrente continua na tracção consiste na necessidade das sub-estações transformadoras rotatorias, ao longo da linha ferrea. Apezar de se haver conseguido, pela elevação a 3.000 volts da tensão na rede distribuidora, espaçar essas sub-estações de 50 a 60 kilometros, sem queda de potencial superior a 10 por cento, não é menos certo que o accrescimo de despezas de installação, que dellas resulta, é consideravel, comparado com o monophasico e mesmo com o triphasico. É assim que, electrificando-se a Paulista até Cordeiro (117 kilometros) pelo systema continuo seriam necessarias duas sub-estações, que custariam cerca de 500.000 dollars, ao passo que, empregando o triphasico (com a frequencia mais conveniente no primario, si ella existisse na usina geradora), apesar de serem precisas 12 sub-estações, porem unicamente compostas de transformadores estaticos, a despeza a fazer não importaria em mais de metade daquella quantia.

Com o monofásico, a despeza seria ainda menor em consequencia da maior simplicidade na linha de contacto e maior espaçamento entre as sub-estações estáticas.

E conclui com as seguintes considerações sobre a seleção do melhor sistema para eletrificação ferroviária:

  1. Sempre que a energia electrica tenha de ser adquirida de usinas particulares, em alta frequencia (acima de 25 cyclos, conforme é mais comum), os systemas triphasico e monphasico exigirão transformadores rotatorios, perdendo assim suas vantagens especificas quanto á economia de installação. A preferencia, em tal caso, inclina-se para a corrente continua.

  2. Quanto uma via ferrea resolver installar uma usina de producção de energia, para seu uso exclusivo, podendo, portanto, adoptar nella a frequencia mais conveniente ao triphasico e monophasico (15 a 18 periodos), o systema monophasico será provavelmente menos dispendioso quanto ás despezas totaes de installação, mesmo incluindo as que se referem ás locomotivas, que são mais caras nesse systema que nos outros dois.

  3. Si, além disso, a linha a electrificar fosse de perfil mais ou menos plano, ou em rampas e contrarrampas fortes e longas, e o trafego feito com trens frequentes, de peso relativamente pequeno (até 400 toneladas), haveria provavelmente conveniencia em adoptar o systema triphasico, apesar de sua maior complicação quanto á linha de contacto, que em taes circunstancias seria contrabalançada pela simplicidade das locomotivas.

  4. No caso de linhas longas, com grande trafego de trens pesados (acima de 500 toneladas), com perfis variaveis, qualquer que seja a fonte de energia electrica (particular ou propria), a corrente continua de alta tensão teria a preponderancia, em conjuncto, sobre qualquer das suas competidoras. O systema monophasico, que em taes circumstancias poderia apresentar probabilidades de concurrencia, quanto ao custo inicial das linhas de contacto e sub-estações, seria de menor rendimento mechanico e custeio de tracção mais oneroso, sobretudo pela sua deficiencia quanto á recuperação de energia, subsequente frenagem electrica dos trens, e necessidade de apparelhamento contra as perturbações nas linhas telegraphicas e telephonicas.

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1920-1922: A Implantação

A Companhia Paulista, pela primeira vez na America do Sul, realisou um commettimento que será certamente apreciado como merece, por todos que se interessam pelo progresso ferroviario nacional, tão intimamente ligado ao de nossa Patria.

O sistema finalmente escolhido para a eletrificação do trecho Jundiaí-Campinas da Companhia Paulista foi o mesmo usado na The Milwaukee Road, a qual eletrificou seus trechos mais críticos entre 1915 e 1919 usando o sistema da General Electric Company, empregando corrente contínua de 3 kV. A mesma companhia foi escolhida para implantar o sistema na C.P., também por ter oferecido financiamento e condições favoráveis de pagamento. A montagem do equipamento se iniciou em setembro de 1920, tendo sido concluída em 23 junho de 1922, bem a tempo para as comemorações para o Centenário da Independência. Mas a primeira viagem experimental de um trem tracionado por uma locomotiva elétrica ocorreu bem antes, em 24 de outubro de 1921, entre Jundiaí e Louveira.

A energia era fornecida pelas usinas de Sorocaba e Parnaíba da Light and Power Company, sendo entregue em Jundiaí. Ela era transmitida até a subestação de 4.500 kW em Louveira numa linha dupla trifásica de 88 kV, corrente alternada de 60 ciclos, com extensão de 16 quilômetros. De fato, apesar dos investimentos previstos numa hipotética hidrelétrica em Capivari serem relativamente baixos, a Paulista foi conservadora e preferiu testar sua eletrificação usando inicialmente a energia gerada a partir de concessionárias públicas. A idéia era reavaliar a questão do fornecimento dez anos após a introdução da energia elétrica, de acordo com o relatório de 7 de novembro de 1918. Contudo, ao que tudo indica, as condições do fornecimento pela Light eram satisfatórias, posto que nunca a Companhia Paulista investiu em usinas hidrelétricas própias.

Tanto as linhas da Light como as da Companhia Paulista foram constituídas em postes de madeira, devido ao elevado preço das torres de aço e da dificuldade em obtê-las na época. Foram usadas madeiras de lei, como ipê, faveiro, aroeira e principalmente guarantan, com tratamento de banho antisséptico. Monlevade ainda registra que dois isoladores tiveram de ser substituídos na fase inicial de operação "...por haverem sido avariados por pedras arremessadas por passantes". Como se vê, a depredação de linhas e instalações de eletrificação não é absolutamente um fato recente - começou a ocorrer com o sistema ainda engatinhando!...

Já se previa que a eletrificação seria expandida no futuro, como indica esse parágrafo no relatório descritivo de Monlevade:

Este primeiro trecho de linha transmissora será prolongado, em futuro, numa extensão, talvez, de 200 kilometros, e deverá fornecer energia a varias sub-estações, razão pela qual foi adoptado o fio n° OB e S, com o propósito de attender ao phenomeno de corona e diminuir a queda de tensão e perdas na linha.

A subestação de 4.500 kW em Louveira era análoga às instaladas na ferrovia americana Chicago, Milwaykee & Saint Paul. Ela dispunha de três grupos motor-gerador, dos quais apenas dois funcionavam de forma simultânea; o terceiro ficava de reserva. Eles podiam suportar sobrecargas de até 300% da carga normal durante cinco minutos e podiam operar de forma inversa, o que possibilitava receber a corrente de retorno gerada pelo freio regenerador das locomotivas. A estação dispunha ainda de três transformadores de 88.000/2.300 volts, resfriados a óleo e três interruptores de circuito de corrente contínua de 3.000 volts, um para cada grupo motor gerador. Esses interruptores protegiam os aparelhos da sub-estação no caso da ocorrência de curto-circuito de corrente contínua, podendo cortar a corrente em menos de 8 milésimos de segundo.

Após sua conversão para os 3 kV em corrente contínua a energia era distribuída às locomotivas ao longo de 45 km de linha aérea de contato para linha dupla. Foi usada uma linha de alimentação (feeder) entre Louveira e Campinas, a fim de evitar grandes quedas de voltagem nas proximidades dessa ultima cidade. De 300 em 300 metros o feeder era ligado aos quatro fios de contato de ambas as linhas, diminuindo a queda de voltagem e equilibrando-a entre as duas linhas. O circuito de retorno era constituído pelos trilhos, eletricamente ligados em suas extremidades por uniões de cobre. Também os trilhos da mesma via eram ligados entre si por cabo de cobre, de 300 em 300 metros. Já os quatro trilhos da via dupla eram ligados por fios de cobre de 1.600 em 1.600 metros.

Os postes usados para a linha aérea de contato eram feitos de madeira de lei, geralmente de guarantan, provenientes da floresta virgem da região servida pela E.F. Noroeste do Brasil, a aproximadamente 500 quilômetros de distância de seu local de uso. Também foram usados muitos postes de eucalipto provenientes dos hortos da Companhia Paulista após ensaios de laboratório terem demonstrado que sua resistência era equivalente às demais madeiras de lei. Já na eletrificação do primeiro trecho da E.F. Oeste de Minas, feita em meados da década de 1920, optou-se por usar postes de aroeira. A montagem da linha aérea deu-se a um ritmo de cinco quilômetros por mês.

O parque de tração incluía seis locomotivas para trens de passageiros e dez para trens de carga, fornecidas pela General Electric e da Westinghouse. A primeira forneceu oito locomotivas B+B de 1480 HP para trens de carga e quatro do tipo 2-B+B-2 de mesma potência para os trens de passageiros. A segunda ficou com uma encomenda de duas locomotivas tipo C+C de 1245 HP para carga e duas 1-B+B-1 para trens de passageiros. As características das locomotivas entregues nesta oportunidade podem ser vistas na tabela abaixo:

Ano Numeração Rodagem Potência
[HP]
Fabricante Peso
[t]
Comprimento
[m]
Diâmetro
Rodas
Motrizes
[mm]
Diâmetro
Rodas
Guia
[mm]
Tração Múltipla
1921300-3032-B+B-21450General Electric10716,7641067914Não
1921400-407B+B1450ALCO-G.E.88,911,9381066-Não
1921410-411C+C1218Baldwin-Westinghouse10715,2911015-Sim
1922310-3121-B+B-11627Baldwin-Westinghouse12916,1261600914Sim

Todas as locomotivas elétricas foram construídas nos E.U.A. Sua montagem e testes foram acompanhadas por pessoal da Companhia Paulista. Mecânicos e maquinistas também fizeram estágio em ferrovias norte-americanas, como a Chicago, Milwaukee & St. Paull e a Butte, Anaconda & Pacific para se familiarizarem com a operação e manutenção desses equipamentos. As locomotivas foram transportadas para o Brasil praticamente montadas; apenas os truques e pantógrafos foram montados aqui. Todas elas apresentavam o estilo box-cab, ou seja, um espartano formato de "caixa" sem linhas curvas. Todas possuíam cabine dupla, o que sem dúvida era um enorme avanço em termos de visibilidade para os maquinistas e facilidade na troca de sentido da locomotiva. O apito dessas locomotivas era único, num tom agudo bastante melódico, bastante similar às locomotivas a vapor.

O sistema mostrou-se ser particularmente indicado para as condições brasileiras, principalmente devido à simplicidade do equipamento usado nas locomotivas - um fato particularmente bem-vindo, considerando a falta de tradição técnica e industrial do país. Eventuais reparos de pequena monta nos circuitos auxiliares e de baixa tensão podiam ser feitos com a locomotiva em movimento; apenas os consertos nos sistemas de alta tensão obrigavam à paralisação do equipamento.

A rapidez com que as locomotivas elétricas podiam trocar de sentido aumentava excepcionalmente o tempo disponível para sua operação comercial. Eis o relato de Monlevade:

Tão prompta é, realmente, essa manobra que, muitas vezes, media apenas o tempo de cinco minutos entre a chegada de uma locomotiva, com um trem, e a partida da mesma com outro trem, de sentido contrário. A vantagem sobre a locomotiva a vapor, neste particular, é flagrante, pois que esta, chegada a uma terminal, vai ao gyrador, abastece-se de agua e de combustivel, limpa o fogo, descarrega o cinzeiro, etc. No caso da Companhia Paulista, entre Jundiahy e Campinas, as locomotivas a vapor queimando lenha empregavam, em se preparar, de trinta a quarenta minutos nas terminaes, entre dous trens consecutivos. Como resultado prático da independencia de preparo das machinas elétricas, nas terminaes, já conseguimos em muitos casos realizar com ellas o mesmo percurso diario, que faziam, antes, as machinas a vapor, com uma differença, em tempo, de tres a quatro horas, em favor das primeiras.

Outro aspecto muito importante era a possibilidade de regeneração de energia que as locomotivas elétricas de tração contínua possuíam. Ou seja, nas descidas mais longas a locomotiva deixava de consumir energia, passando a funcionar como gerador. Dessa forma não só o esforço de frenagem era reduzido como a eletricidade gerada podia ser usada por outras locomotivas que estivessem em tráfego, permitindo economia da energia comprada externamente. Aqui o arrojo da Companhia Paulista surpreendeu até os próprios técnicos dos fabricantes das locomotivas, conforme relata Monlevade:

A marcha em recuperação nos declives produz, tambem, na Companhia Paulista, resultados inesperados. Com effeito, foi ella adoptada mais por decisão da propria Companhia que por conselho dos fabricantes, que seguindo opinião geralmente aceita, consideravam restrictas as opportunidades de tirar partido da regeneração, em linhas de rampas curtas. No entretanto, a vantagem que ella paresenta em nosso caso especial, quer como freio, quer como factor de economia de força, é das mais apreciáveis, o que tem sido constatado com muita satisfação pelos engenheiros das Companhias General Electric e Westinghouse.

Realmente estamos empregando a regeneração nos mais curtos declives, mesmo nos dos balanços da linha, evitando inteiramente o emprego dos freios automaticos, dos quaes só nos utilizamos nas occasiões de parar.

Desta forma todos os vehiculos do trem descem com suavidade, apoiados sobre os parachoques, e evitam-se os esticões e possiveis rupturas de engates.

Como economia de força, a marcha em recuperação produz, na Companhia Paulista, o seguinte resultado médio: 12% nos trens de passageiros e 22% nos de mercadorias. Nestes já se alcançou a recuperação de 32% da energia consumida entre Campinas e Jundiahy. Estes algarismos dispensam commentarios.

O uso da regeneração, contudo, tinha de ser feito com cuidado, pois podia dar origem a arcos envolventes, danificando a locomotiva. A solução proposta, contudo, era simples: o maquinista deveria ter atenção na condução da locomotiva sob tais condições, acompanhando atentamente os amperímetros e não permitir que a velocidade excedesse de 30 a 35 quilômetros por hora.

Num artigo publicado vinte anos depois desses fatos, na edição de dezembro de 1941 da Revista Ferroviária, o Eng. José Ayrosa Galvão, da Companhia Paulista, relatou que os fabricantes das locomotivas elétricas apreciaram bastante o fato dessa ferrovia usar bitola de 1,60 m, pois foi possível acoplar os motores de tração elétricos diretamente nos eixos das máquinas, acondicionando-os entre as faces internas das rodas motoras. Segundo ele, tal vantagem não era possível nem mesmo na bitola padrão americana, de 1,44 metros.

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1922-1961: A Expansão

"A primeira vez que andei num trem elétrico foi em 1925, quando eu tinha sua idade. Seu bisavô foi para um novo emprego e nossa família teve de mudar para de Ibaté para Campinas. Era de noite e eu até brinquei com minha mãe, dizendo que iria chover bastante, pois estava relampejando muito. Na verdade era o faiscar do pantógrafo da locomotiva em contato com os fios..."


A eletrificação do trecho Jundiaí-Campinas da Companhia Paulista foi tão bem sucedida que, em 1925, cerca de 80% do capital investimento, além dos juros dos empréstimos, já estava amortizado. Isso motivou a ferrovia a contratar sucessivamente a eletrificação de vários trechos de suas linhas-tronco em bitola larga:

TrechoExtensão
[km]
Tipo de PostesData da Inauguração
Campinas-Tatu49,7 kmConcreto1° de novembro de 1925
Tatu-Rio Claro40,0 kmAço26 de dezembro de 1926
Rio Claro-São Carlos72,5 kmAço7 de setembro de 1928
São Carlos-Rincão79,5 kmAço1° dezembro de 1928
Itirapina-Jaú101,4 kmAço15 de novembro de 1941
Jaú-Bauru67,0 kmAço23 de junho de 1948
Bauru-Cabrália Paulista41,3 kmEucalipto17 de maio de 1954

Note-se o hiato na eletrificação ocorrido entre 1928 e 1941, certamente em virtude da crise decorrente do crack da bolsa de Nova York em 1929, e entre 1941 e 1948, decorrente da II Guerra Mundial. Em seu apogeu, a Companhia Paulista tinha 452,1 quilômetros de linhas eletrificadas, quinze subestações e oitenta locomotivas elétricas.

A esse aumento substancial na extensão das linhas eletrificadas correspondeu um aumento equivalente no número de locomotivas elétricas. Ao longo da década de 1920 foram adquiridos várias delas, de diferentes fabricantes, mas com o mesmo e consagrado estilo box-cab, com exceção das locomotivas para manobras em pátios ferroviários, que eram do tipo steeple cab, ou seja, cabine central. Elas receberam um curioso apelido: baratinhas. Por sinal, a Companhia Paulista foi a única ferrovia brasileira de primeira linha a dispor de locomotivas elétricas exclusivamente manobreiras. A tabela abaixo mostra as características das locomotivas adquiridas até 1930:

Ano Numeração Rodagem Potência
[HP]
Fabricante Peso
[t]
Comprimento
[m]
Diâmetro
Rodas
Motrizes
[mm]
Diâmetro
Rodas
Guia
[mm]
Tração Múltipla
1924500-508B-B460ALCO-GE55,512,6491016-Não
19263301-C-C-11923Wintenthur-Metropolitan Vickers10117,9811070920Não
1927-8412-419C+C1218Baldwin-Westinghouse10715,2911015-Sim
1928420-4291-C+C-12170ALCO-GE133,318,2121138914Sim
19293201-D-12520Wintenthur-
Brown Boveri
12316,1921600914Não

Note-se que a potência das primeiras locomotivas elétricas variava entre 1200 e 1600 HP, valores bastante respeitáveis para a época. As últimas representantes da geração box-cab já apresentavam valores da ordem de 2200 a 2500 HP, magnitude que só na década de 1970 foi alcançada de maneira consistente pelas locomotivas diesel-elétricas que rodavam nas ferrovias brasileiras. A ALCO-GE 1-C+C-1 de 1928 é considerada por muitos fãs como uma das locomotivas elétricas mais elegantes da Companhia Paulista.

Esta tabela mostra que a exclusividade do fornecimento de locomotivas elétricas para a Companhia Paulista por parte da dobradinha General Electric/Westinghouse só foi quebrada por duas vezes, em 1926 e 1929. Aparentemente o objetivo dessa decisão foi avaliar o desempenho de máquinas provenientes de outros fornecedores, uma vez que nessas oportunidades só foram adquiridas uma unidade de cada fabricante.

Naquela época não só os trens eram movidos a eletricidade: os bondes também estavam atravessando sua fase áurea, proporcionando transporte com o uso de energia nacional. Em alguns casos esses sistemas se cruzavam em passagens de nível, criando problemas técnicos, uma vez que a corrente de seus sistemas de alimentação elétrica eram completamente diferentes. Um dos casos mais pitorescos ocorreu em São Carlos, onde foi encontrada uma solução engenhosa para o problema: a linha aérea era interrompida na passagem de nível com a linha da Companhia Paulista, sendo o bonde alimentado por um cabo nesse pequeno trecho...

A consagração da tração elétrica na Companhia Paulista ao longo da década de 1920 pode ser observada no seguinte trecho do Relatório n° 78 da Diretoria da Companhia Paulista de Estradas de Ferro para a Sessão de Assembléia Geral de Acionistas em 27.06.1927, transcrito no livro Ferrovia e Ferroviários:

ELETRIFICAÇÃO

No dia 31 de dezembro de 1926, inaugurou-se o tráfego público por tração elétrica do trecho Tatu a Rio Claro. O serviço de tração elétrica tem funcionado com pleno êxito, correspondendo sob todos os pontos de vista.

A administração da Companhia Paulista teve durante o ano passado, com a greve dos mineiros da Inglaterra - que durante meses elevou extraordinariamente o preço do carvão de pedra - a prova mais decisiva da inestimável vantagem da eletrificação de suas linhas.

Com efeito, graças à tração elétrica do trecho de tráfego mais intenso de sua linha tronco, que não prescinde do emprego de carvão de pedra, pode a Paulista manter-se desde o início da greve sem queimar combustível mineral, recorrendo exclusivamente à lenha. Em face, porém, do desenvolvimento dos transportes e da progressiva escassez de matas em condições de serem exploradas para lenha, resolveu a Diretoria estender a tração elétrica ao trecho da linha tronco de Rio Claro a Rincão, numa extensão de 152 quilômetros. A eletrificação desse trecho, de perfil acidentado, não será menos vantajosa do que a dos trechos anteriores, conquanto seja o seu tráfego menos volumoso. É que crescem as vantagens das locomotivas elétricas com o percurso contínuo mais longo, tornando-se mais econômico o seu emprego.

(...)

Resta, ainda, considerar que as nossas locomotivas a vapor de bitola larga, em condições de prestar ainda bons serviços, são relativamente poucas, de modo que, se não fosse eletrificada a linha até Rincão, seria necessária a aquisição de grande número de locomotivas a vapor, que custam, proporcionalmente à sua capacidade de tração, muito mais do que as locomotivas elétricas.

O material para a eletrificação do trecho de Rio Claro a Rincão foi encomendado, em fins do ano passado, às fábricas americanas General Electric Company e Westinghouse Manufacturing Company, antigas fornecedoras da Companhia.

O mesmo relatório inclui também um trecho bastante polêmico:

O encarecimento constante da mão-de-obra e a decadência do espírito profissional, sobretudo depois da guerra, têm determinado a necessidade de constante aperfeiçoamento das instalações industriais, para o fim de substituir-se o mais possível o homem pela máquina. É o que realiza, em alto grau, a tração elétrica nas estradas de ferro.

Realmente são palavras bastante estranhas em nossa época políticamente correta (talvez fosse melhor escrever politicamente hipócrita...), onde se afirma, sem meias palavras, que os trabalhadores não eram suficientemente confiáveis e deviam ser substituídos por máquinas. De certo modo, é o que vem ocorrendo desde a Revolução Industrial, quando os trabalhadores foram substituídos pela máquina a vapor. A única diferença é que, com a evolução da tecnologia, eles vem sendo substituídos por motores elétricos, reatores nucleares, computadores e Internet... A constante agitação operária no Brasil, nos primeiros dias do século XX e que resultou em várias greves famosas, certamente colaborou para essas palavras pouco airosas. Que, aliás, tiveram um certo cunho profético: foi uma perturbadora seqüência de greves o pretexto para o fim da legítima Companhia Paulista, como será visto no capítulo seguinte.

De toda forma, o que Monlevade e a diretoria da Companhia Paulista estavam procurando fazer, apesar de toda a sua aparente arrogância, era garantir a sobrevivência da empresa. Há diversos indícios que mostram que a grande ambição da empresa era se tornar uma ferrovia transcontinental, ligando o Atlântico ao Pacífico, no melhor estilo das ferrovias americanas, e era necessário reunir energias para se cumprir esse objetivo. Infelizmente uma série de circunstâncias impediu esse glorioso destino, incluindo as interferências governamentais que impediram que a CP comprasse a E.F. Noroeste do Brasil e a E.F. Araraquara, o que acabou levando Monlevade a voluntariamente terminar sua carreira na Paulista de forma prematura. Certamente a linha entre Bauru e Panorama foi o início dessa tentativa, que não logrou atingir o objetivo final em função do agravamento da crise ferroviária brasileira a partir da década de 1960 em diante.

Outro aspecto que deve ter sido considerado por Monlevade ao propor a eletrificação e alargamento da bitola nas linhas da CP deve ter sido a ameaça que o surgimento do automóvel representou para as ferrovias. O fato é que já na década de 1920 as rodovias já começaram a roubar passageiros e cargas das ferrovias, ainda que em escala pequena. Mas a ameaça já estava concretizada: afinal, o governo do presidente Washington Luiz (1926-1930) era justamente Governar é abrir estradas... mas de rodagem. É fato que a incipiente rede rodoviária do país demorou a crescer por uma série de fatores: o alto investimento envolvido para sua construção; o alto custo dos automóveis; o fato de serem importados, implicando no dispêndio de divisas estrangeiras; a falta de uma indústria de base que permitisse o surgimento de montadoras automotivas no país... Tudo isso, mais a depressão econômica da crise de 1930 e a Segunda Guerra Mundial protelaram o surgimento do rodoviarismo para a segunda metade da década de 1950. A partir daí a ameaça se concretizou e as ferrovias se viram em sérios apuros.

Mas retornando à eletrificação: o crack da Bolsa de Valores de Nova York e a grave crise econômica que dominou os anos seguintes abalou profundamente a cultura cafeeira, que era justamente o principal cliente da Companhia Paulista. A brutal contração da demanda resultou numa enorme superprodução de café, que era queimado pelo governo em fogueiras para que seu preço fosse mantido. A reação de boa parte dos fazendeiros foi abandonar o café e diversificar suas culturas para evitar a falência. Tudo isso afetou a demanda por transporte na região servida pela Companhia Paulista e, obviamente, interrompeu o programa de eletrificação de suas linhas e a compra de locomotivas elétricas.

De toda forma, a eletrificação já tinha se tornado um fator de grande economia para a Companhia Paulista e certamente ajudou a minorar os efeitos dessa crise econômica. Em 1930 a primeira subestação do sistema de eletrificação, em Louveira, foi oficialmente batizada com o nome de Francisco de Monlevade, esculpido em bronze e em forma de arco do triunfo. Note-se que já em 1927 Monlevade havia sido alvo de outra homenagem, por parte dos empregados da ferrovia, quando o seu busto foi colocado num pedestal de granito nos jardins dessa mesma subestação.

Foi somente em 1940 que a Companhia Paulista retomou as atividades nesse campo, quando realizou trabalhos de retificação, alargamento de bitola e eletrificação do trecho entre Itirapina e Jaú, inaugurado em 15 de novembro de 1941. A situação econômica já havia melhorado o bastante para também se investir em novas locomotivas elétricas. O retorno da Companhia Paulista nessa área foi feito em grande estilo, com a introdução de uma legendária locomotiva elétrica que ainda hoje impressiona velhos e novos amantes de ferrovias: um monstro de 3800 HP, rodagem 2-C+C-2, mais de 23 metros de comprimento e um inconfundível perfil aerodinâmico: as famosas V8, fabricadas nos Estados Unidos pela General Electric. Seu apelido deriva do formato de seu friso, que se alargava nas regiões frontais da locomotiva para poder acomodar o legendário logotipo da CP. Essa região do friso lembrava muito um decote feminino muito em voga na década de 1940, cujo nome popular era V8. Esta locomotiva tornou-se um arquétipo da sofisticação técnica da Companhia Paulista e um verdadeiro símbolo das ferrovias brasileiras, tendo sido sistematicamente empregado como símbolo de excelência nas propagandas da General Electric, seu fabricante. Seu formato externo é quase idêntico ao da locomotiva elétrica EP-4, fornecida pela mesma empresa para a ferrovia americana New York, New Haven & Hartford no final da década de 1930. Contudo, a semelhança se resume somente ao aspecto externo, uma vez que o sistema elétrico da EP-4 era totalmente diferente do instalado nas V8. As EP-4 podiam operar com dois sistemas elétricos: por catenária (11 kV, corrente alternada monofásica) e por terceiro trilho (600 V, corrente contínua), enquanto que a V8 somente era alimenta por catenária de corrente contínua, 3 kV.

A tabela abaixo informa suas principais características técnicas:

Ano Numeração Rodagem Potência
[HP]
Fabricante Peso
[t]
Comprimento
[m]
Diâmetro
Rodas
Motrizes
[mm]
Diâmetro
Rodas
Guia
[mm]
Tração Múltipla
1940
1946-8
370-373
374-391
2-C+C-23817General Electric165,123,1011168914Sim

A Companhia Paulista comprou no total 22 locomotivas V8. Infelizmente a II Guerra Mundial atrapalhou a entrega desses locomotivas: somente quatro delas chegaram em 1940, outras dez chegaram em 1947 e as oito restantes em 1948. Ao contrário do que ocorreu com a E.F. Sorocabana, as restrições decorrentes do conflito tumultuaram o programa de eletrificação da Companhia Paulista. Seus componentes foram desembarcados no porto de Santos, sendo transportadas em vagões plataforma especiais até a oficina de Rio Claro, onde foram montadas.

A São Paulo Railway, ferrovia inglesa que transportava para o porto de Santos toda a carga que a Paulista trazia até Jundiaí, somente decidiu eletrificar suas linhas em 1946, às vésperas de sua encampação pelo Governo Federal. Esse atraso de mais de 25 anos em relação à decisão da Companhia Paulista é algo intrigante, dado o sucesso que esta última obteve com a eletrificação de suas linhas. Em função da enorme integração que havia entre essas duas ferrovias, as especificações usadas nesta nova eletrificação foram praticamente as mesmas usadas na Companhia Paulista, que por sinal cedeu pessoal especializado para a antiga São Paulo Railway - agora chamada E.F. Santos a Jundiaí. As obras da eletrificação dessa ferrovia terminaram em 1951. Mas a troca de locomotivas continuou ocorrendo em Jundiaí, um procedimento um tanto quanto supérfluo.

É interessante notar que a E.F. Central do Brasil, ao adquirir locomotivas elétricas nos Estados Unidos no início da década de 1940, foi forçada pelo governo desse país a adotar locomotivas com projeto idêntico ao da V8. Na verdade, essa decisão foi tomada pelo War Production Board americano em função das pesadas restrições industriais impostas pela II Guerra Mundial. Isso teve conseqüências funestas para aquela ferrovia, pois a V8 era uma locomotiva ideal para as condições de relevo suaves que eram típicas das linhas da Companhia Paulista. Na Central do Brasil o desempenho das V8 não foi memorável, sendo inferior ao de locomotivas com menor potência do que ela.

Em 1947 a Companhia Paulista também adquiriu mais oito locomotivas manobreiras, virtualmente similares às Baratinhas já descritas acima, com exceção de alguns detalhes em sua carenagem. Esses modelos mais novos, por exemplo, apresentavam chaparia soldada ao invés de rebitada, em função do progresso ocorrido no campo da soldagem ao longo dos 23 anos que separam essas duas gerações de locomotivas. Essas novas manobreiras, que receberam numeração entre #510 a #517, receberam o nome de Baratonas.

No final da década de 1940 um lance rocambolesco da Guerra Fria acabou beneficiando inesperadamente a Companhia Paulista. Em 1946 o governo da URSS encomendou 20 das mais poderosas locomotivas elétricas jamais construídas à General Electric americana, que deveriam operar sob as catenárias de corrente contínua de 3,3 kV daquele país. Os operários da G.E. as apelidaram de Little Joe (Zézinho), como uma homenagem à Joseph Stalin, o ditador da URSS na época. Contudo, quando as máquinas ficaram prontas, em 1948, os antigos aliados já não mais se entendiam. O governo americano decidiu cancelar a exportação das locomotivas para a União Soviética em setembro daquele ano, considerando-as estratégicas demais. A General Electric então ficou com um enorme "mico" nas mãos: locomotivas gigantescas feitas sob encomenda e sem comprador. Elas foram oferecidas como negócio de ocasião a diversas ferrovias americanas e até mesmo para a Companhia Paulista. Finalmente, a South Shore Line ficou com três unidades, as quais foram adaptadas para trabalhar com corrente contínua de 1,5 kV. A The Milwaukee Railroad ficou com 12 unidades, que foram adaptadas para seu sistema de corrente contínua de 3 kV. Finalmente a Companhia Paulista acabou comprando cinco unidades em 1951, que foram devidamente adaptadas ao seu sistema de corrente contínua de 3 kV. O desenho dessas locomotivas é bastante similar ao das V8, mas é bem mais potente (4.655 HP), apresenta 184 toneladas de peso aderente e tinham uma buzina grave, inconfundível. Ela recebeu aqui o apelido de Russa em função de sua atribulada história. Há uma lenda entre os ferroviários, que afirmam que o símbolo comunista da foice-e-martelo está estampado nos eixos da locomotiva, mas nunca foi vista uma foto que comprovasse esse pitoresco fato... Foi a locomotiva elétrica mais poderosa que já rodou nas ferrovias brasileiras. Suas características podem ser conferidas na tabela abaixo:

Ano Numeração Rodagem Potência
[HP]
Fabricante Peso
[t]
Comprimento
[m]
Diâmetro
Rodas
Motrizes
[mm]
Diâmetro
Rodas
Guia
[mm]
Tração Múltipla
1951450-4542-D+D-24655General Electric242,627,11200949Não

Em 1954 foi implantado o último trecho eletrificado da Companhia Paulista, entre Bauru e Cabrália Paulista, aproveitando seu alargamento de bitola. Este segmento certamente deve ter sido o mais bonito da ferrovia, pois cruzava a Serra das Esmeraldas, região acidentada que forçou um trajeto sinuoso da linha, incluindo com uma curva de 180°. As limitações do trecho impediam a circulação das locomotivas V8: diz a lenda que uma delas chegou a ficar entalada numa curva num dos primeiros testes... Por essa razão, havia troca de locomotivas elétricas na estação de Bauru: os trens que chegavam de São Paulo tinham a V8 substituída por uma baratinha ou locomotiva box-cab, menos potentes mas de comprimento bem menor, facilitando sua inscrição nas curvas fechadas desse trecho.

É curioso notar que a Companhia Paulista não adquiriu trens unidade elétricos como a E.F. Santos a Jundiaí (o Gualixo da English Electric e os Budd-Mafersa de aço inoxidável) e a E.F. Sorocabana (o Carmen Miranda da Pullman-Standard e os TUEs da Hitachi). Estas ferrovias usavam esses trens em rotas interurbanas: a Santos a Jundiaí entre São Paulo-Jundiaí e São Paulo-Santos, e a E.F. Sorocabana entre São Paulo-Iperó e São Paulo-Santos. Aparentemente devia ser filosofia da empresa, uma vez que a Paulista também não se interessou por automotrizes ou trens-unidade diesel. De todo modo, o Gualixo circulava entre São Paulo e Campinas, em tráfego mútuo com a E.F. Santos a Jundiaí. Mas não haviam outras rotas cobertas por trens-unidade dentro das linhas da Companhia Paulista.

Em seu auge o sistema chegou a contar com quinze subestações, conforme mostra a tabela abaixo:

LocalLinhaTipoPotência
[kW]
Distância entre Subestações
[m]
LouveiraTroncoManual4.50028.740
CampinasTroncoAutomática3.00025.573
SumaréTroncoManual300047.350
CordeirópolisTroncoManual3.00031.815
CamaquanTroncoAutomática4.00025.590
ItirapinaTroncoAutomática4.00031.938
São CarlosBarretosAutomática2.00037.989
OuroBarretosAutomática3.00041.462
RincãoBarretosAutomática3.000-
EspraiadoBauruAutomática2.00040.389
Dois CórregosBauruAutomática3.00050.509
PederneirasBauruAutomática3.00028.800
AimorésBauruAutomática3.00023.488
PiratiningaBauruAutomática4.000-

Todas elas eram do tipo moto-geradoras e alimentadas pela linha de transmissão exclusiva da ferrovia, cujo primeiro trecho entre Jundiaí e Louveira havia sido implantado logo na eletrificação do trecho Jundiaí-Campinas, conforme citado anteriormente. Ele chegou a ter 352 quilômetros de extensão, em dois circuitos com exceção do trecho de Dois Córregos em diante, onde possuía apenas um circuito. No final da década de 1950 foi construída uma subestação em Tatu, com o intuito de reforçar o sistema. Ela também serviria para atender à futura eletrificação do ramal de Piracicaba, que acabou não se tornando realidade. O Relatório Anual da Companhia Paulista de 1958 registrou ainda a compra de 644 toneladas de cobre em lingotes, que seriam transformados em fios e cabos a serem usados na eletrificação entre Cabrália Paulista e Marília - outro projeto que também não viu a luz do dia.

É interessante notar que, de fato, o advento da eletrificação conseguiu eliminar a necessidade da duplicação das linhas da Companhia Paulista, conforme previsto por Monlevade em 1918. Até hoje o único trecho duplicado está localizado entre Jundiaí e Campinas (que, ironicamente, encontra-se hoje praticamente abandonado...), com exceção do pequeno trecho entre Campinas e Boa Vista, que foi duplicado na década de 1970 para se atender ao aumento de tráfego decorrente da transferência do entroncamento das antigas E.F. Sorocabana e Companhia Mogiana de Campinas para esta outra estação.

Certamente não estaremos longe da verdade se afirmarmos que a chegada das Russas e a extensão da eletrificação até Cabrália Paulista marcaram o auge do programa de eletrificação da Companhia Paulista, quase trinta anos após sua inauguração. A partir de então começou uma lenta mas constante decadência que culminou com o sucateamento do sistema no início do ano 2000.

A primeira causa para esse declínio foi a chegada das locomotivas diesel-elétricas à Companhia Paulista: em 1951 chegaram 12 ALCO RSC-3, com 1600 HP de potência; em 1953, mais três unidades da ALCO PA-2, com 2250 HP; em 1958, 18 unidades da GM G12, com 1430 HP e em 1959, dez unidades da General Electric U-9 com 1100 HP. As vantagens das locomotivas elétricas em relação às movidas a vapor era flagrante. Contudo, uma comparação das elétricas com as diesel já não lhes era tão favorável. Uma locomotiva diesel não possui um rendimento energético tão eficiente quanto uma elétrica, mas são mecanicamente avançadas e muito superiores às movidas a vapor. Além disso, não requerem a custosa infraestrutura de catenárias e subestações necessárias às locomotivas elétricas. Sua potência era inferior às das elétricas mais modernas, mas esse inconveniente podia ser superado mediante o uso de tração dupla. Sem dúvida seria uma opção de tração ferroviária quase ideal, não fosse o fato do Brasil não ser auto-suficiente em petróleo, principalmente até os anos 90. Ainda assim, uma comparação entre os custos dos diversos tipos de tração na Companhia Paulista, feita em 1952, mostrou que a tração elétrica era efetivamente a mais econômica, com Cr$ 6,06/1000 ton.km. A tração diesel vinha em seguida, com custo de Cr$ 9,60/1000 ton.km e o vapor com Cr$ 11,56/1000 ton.km (usando óleo combustível) e Cr$ 58,50/1000 ton.km (usando lenha).

Um outro aspecto indireto, mas cujas conseqüências se revelariam devastadoras, foi a opção incondicional pelo rodoviarismo feita pelo governo Juscelino Kubistcheck (1956-1960). É fato que a ameaça rodoviária já vinha desde os anos 1920, mas até então sem grandes conseqüências para as ferrovias. Contudo, o país tinha evoluído muito em termos industriais desde então: já tinha refinarias de petróleo e siderúrgicas no final dos anos 1940. Esta evolução industrial precisava continuar, mas acabou-se optando por um total apoio à indústria automotiva em detrimento dos outros modais de transporte. Foram promulgados incentivos fiscais para a instalação de montadoras no país, feitos pesados investimentos em infraestrutura para sua operação e construída de uma enorme rede de rodovias a fundo perdido, quase que totalmente custeada pelo governo. Por outro lado, os investimentos nas ferrovias minguaram bastante, além de serem perversamente prejudicadas: uma companhia de transportes na época não pagava nada para transitar com seus caminhões pelas rodovias, enquanto que uma ferrovia tinha de pagar para desapropriar o terreno, construir a linha e mantê-la... e ser acusada de onerar o Tesouro Nacional ao pedir subsídios para manter suas operações.

Para complicar ainda mais a situação das ferrovias a segunda metade da década de 1950 foi marcada por uma contínua e acentuada elevação da taxa de inflação, decorrente dos enormes gastos públicos do governo Kubitschek. Afinal, alguém tinha de pagar os enormes investimentos decorrentes da implantação de infraestrutura para a indústria automotiva e a construção de Brasília... Na época ainda não havia o recurso da correção monetária, ferramenta que seria criada para minorar os efeitos da corrosão da moeda somente no final dos anos 60. Dessa forma o equilíbrio orçamentário das ferrovias era muito difícil: seus custos se elevavam constantemente, mas suas tarifas estavam engessadas por leis, somente sendo reajustadas depois de muita discussão. Além disso havia uma crescente e permanente insatisfação entre seus empregados, em função da corrosão de compra de seus salários.

O fato é que a Companhia Paulista se aproximava dos anos 60 num ambiente bastante tumultuado, talvez o pior de sua existência. Isso teria conseqüências drásticas para seu sistema de eletrificação.

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1961-1995: Sobrevivendo na Era Estatal

Estação de São Carlos, 30 de junho de 1968, 16:48. Um breve apito e o Trem Azul para São Paulo sai da tarde ensolarada de domingo e irrompe na gare. O garoto já viu a cena várias vezes, mas ela nunca perde a magia: a grande locomotiva elétrica se aproxima em alta velocidade, o som de seu sino e de seus possantes compressores aumentando cada vez mais, inspirando admiração e uma pontinha de medo. Até que 3,900 HP contidos a custo passam a sua frente com todo o seu troar. O difícil nessa hora é decidir o que olhar: a pintura da locomotiva? o legendário e hipnótico dístico, com as letras "C" e "P" entrelaçadas? o logotipo da General Electric, meio escondido? ou a inscrição "Eng. Francisco de Monlevade" em letras brilhantes, relíquia de um tempo em que engenharia fazia diferença no país? O transe dura poucos segundos, mas não se escapa impune - são décadas de excelência impondo sua marca. A seguir vem os impecáveis carros Pullman Standard azuis e creme, o súbito silêncio, o trem quase parando. E o pai puxando - afinal, há que se embarcar, ainda estamos numa época em que os trens têm de obedecer horários...


Em 1927, enquanto o programa de eletrificação da Companhia Paulista avançava triunfalmente, era lançado na Alemanha o filme Metrópolis, obra prima do cinema expressionista do diretor Fritz Lang. O enredo versava sobre o conflito capital versus trabalho, um tema recorrente ao longo do século XX, certamente um reflexo da vitória do comunismo na União Soviética, o primeiro desafio sério feito ao capitalismo. A história se passava no futuro, numa megalópole cheia de avanços tecnológicos e personagens arquetípicos: o Capitalista, controlador da megalópole; o Cientista, representando a elite técnica; os Operários, escravos que mantinham a cidade funcionando; o Filho do Capitalista, um jovem sensível que abandona o palácio do pai para ajudar os Operários; e Maria, uma pregadora da paz com grande influência sobre os Operários, favorável à mediação do coração entre o Capital e o Trabalho, ou seja, entre o Cérebro e a Mão. É lógico que o Filho do Capitalista se apaixona por Maria, enquanto que o Capitalista incumbe o Cientista de clonar Maria na forma de um robô para melhor controlar os Operários. Contudo a receita desanda e irrompe uma Revolta entre os Operários, que destroem as máquinas que mantém a cidade. Quase ocorre uma Catástrofe quando a paralisação das máquinas faz com que ocorra uma inundação dos alojamentos subterrâneos dos Operários, ameaçando a vida de seus filhos, mas a pronta ação do Filho do Capitalista e Maria conseguem evitar o pior. Na cena final o Capitalista aperta a mão do representante dos Operários, numa conciliação promovida pelo Filho e abençoada por Maria.

O enredo apresenta vagas semelhanças com a tumultuada história da Companhia Paulista no início da década de 1960: a aliança entre a administração da empresa (o Capitalista) e seus técnicos (o Cientista) tinha logrado produzir uma empresa modelar e inovadora tecnologicamente, mas enfrentava uma situação bastante adversa do ponto de vista financeiro, com perda de receitas para as empresas rodoviárias e os prejuízos decorrentes da inflação. A filosofia paternalista da empresa (o Filho), que havia criado benefícios como aposentadoria, cooperativas de consumo e outros benefícios, já não conseguia satisfazer os Operários, cujos salários aviltados em relação às outras ferrovias sofriam os efeitos devastadores da inflação. O resultado foi a Revolta, ou seja, uma sucessão de greves por melhores salários, que tumultuaram a vida do estado de São Paulo. Veio então a Catástrofe, e aí não houve herói ou Maria que desse jeito: em junho de 1961 o governo do estado encampou a ferrovia, numa decisão bastante polêmica, alegando a necessidade de se manter os serviços essenciais prestados por ela. É fato que na época a Paulista vinha recorrendo sistematicamente a subvenções dos cofres estaduais para continuar mantendo suas operações - mas, afinal, o mesmo governo estava construindo e asfaltando milhares de quilômetros de rodovias a fundo perdido na época... Além disso, o preço pago pelas ações desapropriadas estava bem abaixo do valor patrimonial da empresa, uma injustiça que só foi corrigida dezenas de anos depois.

O futuro veio mostrar que a estatização da Companhia Paulista simplesmente selou a decadência lenta mas inexorável da companhia. Afinal, era praticamente impossível para uma administração estatal manter a mesma disciplina e rigidez impostas pela legítima Companhia Paulista e que, bem ou mal, foram fundamentais para garantir o nível de excelência que ela havia conseguido. A crise, que era conjuntural, passou a ser estrutural. A curto prazo a encampação resolveu o problema salarial dos Operários, mas a médio e longo prazo esse triunfo revelou-se ser uma vitória de Pirro: na década de 70 era comum ouvir os antigos ferroviários lembrarem-se saudosamente dos "bons tempos da Paulista", enquanto viam a inexorável extinção de ramais, estações e trens.

A obtenção de informações sobre a história da eletrificação na Companhia Paulista a partir de 1960 se torna bem mais difícil do que para os períodos anteriores. Esta constatação vale, por sinal, para praticamente todos os aspectos históricos das ferrovias de modo geral. Infelizmente, a medida que a decadência das ferrovias se tornou mais intensa, sua presença no noticiário - falado, escrito, televisionado - foi minguando cada vez mais. Ironicamente, é muito mais fácil obter informações sobre sua história no século passado ou até 1940, quando realmente tomavam parte ativa no dia a dia do país, do que a partir de 1960 ou 1970, relegadas que foram a segundo plano. O quadro somente se reverteu com o advento da Internet, cujos recursos permitiram uma rearticulação do fluxo de informações, ao menos entre os aficcionados por ferrovias.

Um dos primeiros sinais de que os tempos já não eram os mesmos foi a interrupção da execução do do projeto de eletrificação entre Cabrália Paulista e Tupã. Relatórios de uma diagnose sobre as ferrovias brasileiras feitos em 1965 informam que o material necessário para essa obra já havia sido adquirido e que em pouco mais de um ano ela seria concluída. Não foi o que se viu, naturalmente. Restaram alguns indícios das obras, como um prédio destinado à instalação de uma subestação elétrica, ainda existente em Duartina.

Em meados da década de 1960 ocorreu a primeira baixa entre as locomotivas elétricas da Paulista: a box-cab #320, fornecida pela Wintenthur-Brown Boveri. As razões para essa decisão foram uma série de problemas com sua manutenção e a falta de disponibilidade de peças sobressalentes. O fato desta locomotiva ser a única de seu tipo dentro do roster da Companhia Paulista também deve ter contribuído para essa decisão. Ela foi efetivamente baixada em 1967, quando da chegada de novas locomotivas elétricas. Coincidentemente, as locomotivas elétricas fornecidas para a Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro na década de 1950, fabricadas no Brasil pela IRFA - Indústrias Reunidas Ferro e Aço, usando equipamento elétrico Brown-Boveri, também não apresentaram uma carreira muito brilhante.

Na verdade mais locomotivas elétricas teriam sido sucatadas nessa época caso fossem seguidas as recomendações constantes num relatório de diagnose sobre a Companhia Paulista preparado pela Sofrerail.

Apesar do declínio na qualidade dos serviços prestados pela Companhia Paulista sob comando estatal ser cada vez mais evidente ao longo dos anos, em 1967 houve um significativo progresso na tração elétrica da ferrovia, com o início da entrega de um lote de dez locomotivas novas, fabricadas no Brasil nas instalações da General Electric em Boa Vista (SP) - sem dúvida um enorme avanço tecnológico para a engenharia ferroviária brasileira. A encomenda dessas locomotivas foi feita pelo governador Adhemar de Barros, através de decreto assinado em 19 de fevereiro de 1963, que previa ainda a aquisição de locomotivas elétricas para a E.F. Sorocabana. Em 10 de novembro de 1964 foi assinado o contrato de fornecimento com a General Electric do Brasil. A primeira unidade foi entregue em 19 de maio de 1967 nas instalações da G.E. em Boa Vista, sendo que as demais foram entregues até 1968. A tabela abaixo mostra resumidamente suas características técnicas:

Ano Numeração Rodagem Potência
[HP]
Fabricante Peso
[t]
Comprimento
[m]
Diâmetro
Rodas
Motrizes
[mm]
Diâmetro
Rodas
Guia
[mm]
Tração Múltipla
1967350-359C+C4358General Electric14418,3391168-Sim

Seu projeto elétrico era muito similar a um modelo anteriormente entregue à E.F. Central do Brasil, cognominada de Charutão. É interessante notar que, desta vez, foi um projeto de locomotiva para a Central que foi aproveitado para a Companhia Paulista... Contudo, havia diferenças significativas entre os formatos externos das duas locomotivas. Enquanto que a carenagem da Charutão era bastante espartana, com uma cabine só e muito similar às das locomotivas diesel-elétricas, as novas locomotivas da Companhia Paulista apresentavam cabine dupla. Contudo, sua carenagem já não tinha o inconfundível estilo aerodinâmico das locomotivas V8, estando mais próximo das antigas box-cab, em função de suas linhas retilíneas. Isso não impediu que tivessem uma aura de modernidade que fez com que elas fossem apelidadas de Vanderléias, em homenagem à cantora da Jovem Guarda, então em grande evidência. Sua buzina bitonal era inconfundível, como que sinalizando uma nova era para a ferrovia – promessa que, infelizmente, não se concretizou.

A dieselização da Companhia Paulista continuou na década de 1960, ainda que num ritmo bem mais lento. Entre 1967 e 1968 foram recebidas 36 locomotivas LEW de 900 HP, basicamente para manobras e trens de serviço. Elas foram adquiridas da Alemanha Oriental como forma de pagamento das exportações de café do Brasil, já que o país, na época sob a esfera comunista, não dispunha de divisas fortes.

Em 1967 a Companhia Paulista e a Santos a Jundiaí estabeleceram tráfego mútuo entre suas locomotivas elétricas, que passaram a circular mais livremente ao longo de suas linhas. Dessa forma, era possível ver V8s da Paulista tracionando trens até Paranapiacaba e Pimentinhas da Santos a Jundiaí em diversos pontos do interior paulista. Isso garantia um melhor aproveitamento do parque de tração, cujas características elétricas eram plenamente compatíveis. Infelizmente, esse acordo se encerrou por volta de 1974, o que aparentemente representou um retrocesso do ponto de vista operacional.

A retificação do trecho Santa Gertrudes-Itirapina, uma obra que se arrastou entre o final da década de 1960 e início da de 1970, incluiu a modernização das subestações de Tatu e Camaqüã, que passaram a operar com modernos retificadores de silício, respectivamente em 1972 e 1976.

O editorial da edição de Março de 1970 da Revista Ferrovia registra um recorde de velocidade ferroviária no Brasil, que teria sido atingido por uma composição completa de passageiros tracionada por uma locomotiva elétrica da Companhia Paulista na nova variante entre Boa Vista e Hortolândia, que havia sido acabado de ser inaugurada. É interessante notar que este recorde caiu no mais completo esquecimento, inclusive nos meios ferroviários especializados. Uma outra experiência similar, desta vez envolvendo a presença de políticos e realizada com ampla cobertura jornalística, ocorreria em 1989, também envolvendo locomotivas elétricas da Companhia Paulista.

Em 1971 todas as ferrovias pertencentes ao estado de São Paulo, inclusive a Companhia Paulista, foram unidas numa única companhia, a Ferrovia Paulista S.A. - FEPASA. Logo nos primeiros anos dessa nova empresa começaram os primeiros rumores acerca do sucateamento generalizado das locomotivas elétricas mais antigas da Companhia Paulista, as box-cab. De todo modo, elas já tinham meio século de vida, já deviam estar no fim de sua vida útil e sua manutenção já devia estar se tornando mais complicada, em função da falta de peças sobressalentes em estoque. Contudo, o advento da crise do petróleo de 1973, quando a OPEP aplicou um brutal aumento no preço desse insumo e ameaçou boicotar o seu fornecimento conforme seus humores políticos, alertou o país para os riscos da dependência de combustíveis importados. Foi este fato que acabou evitando seu sucateamento naquela ocasião.

Também em 1973 foi inaugurado um ramal entre Boa Vista e Paulínia, o qual fazia parte da retificação das antigas linhas da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, que foram retiradas do centro da cidade de Campinas. Além disso, ele atendia à refinaria que foi instalada nessa cidade e que abastecia todo o interior paulista com derivados de petróleo usando primordialmente transporte ferroviário. Esse ramal era eletrificado e tinha bitola mista, o que foi bastante oportuno na época, uma vez permitiu o uso intensivo de transporte ferroviário movimentado a eletricidade numa época de petróleo cada vez mais caro.

O governo paulista só reagiu efetivamente à crise do petróleo só em 1975, lançando o Plano de Eletrificação da FEPASA. Ele incluía o fornecimento de dez novas locomotivas elétricas Alsthom, de 3400 HP, com bitola larga. Os componentes dessas máquinas chegaram a ser produzidos na França e enviados ao Brasil, onde seria feita a montagem das máquinas. Isso, contudo, nunca ocorreu, uma vez que a execução do programa foi truncada por razões diversas - mas principalmente por falta de dinheiro. Maiores detalhes sobre essas locomotivas podem ser encontradas no capítulo da FEPASA deste trabalho.

Esse novo entusiasmo pela eletrificação não garantiu totalmente a sobrevivência das antigas máquinas box-cab. A partir de meados da década de 1970 pouco a pouco elas foram sendo retiradas do serviço ativo, a medida que seus reparos iam se tornando cada vez mais custosos. Por outro lado, a tração diesel entrava em sua segunda geração: entre 1975 e 1977 foram fornecidas dezenas de locomotivas General Electric U-20 de 2000 HP e bitola larga à FEPASA, basicamente para substituir as antigas ALCO RSD-3, ALCO PA2 e General Electric U-9 que a Companhia Paulista havia adquirido ao longo da década de 50. Essas locomotivas foram produzidas na planta de Boa Vista (SP) da General Electric - de fato, essa foi a era de ouro da indústria ferroviária no Brasil!

A confiabilidade da tração elétrica ao longo das linhas da antiga Companhia Paulista a partir da segunda metade da década de 1970 foi ameaçada por um fato inesperado: ladrões audaciosamente roubavam os fios de liga de cobre das catenárias, que possuem alto valor comercial. Talvez o fato não seja tão inesperado assim se lembrarmos que o próprio Monlevade já havia relatado ocorrências de vandalismo nas linhas eletrificadas da Paulista em 1922... Na verdade, são reflexos de uma condição típica de países de Terceiro Mundo, onde a desagregação do tecido social decorrente das crises econômicas provoca o comprometimento das noções de civilidade da população. A situação somente foi resolvida após a FEPASA ter adotado medidas de segurança mais severas ao longo de suas linhas.

Em 1976 houve a primeira supressão de um trecho eletrificado da Companhia Paulista. A antiga linha entre Bauru e Garça, via Serra das Esmeraldas, foi substituída por uma linha direta, atravessando terreno bem mais plano. Isso implicou na desativação da eletrificação do trecho entre Bauru e Cabrália Paulista – o que não deixou de ser irônico, pois era justamente o trecho eletrificado mais novo da companhia, que operou por apenas 22 anos. Este fato lança ainda mais confusão na questão sobre o projeto de eletrificação entre Cabrália Paulista e Tupã. O que se pode tentar conjecturar é que a execução desse projeto ainda se encontrava em andamento quando finalmente se decidiu pela retificação do trecho entre Bauru e Garça, o que tornou sem sentido continuar a eletrificação a partir de Cabrália Paulista, que se encontrava no trecho condenado. Rumores ouvidos na região no início da década de 1970 davam conta de que a eletrificação seria estendida até Tupã assim que a nova variante estivesse pronta. O fato é que ela nunca se concretizou.

Apesar da crise do petróleo ter durado até 1985, a eletrificação ferroviária continuou em maré vazante no Brasil ao longo da década de 1970. Entre 1977 e 1984 foi suprimida a eletrificação na E.F. Central do Brasil, com exceção das linhas de subúrbio; em 1982 foi a vez das antigas linhas da Rede Mineira de Viação. Pelo menos o fim da eletrificação nessas ferrovias representou o reequipamento de outras onde esse modo de tração ferroviária ainda continuava. Em 1982 ocorreu uma troca interessante: 10 locomotivas elétricas do tipo Escandalosa, originalmente pertencentes à antiga E.F. Central do Brasil, desativadas em 1977 e que eram praticamente idênticas ao modelo V8 usado pela antiga Companhia Paulista, foram transferidas da RFFSA para a FEPASA. Esta, por sua vez, transferiu para primeira 11 locomotivas diesel-elétricas RSC3, que também haviam pertencido à Companhia Paulista. As locomotivas oriundas da E.F. Central do Brasil encontravam-se em péssimo estado de conservação, tendo sido necessário implantar um extensivo programa de reformas para reabilitá-las, o qual foi levado a cabo nas oficinas de Jundiaí da antiga Companhia Paulista entre 1982 e 1988. Foram reformadas oito locomotivas; as duas restantes foram canibalizadas para fornecer peças às demais. Conforme foi publicado na Revista Ferroviária, edição de novembro de 1988, cada reforma efetuada ficou em torno de cem mil dólares, o equivalente a 4% do preço de uma locomotiva elétrica nova com 3950 HP de potência. As reformas incluíram reconstituição total da parte elétrica, reparo de truques, caldeiraria e pintura. Os pantógrafos foram substituídos por novos, do tipo Fiveley, substituição dos mancais de fricção por de rolamentos e uso de materiais isolantes mais modernos e eficientes, bem como melhor isolamento térmico e acústico para um maior conforto de sua tripulação. Foram implementados ainda dispositivos para aumentar a segurança do tráfego e proteção elétrica contra incêndio. Um detalhe interessante: cinco das locomotivas Escandalosas da Central do Brasil que vieram para a FEPASA foram fabricadas pela Westinghouse, usando o mesmo projeto da General Electric.

Após 1985 o preço do petróleo abaixou e se estabilizou no mercado internacional, desmotivando ainda mais o uso da tração elétrica nas ferrovias brasileiras.

Durante o governo Quércia (1987-1991) houve uma tentativa para se revitalizar o transporte de passageiros a longa distância, o que incluiu a reforma de diversos carros e implantação de novos horários de trens de passageiros. Foi dentro desse espírito de renovação que se decidiu quebrar o recorde de velocidade ferroviário brasileiro. A FEPASA e o Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo - I.P.T. firmaram um acordo no primeiro semestre de 1989 visando ao desenvolvimentos de projetos tecnológicos na área ferroviária, incluindo um que tinha por objetivo operar Trens Rápidos para passageiros usando-se linhas e material rodante já existentes. Dentro do âmbito deste projeto, designado pela sigla TP-160, foi preparada uma composição de passageiros especial, composta de três carros inoxidáveis Budd originalmente fornecidos para a E.F. Araraquara em 1963, mais o carro-laboratório do Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo - I.P.T., fabricado pela Budd em 1951. Essa composição foi tracionada pela locomotiva elétrica V8 #6386 fabricada em 1947. Os testes foram precedidos de simulação computacional e efetuados, sob instrumentação completa, num trecho de 12 quilômetros entre Itirapina e Graúna, que, além de ter sido retificado e melhorado entre o final da década de 1960 e o início de 1970, recebeu preparação especial para essa experiência. Os resultados obtidos foram muito bons: foi atingida a velocidade máxima de 164 km/h no dia 16 de maio de 1989, que até hoje permanece o recorde ferroviário brasileiro de velocidade. Contudo, essa façanha não foi conseguida com facilidade: ocorreu uma série de problemas técnicos, como o rompimento dos pantógrafos da locomotiva e queda da tensão elétrica do sistema devido à sobrecarga de energia.

Na verdade esse recorde não era uma novidade tão grande assim: velocidades da ordem de 150 km/h já tinham sido atingidas em composições especiais da Companhia Paulista dezenove anos antes...

De acordo com os artigos 160 km/h - Recorde Brasileiro, publicado na edição de setembro de 1989 da Revista Ferroviária e 1940-1990: Cinqüenta Anos de V8, publicado na Revista Brasileira de Ferreomodelismo de Outubro 1989, as conclusões anunciadas pela FEPASA após a execução desses testes foram:

  • A FEPASA possui capacitação tecnológica para colocar o Trem Rápido em funcionamento;

  • O conforto e a segurança em altas velocidaddes dependem em grande parte das condições geométricas e da qualidade de manutenção da via;

  • Com o eventual envolvimento e cooperação da indústria ferrroviária instalada no país podem-se prever resultados ainda mais significativos.

Com novos investimentos na via e nos equipamentos, a FEPASA poderá operar seus trens em velocidades mais altas pois, mesmo utilizando um equipamento convencional, a velocidade alcançada permite um ganho de 30% no tempo de percurso, oferecendo vantagem imediata sobre o transporte rodoviário.

O Trem Rápido pode, por exemplo, fazer o trecho São Paulo-Araraquara em 3h45min, ao invés das atuais 5 horas.

A implantação do Trem Rápido possibilitará à FEPASA resgatar a credibilidade na capacitação da ferrovia e operar os trens de passageiros de forma mais competitiva com os demais meios de transporte.

O governo do estado também anunciou na época a constituição de um consórcio entre a FEPASA e vinte empresas brasileiras para a construção do primeiro Trem Rápido nacional. De acordo com as previsões, a implantação dos trens rápidos em regime experimental deveria ocorrer entre outubro de 1989 e outubro de 1990. Mas a verdade é que infelizmente esta façanha não gerou frutos concretos para a operação comercial dos trens de passageiros, ficando apenas no campo do virtuosismo técnico. Logo o entusiasmo governamental pelos trens de passageiros arrefeceria e eles voltariam a seu medíocre padrão de qualidade pós-1976, particularmente quando terminou o governo Quércia.

É curioso notar que pelo menos um serviço de subúrbio chegou a ser implantado nas linhas eletrificadas da Companhia Paulista. De certa forma essa necessidade já era prevista, dado o grande progresso das cidades do interior paulista que foram servidas por essa ferrovia. O problema é que a FEPASA não dispunha dos recursos necessários para implantar um serviço conveniente para esse transporte de passageiros. Partiu-se então para a improvisação, como foi o caso do Trem Suburbano de Bauru, um serviço de transporte suburbano que foi implantado naquela cidade no início da década de 1990. O material rodante era oriundo da antiga Companhia Paulista: um ou dois carros de aço carbono tracionados por duas locomotivas elétricas manobreiras Baratinha, uma em cada extremidade da composição. O trem corria ao longo de quinze quilômetros da antiga linha da Companhia Paulista que cortava Bauru, possuindo as seguintes estações: Bauru Central, Companhia Paulista, Guadalajara (próximo de Triagem Paulista), Distrito Industrial, Octávio Rasi e Aimorés (próximo à subestação elétrica da ferrovia). As estações de Guadalajara, Distrito Industrial e Octávio Rasi foram especialmente construídas para esse novo serviço. Infelizmente suas atividades duraram pouco tempo, sem que se saiba exatamente as razões que determinaram seu término.

A eletrificação no trecho entre Boa Vista e Eng° Acrísio, pertencente ao Corredor de Exportação Santos-Uberaba, concluída em 1990, permitiu a circulação esporádica de composições de cargas tracionadas por locomotivas elétricas de bitola larga no trecho, uma vez que o mesmo possuía bitola mista.

Também ao longo da década de 1990 tornaram-se mais comuns trens de carga tracionados por duas ou três locomotivas elétricas Vanderléia, num esforço para aumentar a produtividade da tração elétrica através do transporte de maior quantidade de carga numa mesma composição. A mesma abordagem estava sendo tomada por outras ferrovias que ainda tinham tração elétrica, como as antigas linhas da E.F. Sorocabana e a E.F. Santos a Jundiaí. O problema é que as subestações das antigas linhas da Companhia Paulista eram antiquadas e não teriam potência suficiente para abastecer plenamente essas locomotivas caso elas fossem acionadas sob carga plena. De fato, a potência máxima liberada pelas locomotivas trabalhando em duplex ou triplex era limitada elétricamente para se evitar que provocassem uma sobrecarga no sistema. Um triplex de Vanderléias tinha potência equivalente a apenas uma locomotiva e meia desse tipo, ou seja, aproximadamente 6.500 HP. Essa era uma clara limitação das locomotivas elétricas, já que uma quadra de locomotivas diesel-elétricas G.E. U-20 disponibilizava 8.000 HP para tração, sem depender de limitações de potência das subestações ou catenárias.

Ainda não se sabia, todos esses esforços técnicos foram o último brilho do crepúsculo da tração elétrica nas linhas da antiga Companhia Paulista.

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1995-2000: O Fim

Confusões serão meu epitáfio,
Enquanto percorro este caminho tortuoso e quebrado.
Se nós o tivéssemos feito, poderíamos sentar e rir...
King Crimson: Epitaph (1969)

A mudança no panorama político mundial com a derrocada do comunismo e a vitória da globalização no final dos anos 80 inverteu a tendência à estatização que se verificava no Brasil desde a desde a década de 1950. A partir do início da década de 90 já se conjecturava a privatização da maioria das companhias estatais, incluindo a FEPASA. Muitos ferroviários e aficcionados, inocentemente, encaravam essa mudança como sendo a tábua de salvação do sistema - afinal, a lembrança dos bons tempos da legítima Companhia Paulista ainda era muito forte.

Num primeiro instante a perspectiva de privatização da FEPASA foi bastante negativa - paulatinamente os investimentos foram sendo reduzidos, já que o governo sabia que a companhia iria trocar de dono. Isso afetou principalmente a manutenção do material rodante, ocorrendo redução no número das chamadas reformas gerais (RG) de locomotivas a partir de 1991. Por outro lado, por razões políticas, a concretização da privatização demorou demais, levando a companhia a um quadro agônico. Para complicar ainda mais a situação, o enorme grau de endividamento do Banco do Estado de São Paulo - BANESPA em 1995 forçou o novo governo do estado de São Paulo, recém empossado, a entregar parte de seu patrimônio ao Governo Federal para evitar sua falência. A FEPASA foi então transferida para a RFFSA, recebendo então o nome de Malha Paulista. Contudo, esse foi um processo arrastado, que levou anos; a privatização, então conduzida pelo Governo Federal, somente ocorreu no início de 1999, quase dez anos após os primeiros rumores de privatização.

Em 1995 a nova diretoria da FEPASA, que havia assumido com o novo governo do estado, tomou uma série de medidas para preparar a companhia para a privatização. Uma delas foi a supressão da tração elétrica, principalmente nas antigas linhas da Companhia Paulista, conforme noticiado na edição de 18 de agosto de 1995 da Folha de São Paulo:

FEPASA ADOTA LOCOMOTIVAS MOVIDAS A DIESEL

Luiz Malavolta
Da Agência Folha, em Bauru

A Fepasa (Ferrovia Paulista S/A) vai alugar nos EUA, por R$ 300 mil mensais, dez locomotivas usadas movidas a diesel para substituir as máquinas elétricas da empresa que estão sendo desativadas.

A informação foi dada à Agência Folha pelo presidente da Fepasa, Renato Pavan, 57. Ele disse que a empresa deve pagar em média R$ 30 mil por mês de aluguel para cada locomotiva. Segundo Pavan, a Fepasa não tem dinheiro para comprar as máquinas. Cada uma custa R$ 980 mil. Ele viaja em setembro para os EUA para negociar a locação.

Pavan disse que as locomotivas elétricas estão sendo desativadas por ser ``antieconômicas".

Trinta e seis máquinas estão sendo retiradas de uso pela empresa, que possui uma frota de 192 locomotivas elétricas (com média de idade de 30 anos) e 354 locomotivas a diesel.

As 36 máquinas que serão substituídas pertencem à linha que faz o percurso de 300 km entre Bauru e Jundiaí (SP) e são usadas principalmente para transporte de carga.

As máquinas estão sendo estacionadas no pátio da Fepasa em Bauru (345 km de SP). Segundo Pavan, das 36 locomotivas, 26 serão vendidas como sucata. As outras dez serão negociadas com a RFFSA (Rede Ferroviária Federal S/A) para ser usadas na rede da Grande São Paulo.

Segundo Pavan, nas próximas semanas os funcionários vão iniciar a retirada do sistema elétrico (cabos e subestações) em 300 km de linhas. A fiação e o material obtido nas subestações de energia, instalados há 40 anos, também serão vendidos como sucata.

Ele disse que a desativação do sistema elétrico se deve principalmente à "operação precária" das locomotivas movidas a energia elétrica. "Elas estão com a capacidade de tração reduzida e não conseguem fazer adequadamente o transporte de cargas", afirmou.

Segundo ele, com as locomotivas a diesel será possível aumentar de 1.500 para 3.000 toneladas a capacidade de cada máquina.

Renato Pavan disse que a Fepasa teve um prejuízo de R$ 100 milhões em 94 por causa da precariedade do sistema. Segundo ele, a empresa gasta por ano R$ 5 milhões em energia elétrica.

Lamentavelmente a decisão tinha justificativas técnicas bastante razoáveis: o sistema tinha mais de setenta anos e estava irreversivelmente obsoleto. Sua pedra angular, a alimentação em corrente contínua de 3 kV, tornou-se ineficiente em relação aos sistemas mais novos, em corrente alternada. A crise crônica que se abateu sobre a ferrovia após 1960 impediu que fossem feitos os investimentos necessários à atualização tecnológica do sistema de eletrificação. A manutenção das velhas locomotivas elétricas era artesanal, requerendo a fabricação de peças por encomenda nas oficinas da ferrovia ou em empresas terceirizadas. Como foi visto anteriormente, algumas subestações chegaram a ser modernizadas, como as de Tatu e Camaqüã, mas outras tiveram suas obras interrompidas, como as de Louveira, Campinas, Sumaré, Aterrado, Torrinha e Jaú.

Por outro lado, as locomotivas diesel-elétricas foram continuamente aperfeiçoadas ao longo das últimas décadas período e já apresentavam potência comparável às maiores elétricas ainda disponíveis nas linhas de bitola larga. De fato, uma das últimas grandes locomotivas construídas no Brasil foram as diesel-elétricas C-30-7 da General Electric, monstros de 3.000 HP fornecidos à Cutrale-Quintela, uma empresa de agropecuária, para tracionarem suas cargas nas linhas de bitola larga da FEPASA. O fato do parque de locomotivas diesel-elétricas da FEPASA ser moderno também barateia sua manutenção, pois seus sobressalentes podem ser adquiridos prontamente junto a seus fabricantes.

Contudo, o espírito de Monlevade é muito forte e sua obra resistiu a esse primeiro impacto. A nova administração da Fepasa havia condicionado o fim da tração elétrica ao aluguel de trinta locomotivas diesel-elétricas nos Estados Unidos, o qual acabou não sendo efetuado. A situação da frota de locomotivas diesel da companhia era péssima após quatro anos sem manutenção adequada. Os contratos de demanda para energia elétrica ainda estavam em vigor e tinham de ser pagos, houvesse ou não consumo. Os sindicatos de ferroviários também pressionavam pela manutenção do antigo sistema. E, afinal, havia contratos de carga a serem cumpridos... Aproximadamente um ano depois de sua supressão as locomotivas elétricas retornaram sem alarde, evitando o colapso das antigas linhas da Companhia Paulista. Somente a eletrificação do trecho Araraquara-Rincão foi desativado nessa ocasião.

Ainda surgiram alguns animadores sinais de vida, quando algumas das famosas locomotivas V8 receberam a última pintura da FEPASA, dentro do enésimo programa para promoção de trens de passageiros de longo percurso, em 1996. Parecia um bom sinal. Mas os reveses da eletrificação continuavam, ainda que de forma indireta para a antiga Paulista: no final de 1996 a M.R.S. Logística assumiu as linhas da antiga E.F. Santos a Jundiaí e optou por não mais usar a tração elétrica nos seus trens de carga. Dessa forma, as antigas locomotivas elétricas dessa ferrovia foram encostadas. Contudo, seu sistema de catenárias não foi desativado, uma vez que ele serve aos trens de subúrbio da capital paulista, agora sob administração da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos - C.P.T.M.. Isso possibilitou que os trens de passageiros que ainda circulavam na FEPASA continuassem a percorrer o trecho entre São Paulo e Jundiaí usando as locomotivas da antiga Companhia Paulista, que mais uma vez voltavam a visitar a capital.

Mas foi uma vitória de curta direção. O fato é que a eletrificação da antiga Paulista sistema estava condenada: sua confiabilidade era baixa e houve até mesmo relatos que afirmavam que as subestações ficavam permanentemente desligadas, sendo ativadas somente para permitir a passagem de trens que, eventualmente, ainda usavam locomotivas elétricas. Uma diagnose feita por Wilson R. Baptista Ribeiro e mais dois especialistas da FEPASA, publicada na revista Engenharia em julho de 1996, é o próprio réquiem da eletrificação nesta empresa, particularmente nas antigas linhas da Paulista:

O aumento da produtividade das equipes de condução pode ser realizada aumentando a velocidade dos trens, otimizando as escalas ou aumentao a carga rebocada pelos trens. A análise dos tempos de percurso na FEPASA mostra que existe margem para melhorar sua velocidade, otimizando principalmente tempos de composição e cruzamento, e a otimização das escalas pode ser realizada através de um melhor planejamento e controle da circulação. Entretanto, a grande oportunidade de ganho de produtividade das equipes é o aumento do tamanho dos trens. Nos fluxos onde existe um volume grande de cargas a ser transportado, o aumento do tamanho dos trens permite ganhos importantes de custos (principalmente condução), sem um comprometimento significativo no prazo de entrega das cargas e da produtividade dos vagões. A FEPASA tem trilhado sistematicamente esse caminho.

O aumento do tamanho do trem traz para a tração elétrica um inconveniente importante. Para tracionar trens maiores, normalmente se aumenta a quantidade de locomotivas por trem (para realizar a força de tração necessária), aumentando-se a potência absorvida da rede aérea de forma concentrada, diminuindo o fator de carga do sistema, e conseqüentemente aumentando o custo da energia.

Para minimizar o custo com equipes de condução é necessário aumentar o tamanho dos trens e, para minimizar o custo de energia elétrica, é necessário reduzí-los. Que caminho seguir? Não há uma solução sem perdas na tração elétrica.

Na tração diesel este problema não se apresenta, permitindo a formação de trens mais longos e, sob o ponto de vista da condução, mais eficientes.

Outra desvantagem importante da tração elétrica é que em muitos casos ela não serve todas as linhas entre a origem e o destino de um determinado fluxo, exigindo troca de locomotivas e muitas vezes recomposição de trens. Essas operações exigem a presença da equipe de condução, para manobra e revista, o que diminui sua produtividade. A FEPASA está buscando aumentar a operação com trens unitários, e a tração elétrica impõe maiores dificuldades para isso.

No caso específico das antigas linhas eletrificadas da Companhia Paulista o trabalho informa:

O sistema de Bitola Larga transporta atualmente oito milhões de toneladas brutas por ano entre Boa Vista e Araraquara, e espera-se um aumento para mais de vinte milhões com a entrada da FERRONORTE, mas o sistema elétrico está com a vida útil esgotada, necessitando um investimento da ordem de US$ 49,1 milhões em modernização e, de acordo com os estudos de viabilidade, em 40 anos de vida útil de um sistema elétrico os investimentos não serão amortizados.

E conclui:
Recomenda-se não realizar as novas eletrificações, e abandonar a tração elétrica (no médio prazo), onde são necessários grandes investimentos na renovação e modernização dos equipamentos fixos (Bitola Larga). Recomenda-se utilizar a vida útil remanescente dos equipamentos elétricos erradicados, substituindo gradualmente os trens elétricos por trens diesel.

Gone are the days of the knights!

Finalmente, no início de 1999 o controle da antiga FEPASA passou para uma companhia privada, o consórcio FERROBAN - Ferrovias Bandeirantes. A empresa não manifestou interesse imediato pelo uso das locomotivas elétricas de bitola larga e pela maior parte das de bitola métrica. As antigas locomotivas da Companhia Paulista foram encostadas, em sua maioria, no pátio de Triagem Paulista, onde ainda se encontravam em dezembro de 2001. Observa-se lá um quadro confrangedor: dezenas de locomotivas, fruto de um projeto tecnológico de vanguarda, concebido e dirigido por brasileiros, abandonadas e sujeitas a saques, uma vez que a vigilância no local é reduzida. São milhões de dólares de patrimônio público abandonados e apodrecendo.

As últimas esperanças acerca de uma reativação da eletrificação acabaram no final de 1999, quando a RFFSA determinou a retirada das catenárias ao longo de todas as linhas da antiga FEPASA. As justificativas para essa retirada foram a necessidade de se preservar o patrimônio da ação de vândalos e também questões de segurança: os cabos estavam caindo sobre a linha em função da falta de manutenção, colocando em risco as poucas composições em circulação. Dessa forma, a cena depressiva de Triagem Paulista se espalhou ao longo de centenas de quilômetros de linha: postes sem fio, braçagens retorcidas, isoladores perdidos sem função... E isso sem contar que as várias subestações, também abandonadas, foram saqueadas por ladrões em busca das valiosas ligas de cobre. Neste caso surgiram diversas situações de risco: afinal, os transformadores dessas estações são refrigerados pelo tristemente famoso óleo askarel, que é um potente agente carcinogênico. É pouco provável que houvesse uma CIPA (Comissão Interna de Prevenção de Acidentes do Trabalho) que alertasse os saqueadores a esse respeito... De todo modo, após várias denúncias de vazamento de mercúrio e askarel em subestações da antiga E.F. Sorocabana, a RFFSA cercou as subestações e colocou cartazes de alerta quanto ao risco. Também ao longo de 2001 a RFFSA vendeu o material dessas subestações em leilões, os quais estão sendo paulatinamente retirados.

No início do ano 2000 a Companhia Paulista de Trens Urbanos - C.P.T.M. recebeu quatro locomotivas V8, possivelmente para trabalhar no socorro a trens de subúrbio. Infelizmente não há maiores informações a respeito.

Sem dúvida foi estranho o sucateamento da eletrificação no histórico trecho entre Jundiaí e Campinas. Uma vez que a eletrificação da antiga E.F. Santos a Jundiaí foi mantida para circulação dos trens unidade elétricos, seria perfeitamente viável a manutenção de trens elétricos entre São Paulo e Campinas via Jundiaí, uma rota que certamente teria grande movimento de passageiros desde que houvesse um mínimo de pontualidade, conforto e segurança. Mas a ferrovia, que já tratava seus usuários a pontapés, decidiu finalmente virar-lhes as costas.

Já que não é mais possível ver as locomotivas elétricas em funcionamento resta como consolo tentar preservar alguma parte do acervo de equipamentos desta legendária aventura tecnológica. Infelizmente esta tarefa vem se mostrando bastante complicada, em função de uma série de fatores adversos, como a crônica falta de recursos das entidades de preservação ferroviárias, já que não mais existem grandes fabricantes de material ferroviário nacionais nem operadoras comprometidas com o passado das linhas que assumiram. A transferência do patrimônio da FEPASA para a RFFSA também criou diversas complicações jurídicas e burocráticas para a transferência deste material.

O Museu da Companhia Paulista conseguiu preservar diversas locomotivas elétricas do tipo box-cab já na década de 1980; em 1995 foi a vez da manobreira elétrica #502 em 1995. Lamentavelmente houve iniciativas de preservação que foram abortadas, tais como o das box-cabs adquiridas pela General Electric do Brasil e da Companhia Sorocabana de Material Ferroviário (SOMA).

Parece que ao menos uma das subestações elétricas do antigo sistema de eletrificação da Companhia Paulista será preservada para fins históricos. Felizmente, sob esse ponto de vista, é a mais importante de todas: é a subestação de Louveira, que leva o nome do engenheiro Francisco de Monlevade, justamente a primeira que foi construída. No 80° aniversário da primeira viagem experimental de uma composição tracionada por uma locomotiva elétrica no Brasil, que foi comemorado em 24 de outubro de 2001, a sub-estação foi reaberta, com a presença da Sra. Sílvia Monlevade Calmon de Brito, neta do engenheiro Francisco de Monlevade. Suas instalações foram restauradas, estando agora abertas à visitação pública. Espera-se que o empreendimento tenha vida longa, ao contrário de tantas iniciativas voltadas para a preservação ferroviária no Brasil.

Em maio de 2003 ocorreu outra etapa fundamental para a preservação da memória da eletrificação da Companhia Paulista: a cessão de diversos componentes do legendário Trem R da Companhia Paulista - uma locomotiva elétrica G.E. V8 e quatro carros de passageiros Pullman Standard - à Seção Paulistana da Associação Brasileira de Preservação Ferroviária - A.B.P.F., baseada no Memorial do Imigrante. Alguns meses depois essas mesmas entidades, apoiadas por um grupo de fãs ferroviários, lançaram o Projeto Trem Azul, com o objetivo de colocar essa composição em ordem de marcha com a pintura original desse legendário trem. Em 29 de julho de 2003, o Conselho de Defesa do Patrimônio Cultural - CONDEPAC, órgão da prefeitura de Bauru, finalmente conseguiu a transferência de uma locomotiva elétrica V8 (#6387) e Vanderléia (#6351) desde o abandono em que se encontravam, no pátio de Triagem Paulista, até a antiga estação de Bauru, onde aguardam eventuais trabalhos de restauração.

Essa iniciativa veio numa hora mais do que oportuna, já que acelera-se o processo de depredação das locomotivas elétricas da Companhia Paulista ainda espalhadas pelos antigos pátios da ferrovia. Na verdade, após mais de quatro anos de abandono, elas foram praticamente saqueadas de todo tipo de equipamento que contivesse cobre e ligas de alto valor; em certos casos, em lances de audácia, os ladrões usaram equipamento pesado para poder tombar as pesadas caixas das locomotivas e, dessa forma, ter pleno acesso ao seu equipamento elétrico. Além disso, no fim de agosto começou o corte e sucateamento de algumas locomotivas V8 estacionadas na antiga Oficina de Jundiaí.

A eletrificação da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, sem dúvida, foi a mais importante do país no âmbito ferroviário. Foi um projeto motivado unicamente por razões econômicas, concebido de maneira racional e cuidadosa, implantado com prudência e mantido sob condições impecáveis. Por isso mesmo ele durou 77 anos sem modernizações ou modificações significativas, um recorde ferroviário brasileiro que dificilmente será quebrado. E isso a despeito dos quase 38 anos sob uma administração estatal, onde só o compromisso, empenho e dedicação do pessoal técnico diretamente envolvido em sua operação e manutenção realmente garantiu sua preservação. É profundamente injusto que seu fim tenha sido marcado por uma profunda decadência e confusão, que absolutamente não refletem o espírito dos pioneiros que o conceberam e construíram.

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Última Atualização: 07.09.2003

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