A Eletrificação nas Ferrovias Brasileiras

Estrada de Ferro Campos de Jordão


A tuberculose era um grave problema de saúde pública no Brasil antes do advento de antibióticos e outros poderosos medicamentos que surgiram em meados do século XX. Até então uma das poucas formas que os enfermos tinham de se curar ou, ao menos, controlar o curso dessa enfermidade dos pulmões era passar por tratamento especial em sanatórios localizados em regiões de clima frio e seco. No Brasil esse clima salutar era encontrado nas encostas da Serra da Mantiqueira ao longo do Vale do Paraíba, entre Taubaté e Guaratinguetá. Nessa região destacavam-se os chamados Campos do Jordão, a 1.700 metros de altitude e a aproximadamente a 50 quilômetros de Pindamonhangaba. Esse era o nome da região onde estavam localizados os povoados de Vila Jaguaribe, Vila Abernéssia e Vila Emílio Ribas. Os primeiros registros de estabelecimentos especialmente voltados ao tratamento dos doentes de tuberculose nessa região são encontrados por volta de 1874.

Os primeiros registros de intenções para a construção de uma ferrovia para se facilitar o acesso a essa região vêm de 1877, dada a significativa afluência de pessoas doentes à busca de tratamento. O acesso a Campos de Jordão era muito difícil na época já que, justamente por sua grande altitude, o relevo da região era muito irregular. Isso motivou os médicos Emílio Marcondes Ribas e Victor Godinho a solicitar uma concessão ao Governo do Estado de São Paulo visando a construção de uma ferrovia entre a estação ferroviária de Pindamonhangaba, no quilômetro 325,9 da linha Rio de Janeiro-São Paulo da E.F. Central do Brasil, e as imediações da Vila Jaguaribe, então pertencente ao município de São Bento do Sapucaí. Essa concessão foi somente foi outorgada em 1910. Talvez esta tenha sido a única ferrovia brasileira construída com finalidades exclusivamente terapêuticas!

A construção da estrada de ferro iniciou-se imediatamente. Seu ponto inicial, Pindamonhangaba, está a 552 metros do mar. Os primeiros 21 quilômetros se situam em terreno relativamente ao plano, atravessando o vale do Rio Paraíba do Sul. A seguir vem a travessia do rio, iniciando-se então o difícil trecho de subida da Serra da Mantiqueira. O projeto da ferrovia já previa sua eletrificação, dadas as características severas da topografia da região. Contudo, em função da carência de recursos - um mal recorrente nas ferrovias brasileiras de então, agravado neste caso pelo relevo muito adverso a ser vencido - ela foi construída sob condições técnicas bastante precárias: bitola métrica, simples aderência com trechos com rampa máxima de 10,5% (!) e boa parte da linha sem empedramento. E, obviamente, não eletrificada. De toda forma, não havia como justificar a aplicação de maiores recursos em recursos técnicos mais sofisticados como, por exemplo, em tração por cremalheira, uma vez que já se sabia que a ferrovia iria ter movimento quase que exclusivo de passageiros e pequenas cargas. A inauguração da ferrovia se deu em 15 de novembro de 1914, tendo 46,67 quilômetros de extensão. Já naquela época ela conquistou o recorde ferroviário brasileiro de altitude: 1.743 metros no local chamado Alto do Lageado; a partir daí a ferrovia passa por leve descida, alcançando Campos de Jordão aos 1.585 metros de altitude. Outro recorde, desta vez mundial, é o de declividade numa ferrovia de aderência simples: 12,5%. Ambos são mantidos até hoje. O material rodante da época era constituído por duas locomotivas a vapor, oito automóveis adaptados para rodar sobre trilhos, carros para bagagem e vagões de carga.

A precariedade das instalações e equipamentos da ferrovia tornou sua operação inconstante e deficitária: afinal, eram realizadas apenas três viagens semanais. A esses problemas se juntaram as dificuldades financeiras decorrentes da I Guerra Mundial, afetando o fluxo de caixa da ferrovia. Esses problemas começaram a ameaçar a sobrevivência da empresa, forçando o Governo do Estado de São Paulo a assumir seu controle em maio de 1916. A partir daí a ferrovia passou a ter respaldo para melhorar seus equipamentos e instalações, incluindo melhorias nas condições de seu traçado. O principal melhoramento planejado foi sua eletrificação, que era particularmente oportuna em função do relevo acidentado da região que atravessava. Os estudos preliminares para sua implantação começaram logo após o fim do conflito mundial.

O empreendimento era bastante oportuno, uma vez que em 1918 era concedida a Alfredo Jordão Júnior a concessão para fornecimento de eletricidade ao então distrito de Campos de Jordão. Ele associou-se a Roberto J. Reid, proprietário das terras onde se localizava um salto de 46 metros do Ribeirão Abernéssia, para constituir a firma Jordão Júnior & Cia, que tinha por objetivo construir uma hidrelétrica no local. Com efeito, foi construída uma barragem entre dois morros no local, com 80 metros de comprimento e 12 de altura. A partir da represa saía uma adutora com comprimento de 1.060 metros que alimentava a usina, que tinha potência total de 260 HP. A mesma empresa também se propôs a eletrificar a E.F. Campos do Jordão. Seu projeto propunha dividir os 47 quilômetros da estrada em cinco setores iguais, cada um dotado de uma subestação retificadora rotativa. Elas seriam alimentadas a partir de uma linha com 6 kV e gerariam corrente de 550 ou 600 volts para alimentar os bondes e automotrizes da ferrovia. A energia para a ferrovia viria da hidrelétrica recém construída em Campos do Jordão e também de um reforço de 450 HP que seria fornecido por uma empresa de Paraizópolis.

Contudo, a concorrência pública aberta na época foi vencida pela The English Electric Co., que em meados da década de 1940 também ganharia outro contrato para a eletrificação de uma ferrovia brasileira, a E.F. Santos a Jundiaí. O contrato entre a ferrovia e a empresa inglesa foi assinado a 20 de julho de 1923. sido definida para esta eletrificação o padrão de 1.500 volts em corrente contínua, com as automotrizes sendo alimentadas por rede aérea de contato. Esta foi uma das eletrificações ferroviárias pioneiras no Brasil, muito embora o caráter da E.F. Campos de Jordão seja mais o de uma linha de bondes interurbanos do que propriamente uma ferrovia.

A energia necessária para a ferrovia era fornecida pela Empresa de Eletricidade São Paulo e Rio, filiada à Companhia Carris, Luz e Força do Rio de Janeiro, a famosa Light. O ponto de entrada de energia ficava no quilômetro 5 da ferrovia, sendo fornecida a 30 kV, trifásica, 60 ciclos, com potência reservada de 500 kW. A partir daí ela era transportada através de linha de transmissão de propriedade da ferrovia até sua única subestação retificadora, instalada a meio caminho entre Pindamonhangaba e Campos do Jordão, na localidade de Eugênio Lefevre, na Serra da Mantiqueira. Neste ponto a voltagem da energia fornecida era abaixada para 2.000 volts, sendo então alimentada a dois grupos moto-geradores de 250 kW cada um. Cada grupo moto-gerador era constituído de um transformador de 700 kVA, que reduzia a corrente de 3.000 volts para 2.000 volts, um motor síncrono de 580 kVA e dois geradores de corrente contínua de 250 kW e 750 volts ligados em série. O equipamento era capaz de suportar uma sobrecarga de 50% por duas horas.

A corrente elétrica retificada de 1,5 kV era distribuída a dois circuitos diferentes, denominados circuito de Pindamonhangaba e circuito de Campos de Jordão. A rede aérea era suportada por postes de ferro, constituídos de dois trilhos gêmeos com 9 metros de altura, apoiados nas curvas por cabos de aço de 50 mm² de seção. Esses postes também sustentavam a linha de transmissão com a corrente de 30 kV fornecida pela concessionária pública. O circuito negativo era constituído pelos trilhos, ligados por bonds constituídos de cabos de cobre. A rede era seccionada de seis em seis quilômetros por meio de chaves de faca.

O material rodante era constituído de quatro automotrizes elétricas de 240 HP cada, sendo duas para passageiros e duas do tipo fechado para cargas e bagagens. As automotrizes para passageiros dispunham de cabine dupla de comando, dois compartimentos para passageiros, separados por um compartimento central de cinco metros quadrados para o transporte das bagagens dos passageiros, além de dois sanitários. Seu comprimento total era de aproximadamente 17,350 metros e peso de 23 toneladas. Elas tinham capacidade para transportar quarenta passageiros, sentados em bancos de palhinha. Elas foram construídas pela Midland Railway Carriage & Wagon Company, em Birmingham, Inglaterra, usando equipamento elétrico da English Electric, incluindo quatro motores DK30 de 60 HP e 750 volts. Em função dos pesados gradientes no trecho de serra foi dada particular atenção aos dispositivos para frenagem dos carros. As automotrizes eram capazes de executar frenagem regenerativa, usando seus motores para gerar eletricidade quando estavam nos trechos de descida. Contudo, uma vez que a subestação não dispunha de equipamentos para lidar com a energia regenerativa proveniente das composições, a energia gerada por elas era dissipada em resistências elétricas montadas abaixo do carro. Além desse freio reostático, essas automotrizes também dispunham de freio Westinghouse a ar comprimido para uso durante sua movimentação, um freio de mão para estacionamento e um freio de emergência magnético atuando sobre os trilhos. A energia para os compressores de ar e para o freio magnético era proporcionada pela corrente de 1,5 kV coletada na catenária. As automotrizes de carga tinham capacidade para carregar 10 toneladas de carga e seu equipamento elétrico era idêntico às automotrizes de passageiros.

O primeiro teste do sistema de eletrificação da E.F. Campos do Jordão ocorreu em fins de novembro de 1924; uma automotriz de carga levando algumas pessoas percorreu o trecho de Pindamonhangaba até a localidade conhecida como Botequim, no quilômetro 26 da ferrovia, um pouco além da metade do percurso total. Segundo o relato da revista Brasil Ferro Carril a experiência foi coroada de êxito.

A inauguração oficial da eletrificação na E.F. Campos do Jordão ocorreu em 21 de dezembro de 1924, com a presença do Presidente do Estado, Carlos de Campos e do Secretário da Agricultura, Viação e Obras Públicas, Gabriel Ribeiro dos Santos. Lamentavelmente, três dias após, na véspera do Natal, ocorreria o primeiro acidente com uma automotriz elétrica, vindo a falecer um empregado da estrada e outro da The English Electric Co. Além disso, a eletrificação da estrada prejudicou enormemente o funcionamento das ligações telefônicas entre Pindamonhangaba e Campos de Jordão, devido à indução provocada pela alta tensão. Isso requereu uma reforma nos troncos telefônicos então existentes. Apesar desses maus presságios iniciais, a eletrificação logo revelou-se ser um sucesso: houve grande melhoria nas condições do serviço prestado por essa ferrovia.

Em 1927 a E.F. Campos de Jordão adquiriu, também da English Electric, mais uma automotriz para passageiros e cinco automotrizes do tipo gôndola para o transporte de automóveis e cargas. Essas últimas unidades eram responsáveis pelo transporte de carros de turistas, um serviço de auto-trem que alcançou grande sucesso, uma vez que naquela época as condições das estradas de rodagem da região eram péssimas. Uma quarta automotriz para passageiros foi montada em 1932 nas oficinas da estrada em Pindamonhangaba, com material sobressalente fornecido pela English Electric - uma prática bastante comum nas ferrovias brasileiras. Na mesma época foram recebidas mais duas automotrizes para carga, também com 240 HP de potência, desta vez fabricadas pela Siemens-Schuckert alemã.

A extinção do Tramway do Guarujá, ocorrida em julho de 1956, beneficiou a E.F. Campos de Jordão, que "herdou" da finada ferrovia três bondes elétricos e uma pequena locomotiva elétrica do tipo steeple-cab, todos também fabricados pela Siemens Schuckert alemã, além de vários carros de passageiros. Esses bondes elétricos substituiríam os antigos a gasolina que ainda trabalhavam na seção plana entre Abernéssia e Emílio Ribas. É interessante notar que esse material rodante proveniente do Tramway do Guarujá era alimentado por tensão de 750 volts, corrente contínua. Não se sabe exatamente como ele foi adaptado para rodar na E.F. Campos de Jordão, onde a catenária era de 1.500 volts; há indícios de que os sistemas de controle dos bondes foram adaptados de forma a trabalhar com os motores elétricos de tração exclusivamente em série.

Desde então essa ferrovia não adquiriu mais material rodante. Afinal, a E.F. Campos do Jordão também acabou por ser afetada pela irrefreável expansão do rodoviarismo. Já na década de 1940 havia serviço comercial de ônibus ligando diretamente Campos de Jordão à capital paulista, via São José dos Campos. No final dessa década a inauguração da rodovia Presidente Dutra, entre São Paulo e Rio de Janeiro facilitou o acesso rodoviário à cidade. A partir da década de 1960 os automóveis tornaram-se acessíveis à classe média, que passou a depender cada vez menos do transporte público para alcançar Campos do Jordão. De fato, o tráfego de passageiros nos bondes urbanos de Campos de Jordão ou mesmo nas rotas entre essa cidade Santo Antonio do Pinhal manteve-se sempre forte, em função de seu caráter eminentemente turístico; por outro lado, diminuía cada vez mais a importância dessa ferrovia como um efetivo meio de transporte entre Pindamonhangaba e Campos de Jordão.

Apesar de sofrer dos mesmos problemas das demais ferrovias controladas pelo Governo do Estado de São Paulo a E.F. Campos do Jordão não foi integrada à Ferrovia Paulista S.A. - FEPASA, empresa que reuniu todas elas numa só. A E.F. Campos do Jordão continuou vinculada à Secretaria Estadual de Turismo, uma decisão lógica dada a natureza específica de seus serviços e o seu isolamento em relação à malha das ferrovias estaduais paulistas.

Essa queda no movimento de passageiros certamente deve ter contribuído para a decisão tomada pela ferrovia em 1972, que fez com que a locomotiva elétrica T1 fosse imobilizada para tracionar o teleférico instalado pela ferrovia, que leva turistas desde a estação terminal da ferrovia em Campos de Jordão, Emílio Ribas, até o alto do Morro do Elefante. A inauguração de uma moderna rodovia entre Taubaté e Campos do Jordão em 1977 obrigou ao término do antigo serviço de auto-trem e afetou severamente o tráfego entre Pindamonhangaba e Santo Antonio do Pinhal. Em 1982 chuvas torrenciais provocaram quedas de barreiras e levaram à supressão do tráfego nesse trecho. Contudo, ele foi recuperado e o tráfego retornou, mas só em outubro de 1986. Por volta dessa mesma época a E.F. Campos do Jordão recebeu uma série de equipamentos, incluindo uma subestação móvel Siemens, provenientes da supressão da eletrificação nas linhas da antiga Rede Mineira de Viação

Em 1994 Kelso Médici fez um inventário do material rodante disponível na E.F. Campos do Jordão, o qual foi publicado na edição de maio de 1995 do boletim Centro-Oeste:

Nesse mesmo ano a ferrovia criou o Bike-Trem, um vagão-gôndola que transportava ciclistas e suas respectivas bicicletas entre Campos de Jordão e Piracuama, já no vale do Rio Paraíba. Os ciclistas desceriam em pontos determinados na Serra da Mantiqueira, percorrendo trilhas alternativas até o ponto final do trem, onde o tomariam de volta para Campos do Jordão. Lamentavelmente a iniciativa abortou após o descarrilamento do trem durante a inauguração do serviço. Atualmente o vagão-gôndola que faria esse serviço se encontra encostado na estação de Pindamonhangaba.

Lamentavelmente as mazelas brasileiras volta e meia ameaçam essa pequena ferrovia, como o racionamento de energia elétrica verificado entre maio de 2001 e fevereiro de 2002, que obrigou ao corte de circulação de vários de seus bondes e automotrizes. Seus usuários viram-se forçados a procurar outros meios de transporte e não retornaram completamente à ferrovia após o fim do racionamento, criando uma situação preocupante.

O extraordinário sucesso de Campos de Jordão como estância turística tem viabilizado comercialmente a E.F. Campos de Jordão. Seu material rodante, apesar de antigo, passa por manutenções constantes de forma a sempre oferecer o máximo de conforto e segurança. Infelizmente eles já se encontram bem descaracterizados em relação a seu projeto original, em razão da falta de peças de reposição originais e restrições econômicas, além de proporcionar melhor conforto ao usuário. Por exemplo, as automotrizes fornecidas pela English Electric tiveram sua caixa reconstruída em alumínio e foram dotadas de ar condicionado e sistema de som. Além disso, perderam a cabine de comando numa das extremidades, obrigando ao uso de viradores para sua reversão. Por outro lado, essa descaracterização é um preço relativamente baixo a se pagar para se manter uma das raras ferrovias elétricas - ou linhas de bonde - que o Brasil ainda possui.




- Referências Consultadas


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Última Atualização: 29.06.2002

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