A Eletrificação nas Ferrovias Brasileiras

Prólogo


A tração elétrica nas ferrovias surgiu como uma grande alternativa à energia gerada pelo vapor no final do século XIX, quando essa tecnologia mostrou-se capaz de gerar, de maneira segura, econômica e flexível, maiores quantidades de energia que as outras alternativas então existentes. Note-se que, nesta época, o motor a explosão usando combustíveis líquidos ainda era uma curiosidade de laboratório.

As vantagens da tração elétrica ficam evidentes ao se fazer uma análise termodinâmica simples: cerca de 90 a 95% da energia total suprida a um motor elétrico são convertidas em energia útil, ou seja, tração numa locomotiva. Isto decorre do projeto simples e direto do motor elétrico, que basicamente é um eixo equipado com uma bobina rodando dentro de uma armadura. Há, obviamente, perdas com os sistemas de ventilação e outros equipamentos auxiliares mas, ainda assim, muito pequenas. Com as máquinas a vapor ocorre exatamente o contrário: sua relativa complexidade - uma fornalha que aquece água, que gera vapor, que empurra um êmbolo cujo movimento é transmitido às rodas motrizes através de um complexo mecanismo de manivelas - faz com que apenas 10% da energia da queima do carvão ou lenha efetivamente se transforme em força motriz.

Não é a toa que, no início do século, os fabricantes de locomotivas elétricas demonstravam a superioridade de seu equipamento através de um "cabo de guerra" entre locomotivas elétricas e a vapor - a maior potência das primeiras facilmente decidia a questão. Outro ponto que demonstrava de maneira fulminante as vantagens das locomotivas elétricas era a facilidade com que elas podiam inverter sua direção durante o trajeto. Geralmente locomotivas a vapor tinham de recorrer a complicados viradores que não se encontravam disponíveis em todas as estações ao longo do trajeto da ferrovia.

Mas fato é que a eletrificação ferroviária sempre ficou restrita a linhas com grande densidade de tráfego ou então que apresentavam condições de rodagem muito difíceis. Isto decorre da grande estrutura que se faz necessário implantar e operar para manter uma ferrovia eletrificada. Enquanto que uma locomotiva a vapor carrega seu próprio combustível (carvão ou lenha), as locomotivas elétricas dependem de energia gerada externamente, que deve ser distribuída às locomotivas até o ponto onde elas se encontrem, seja através de uma rede aérea de fios (a chamada catenária, que pode ser vista nas linhas de trens de subúrbio) ou um terceiro trilho eletrificado (como se vê atualmente no metrô de São Paulo ou Rio de Janeiro).

Além disso, por razões técnicas e econômicas, os sistemas de eletrificação das ferrovias brasileiras sempre foram baseados em corrente contínua, que permitem fácil controle da velocidade da locomotiva. Por outro lado, geralmente a energia elétrica é gerada e transmitida pelas concessionárias na forma de corrente alternada, sob altas voltagens, situação onde a perda devido à resistência dos fios é menor, reduzindo o custo da energia. Portanto, a energia fornecida às ferrovias pelas concessionárias tem de ser retificada em subestações próprias e então distribuída às locomotivas através das redes de distribuição. Essas estações de retificação são enormes, em função das grandes potências envolvidas. As mais antigas consistem de um motor elétrico (movido pela corrente alternada fornecida pela concessionária) acionando um gerador elétrico de corrente contínua, que efetivamente alimenta as locomotivas. As mais modernas, surgidas após a década de 1930, não possuem toda essa parafernália mecânica, mas sim circuitos eletrônicos de retificação a base de válvulas de mercúrio ou tiristores de silício.

Toda essa estrutura - subestações de retificação e linhas de distribuição - exige altos investimentos para sua implantação e custos significativos para sua manutenção. Num país de Terceiro Mundo, como o Brasil, os problemas sociais também cobram seu tributo: uma vez que as linhas de distribuição são feitas de cobre ou alumínio, metais relativamente caros, infelizmente é muito comum a ocorrência de roubo de cabos por quadrilhas especializadas. Esse fato tornou-se lamentavalmente muito comum a partir de meados da década de 1970. A eletrificação também apresenta problemas do ponto de vista estratégico: é muito fácil de ser sabotada por atentados terroristas ou ataques bélicos, virtualmente paralisando a ferrovia por ela servida.

No Brasil a eletricidade começou a ser pioneiramente utilizada para substituir os bondes tocados a burro, já no final do século XIX, em São Paulo e no Rio de Janeiro. Mas as vantagens da tração elétrica eram tão evidentes que em 1903 o Clube de Engenharia cogitou seu uso na mais remota ferrovia brasileira, a E.F. Madeira-Mamoré, conforme consta no livro Energia Elétrica em Questão - Debates no Clube de Engenharia, editado pela Memória da Eletricidade:

A opção pela tração elétrica [na E.F. Madeira-Mamoré] foi defendida por José Agostinho dos Reis e José Matoso Sampaio Correia, em discursos proferidos em 14 de janeiro [de 1904]. Em seu pronunciamento, Sampaio Correia apresentou carta do engenheiro Inácio Moerbeck, ressaltando as possibilidades de aproveitamento de três grandes quedas d'água (Teotônio, Girau e Bananeira) e de outras dez menores, todas situadas no rio Madeira, tendo em vista a produção de eletricidade. Na década de 1880, Moerbeck participara da comissão chefiada pelo engenheiro Carlos Alberto Morsing, responsável pelos primeiros estudos para a construção da ferrovia Madeira-Mamoré.

O debate foi encerrado em 29 de janeiro de 1904, com a aprovação, pelo Conselho Diretor, de uma moção de apoio à construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré. Endossando o ponto de vista de Castro Barbosa, a moção lembrou "a possibilidade de ser aplicada a tração elétrica proveniente da transformração da potência hidráulica das cachoeiras do Madeira".

Como se sabe, a E.F. Madeira-Mamoré foi construída, ainda que a duras penas, mas nunca foi eletrificada. É difícil imaginar o pesado sacrifício econômico e humano que deveria ser necessário para construir hidrelétricas num ponto remoto da Amazônia, no alvorecer do século XX. Além disso, poucos anos depois o fim do Ciclo da Borracha lançaria a região em profunda decadência econômica, o que reduziu severamente o volume de tráfego nessa ferrovia e inviabilizou qualquer esforço no sentido de eletrificá-la.

O interesse das ferrovias brasileiras pela eletrificação só crescia em função de seu uso bem sucedido nas estradas de ferro européias e americanas. Em 1915 o tema foi discutido no Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, novamente conforme consta no livro Energia Elétrica em Questão - Debates no Clube de Engenharia, editado pela Memória da Eletricidade:

Em 16 de janeiro, Artur de Miranda Ribeiro apresentou comunicação sobre um estudo do engenheiro francês Hippolyte Parodi, publicado pela revista Technique moderne, a respeito da evolução ferroviária em vários países. O estudo de Parodi, segundo Miranda Ribeiro, oferecia elementos suficientes para a demonstração das seguintes teses:

  1. A eletrificação das grandes linhas de estrada de ferro deve ser estudada individualmente, de acordo com os elementos fornecidos por caso isolado, tendo-se em vista não só o caráter militar e estratégico da linha, como também suas características de ordem econômica e técnica;

  2. A eletrificação das linhas na Estrada de Ferro Central do Brasil deve abranger somente as que servem os subúrbios e a serra, até a estação de Barra do Piraí;

  3. A eletrificação é sempre vantajosa para as explorações a curta e a média distâncias;

  4. O estabelecimento da tração elétrica é muito mais dispendioso que o estabelecimento de tração a vapor;

  5. Sob o ponto de vista econômico, a tração elétrica para as linhas de tráfego intenso exige grandes prazos para a exploração das concessões;

  6. A locomotiva elétrica está naturalmente indicada toda vez que se necessitar de maior velocidade e maior tonelagem rebocada;

  7. Nas linhas de forte rampa ou de montanha, o emprego de locomotiva eletrica não sofre mais contestação lógica de qualquer espécie ou natureza;

  8. Na viação urbana, suburbana e nas linhas de interesse local, a adoção de unidades simples é mais vantajosa do ponto de vista técnico-econômico;

  9. A tração elétrica é sempre recomendável nas linhas de montanha e de tráfego contínuo.

Este sistema de tração era ainda mais oportuno no caso brasileiro, dada a tradicional carência de carvão e petróleo no país. A lenha, originalmente abundante, estava ficando cada vez mais escassa, distante e cara, além de seu uso implicar numa enorme devastação ambiental. E o que era pior: seu poder calorífico é menor que o do carvão mineral, reduzindo a potência das locomotivas e provocando maiores problemas de manutenção. A energia elétrica surgia como uma alternativa genuinamente nacional, sendo gerada em represas junto às quedas d'água relativamente comuns no sudeste do país, que possui relevo acidentado.

O espetacular pioneirismo da Companhia Paulista de Estradas de Ferro fez com que a eletrificação fosse implantada no trecho Jundiaí-Campinas em 1922. Até 1940 o avanço da eletrificação ferroviária foi intenso, destacando-se aqui o esforço feito por essa mesma companhia em outros trechos de sua malha, pela E.F. Oeste de Minas (e sua sucessora, Rede Mineira de Viação) e E.F. Central do Brasil. Infelizmente a maioria das linhas ferroviárias nacionais não pôde receber a eletrificação em função de sua baixa densidade de tráfego e carência de recursos para os enormes investimentos que se faziam necessários. A Segunda Guerra Mundial também provocou enormes transtornos na eletrificação ferroviária, seja interrompendo as obras em andamento (caso da E.F. Central do Brasil) ou colocando projetos no limbo (Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro e Rede de Viação Paraná-Santa Catarina). Nesses trechos os inconvenientes da tração a vapor continuaram. A situação ficou crítica durante o conflito, quando a carência de carvão e óleo importados obrigou ao uso de todo tipo de biomassa para alimentar as locomotivas a vapor nacionais. Nessa época houve enorme devastação florestal como, por exemplo, a ocorrida na Serra do Mar para alimentar as locomotivas da recém inaugurada linha Mayrink-Santos da E.F. Sorocabana.

Entre o final da década de 1940 e início da de 1950 as perspectivas da eletrificação ferroviária no Brasil eram muito promissoras, conforme se pode observar na proposta pela eletrificação da E.F. Noroeste do Brasil que Fernando de Azevedo fez em seu livro Um Trem Corre para o Oeste:

De modo geral, as vantagens que a eletrificação poderá trazer à economia das Estradas e à do país e a sua contribuição ao melhoramento do padrão técnico e do rendimento das ferrovias são tais e de valor tão considerável que superam, se não eliminam todas as objeções aos planos de eletrificação, cuja execução progresiva estaria apenas condicionada a maiores facilidades de exploração de quedas d'água, situadas a longas distâncias das zonas de grande densidade demográfica, e ao vulto dos capitais exigidos pelas obras de aproveitamento da energia hidráulica. A eletrificação entre nós, é, pois, mais um "problema de financiamento" do que um "problema técnico". A aplicação da energia elétrica à tração, além de ser mais econômica (pois o preço da energia elétrica para a E.F. Central, por exemplo, é cinco vezes menor do que o do óleo Diesel e dez vezes menor do que o do carvão), apresenta entre outras vantagens realmente notáveis para a economia ferroviária e nacional, a de permitir um aumento de velocidade dos trens e conseqüente diminuição dos tempos de percurso; a de reduzir ou atenuar cada vez mais a situação decorrente, para a rede de viação férrea, das dificuldades, por certo maiores em tempo de guerra, de adquirir carvão e óleo Diesel em grande escala, e a de aumentar, em conseqüência, as economias em cambiais, resultantes da diminuição progressiva das compras de carvão e óleo estrangeiros. Se considerarmos ainda, de um lado, que as áreas produtoras de madeira, - o principal combustível utilizado pela E.F. Noroeste - se alongam cada vez mais dos centros de consumo, donde um extraordinário aumento de custo da lenha e, de outro, que a região percorrida pela Estrada, em Mato Grosso, e compreendida entre as Bacias do Paraná e do Paraguai, é uma das mais ricas em quedas de água, das quais 58 conhecidas e algumas como a de Urubupungá, no Rio Paraná, de enorme potencial hidráulico, será fácil compreender a necessidade imperiosa desse melhoramento e as perspectivas que se abrem à eletrificação dessa ferrovia, devoradora de reservas florestais, cujas madeiras cortadas para combustível-lenha lhe consomem todos os anos grande parte de seu rendimento.

Mas o artigo Vias Elétricas Nacionais, do historiador Sud Menucci, publicado no Jornal de São Paulo de 2 de setembro de 1947, mostrava que o caminho do sonho à realidade era penoso:

Convém, de vez em quando, dar um balanço nas realizações mais importantes de nosso setor de transportes, mesmo que seja para desapontar-nos, verificando que nós continuamos a passo de bicho-preguiça. E no setor, um dos ramos mais interessantes, será tomar ciência do que se anda fazendo no capítulo das estradas de ferro elétricas.

O Brasil precisaria multiplicar o número de seus quilômetros movidos por esse tipo de ração. Quando mais não fosse, por estas duas considerações ponderáveis: não temos abundância de bacias carboníferas ou pelo menos não temos jazidas em atividade industrial que nos permitam o emprego do produto nacional em larga escala e temos, por contrapartida, um patrimonio hidraulico dos mais notáveis, que já deveria estar utilizado em bem maior porcentagem que a registrada pelas nossas estatísticas.

Essas duas circunstâncias vêm sendo argumentos convincentes em outros países. Para citar somente um deles, a Suécia, que se encontra em situação mais ou menos parecida à nossa, adotou, de longa data, a política de eletrificação de suas vias férreas e vem-na mantendo inflexivelmente. O resultado é que dos 17 mil quilômetros de linhas, que é total de seu acervo ferroviário, mais de um terço se beneficia do melhoramento. E prosseguem outras obras para o programa que deve estar realizado até 1949.

Nossa terra também enveredou por esse mesmo caminho há mais de vinte anos, mas como o grosso de nossa rede de transprotes é de propriedade federal ou estadual, os planos sofrem os retardamentos e os colapsos periódicos que refletem as nossas aperturas financeiras. Projetos grandiosos, incontestavelmente bem feitos, capazes de aperfeiçoar nossas precárias comunicações, encalham nas "demarches" iniciais, protelam-se anos a fio, arrastam-se com uma lentidão desesperadora.

A conclusão de seu artigo tem algo de profético, sinalizando a desaceleração das obras de eletrificação ferroviária que ocorreria nos anos seguintes:

É sem dúvida, um balanço melancólico: não chegamos a possuir, para os nossos 35 mil quilômetros de vias férreas, espalhadas pelo Brasil, nem mesmo mil quilômetros de linhas eletrificadas. E o pior é que para os próximos anos, com a praxe tradicional de nossas obras públicas, não se descortina um sensível aumento nesse número.

O surgimento das locomotivas diesel-elétricas no Brasil, a partir de meados da década de 1940, empalideceu as vantagens das locomotivas elétricas. Afinal, as locomotivas diesel carregavam seu próprio combustível e gerador de eletricidade, não exigindo a dispendiosa estrutura de subestações retificadoras e linhas de distribuição que as locomotivas elétricas demandavam. Contudo, a tração elétrica ainda era vista com interesse, uma vez que as locomotivas diesel ainda não possuíam o mesmo nível de potência das locomotivas elétricas. De fato: uma G.E. V8 da CP possuía quase 4.000 HP de potência, enquanto que uma ALCO PA2 diesel-elétrica da mesma companhia tinha 2.300 HP. Além disso, uma locomotiva diesel-elétrica fornece apenas 35% da potência de uma locomotiva elétrica de igual peso. Isso garantiu a continuidade dos investimentos que foram feitos nesse setor durante a década de 1940 e 1950 na E.F. Santos a Jundiaí, Companhia Paulista de Estradas de Ferro, E.F. Central do Brasil, E.F. Sorocabana, Rede de Viação Paraná-Santa Catarina e Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro.

A relação abaixo, apresentada inicialmente no livro Estradas de Ferro Eletrificadas do Brasil, atualizada por Benício D. Guimarães e publicada na edição de maio de 1993 do boletim Centro Oeste, mostra as principais ferrovias eletrificadas que já existiram no Brasil no auge desse sistema. Cumpre notar que há uma retificação a ser feita nessa tabela: nela consta que a E.F. Sorocabana teria apenas 365 quilômetros de ferrovias eletrificadas. Isso não está correto pois, no auge de sua eletrificação, no início da década de 1970, ela dispunha de 722 quilômetros de ferrovias eletrificadas, assim distribuídos: São Paulo-Assis (linha tronco), 554 km; Iperó-Itapetininga, 59 km e São Paulo (Km.12)-Samaritá, 109 km. Isto significa que a E.F. Sorocabana teve exatamente um terço de suas linhas eletrificadas, certamente o maior percentual entre as ferrovias brasileiras de grande quilometragem.

Ordem Estrada de Ferro Extensão Total
[km]
Extensão Eletrificada
[km]
Fração Eletrificada
[%]
Ano da Eletrificação
1aE.F. Corcovado441001910
2aE.F. Morro Velho881001914
3aRamal Férreo Campineiro28281001920
4aCompanhia Paulista de Estradas de Ferro215545220,91922
5aE.F. Campos do Jordão47471001924
6aE.F. Votorantim14141001928
7aRede Mineira de Viação39893338,31929
8aE.F. Central do Brasil35911895,21937
9aE.F. Sorocabana217136516,81943
10aE.F. Santos a Jundiaí1398762,51950
11aRede de Viação Paraná-Santa Catarina2594361,41953
12aViação Férrea Federal Leste Brasileiro24691265,11954

Como se pode observar, num primeiro estágio a eletrificação só foi usada em ferrovias pequenas (1910-1920); após o grande êxito observado na eletrificação da Companhia Paulista ela foi adotada por outra grande ferrovia, a Rede Mineira de Viação, em 1929. A crise econômica observada nesse ano e que se arrastou durante a década de 1930 certamente contribuiu para a interromper a instalação desse sistema por outras ferrovias. A exceção ficou por conta da E.F. Central do Brasil, que logrou finalmente concretizar sua eletrificação, acalentada por várias décadas, entre 1933 e 1937. Há aqui, contudo, um aspecto até então inédito: a eletrificação neste caso teve como objetivo principal dotar o Rio de Janeiro de um sistema de transportes suburbanos mais rápido e eficiente, aliviando uma situação que já vinha beirando o colapso há muito tempo. A Segunda Guerra Mundial, iniciada em 1939, também atrapalhou bastante o progresso da eletrificação ferroviária no Brasil. Ela atingiu em cheio a Central do Brasil, que estava prestes a iniciar as obras de sua expansão no trecho de longo percurso entre Belém (Japeri) e Barra do Piraí, cruzando a Serra do Mar. Também a Companhia Paulista teve de aguardar a entrega de várias locomotivas elétricas V8, encomendadas no final da década de 1930, que só veio a ocorrer anos depois, em 1946 e 1947. Curiosamente, uma eletrificação decidida já sob as negras nuvens do conflito, a do trecho São Paulo-Santo Antônio (Iperó) da E.F. Sorocabana, logrou ser concretizada ao longo do período de guerra, com um mínimo de restrições. Este caso também incluiu a aquisição de trens unidades elétricos para o serviço suburbano na região de São Paulo, já em franco crescimento, confirmando a tendência já iniciada no caso da Central do Brasil.

O final da guerra e das restrições ao fornecimento de equipamentos fez deslanchar uma série de projetos de eletrificação, como os da E.F. Santos a Jundiaí, Rede de Viação Paraná-Santa Catarina e Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro. Tanto a Santos a Jundiaí como a Leste Brasileiro também investiram na aquisição de trens unidades elétricos para o serviço suburbano de São Paulo e Salvador, respectivamente. Já na Paraná-Santa Catarina o projeto de eletrificação não deu certo.

O contínuo declínio ferroviário observado no Brasil a partir de 1940 e o progresso da tração diesel elétrica reverteram a situação de progresso na eletrificação ferroviária observada até 1960. De fato, o último progresso marcante que se observou nessa área foi a extensão da tração elétrica entre Ourinhos e Assis, na E.F. Sorocabana, em 1969. Em meados da década de 1960 a Companhia Paulista de Estradas de Ferro desistia de estender sua eletrificação desde Cabrália Paulista até Tupã, na Alta Paulista, abandonando equipamentos e prédios já construídos com esse fim, neste caso em função de uma retificação que tornou o antigo trecho entre Bauru e Garça obsoleto. Por volta de 1967 a Rede de Viação Paraná-Santa Catarina suprimiu prematuramente toda sua eletrificação, que nunca chegou a ser totalmente implantada conforme o projeto original; ela operou por somente quatorze anos. Este foi o primeiro grande revés na eletrificação ferroviária brasileira.

A crise do petróleo, uma brutal elevação de preços desse combustível e a permanente ameaça de boicote de fornecimento em função dos problemas do Oriente Médio, que se estendeu entre 1973 e 1985, deu novo alento à eletrificação ferroviária, impedindo que novas supressões e sucateamentos ocorressem e que se planejasse sua retomada. Essa nova posição se refletiu, por exemplo, num trecho do artigo Os Caminhos da Eletrificação, publicado na edição de Maio/Junho de 1974 da Revista REFESA:

Apesar do fracasso na 11a Divisão Operacional - Paraná-Santa Catarina, por motivos largamente explanados pelos técnicos da ferrovia, a verdade é que a eletrificação volta à baila, forçada pela crise mundial de petróleo e motivada por estudos técnicos que a apontam como a única saída para o sistema ferroviário mundial, mormente nos países em desenvolvimento, como o Brasil, que necessitam de maior dinâmica operacional nos seus meios de transporte com o máximo de economia. Por isso, o Governo Federal, através do Ministério dos Transportes, retorma o problema da eletrificação em massa da Rede Ferroviária Federal, principalmente nos trechos mais viáveis, como a Rio-São Paulo e na futura linha Belo Horizonte-São Paulo, que eestá sendo traçada dentro da viabilidade da eletrificação.

Além disso, essa emergência energética motivou o desenvolvimento de novos projetos de eletrificação, incluindo a compra de enormes quantidades de equipamentos no exterior, para a Ferrovia do Aço e o Corredor de Exportação (trecho entre Uberaba-Ribeirão Preto-Campinas-Mayrink-Santos)das Ferrovias Paulistas S.A. - FEPASA, empresa que havia englobado todas as ferrovias paulistas sob administração estadual.

Contudo os deuses já tinham se decidido pelo fim da eletrificação. Embora o governo desejasse por um lado reduzir os gastos com petróleo importado, cujo preço subia assustadoramente, por outro não teve vontade política para realmente reduzir a ênfase rodoviarista. Os altos investimentos necessários para os novos sistemas de eletrificação não foram completamente viabilizados em função da grave recessão econômica ocorrida durante os anos 80 - a chamada década perdida -, gerando-se o pior dos mundos: o dinheiro havia sido suficiente para se comprar os equipamentos fixos e locomotivas elétricas para a Ferrovia do Aço e o Corredor de Exportação da FEPASA, mas não mais havia verba para montá-los e instalá-los... Para complicar a situação, os antigos sistemas de eletrificação estavam chegando ao fim de sua vida útil. Sua concepção tecnológica - alimentação em 3.000 volts, corrente contínua - estava obsoleta e precisava ser atualizada. Na prática, eles precisavam ser reconstruídos, o que também demandaria pesados investimentos. E os poucos recursos disponíveis continuavam sendo destinados ao setor rodoviário ou para atender outras prementes necessidades das ferrovias...

Dessa forma, apesar da situação crítica da balança de pagamentos do país, exaurida pelos altos preços decorrentes da importação de petróleo, não só os novos sistemas de eletrificação não foram implementados como começou a desativação dos já existentes. Em 1982 foi suprimida a eletrificação nas linhas de longo percurso na Viação Férrea Centro Oeste, que havia englobado as linhas eletrificadas da Rede Mineira de Viação. O material rodante dessa ferrovia foi aproveitado pela antiga Viação Férrea Federal do Leste Brasileiro, mas não por muito tempo, já que em 1987 foi decidido o fim da tração elétrica em suas linhas. Em 1984 foi a vez da E.F. Central do Brasil acabar com a eletrificação no trecho Japeri-Barra do Piraí, a última seção de suas linhas de longo percurso onde ainda rodavam locomotivas elétricas; o material rodante ainda funcional foi transferido para as linhas das antigas E.F. Santos a Jundiaí e Companhia Paulista.

A eletrificação na Ferrovia do Aço nunca foi realizada por falta de verbas, ficando os materiais intactos dentro de seus caixotes. Já o Corredor de Exportação da FEPASA avançou a passos de tartaruga: a catenária chegou a ser implantada entre Mayrink e Casa Branca, ainda que sem a total implantação das subestações retificadoras que se faziam necessárias. A montagem das locomotivas francesas compradas para o projeto foi terrivelmente perturbada pela falta de verbas e pela falência da EMAQ, empresa que as montaria aqui no Brasil. Apenas duas locomotivas desse projeto, integralmente montadas na França, chegaram a rodar nas linhas de bitola métrica da FEPASA, sob condições inadequadas para seu projeto, a partir de 1990.

Estes dois grandes malogros colocaram em xeque a eletrificação ferroviária no Brasil. Uma comparação entre a tração elétrica e a tração diesel, feita na edição de abril de 1989 da Revista Ferroviária, que noticiava a inauguração da Ferrovia do Aço, ilustra várias vantagens do uso de locomotivas elétricas, tais como:

Obviamente também há o reverso da moeda:

A verdade é que no início da década de 1990 os sistemas de eletrificação ainda operacionais nos trechos ferroviários de longo percurso brasileiros estavam muito obsoletos, talvez além do limite de sua vida útil. Era necessária uma grande modernização e atualização tecnológica para que eles voltassem a apresentar um desempenho operacional adequado. Isso requeriria um grande investimento - e, como acabou de ser visto, eles não se encontravam disponíveis, ao menos para as ferrovias. Além disso, as operadoras ferroviárias passaram a concentrar sua operação em trens de carga longos e lentos. Essa condição é justamente o oposto das condições ideais para aplicação da tração elétrica... Dessa forma, as vantagens listadas anteriormente se desvaneceram, favorecendo o uso cada vez maior das locomotivas diesel-elétricas.

Em 1995, a nova diretoria da FEPASA, empossada no início do primeiro governo Mário Covas, anunciou o fim da eletrificação em toda a ferrovia, incluindo a interrupção das obras e montagem de locomotivas previstas no contrato do Corredor de Exportação. A decisão foi revertida, mas nunca mais a eletrificação funcionou plenamente na FEPASA. Uma diagnose feita por Wilson R. Baptista Ribeiro e mais dois especialistas dessa ferrovia, publicada na revista Engenharia em julho de 1996, se aplica especificamente à eletrificação da FEPASA, mas pode ser considerado como sendo o próprio réquiem da eletrificação nas ferrovias brasileiras:

A grande oportunidade de ganho de produtividade das equipes é o aumento do tamanho dos trens. Nos fluxos onde existe um volume grande de cargas a ser transportado, o aumento do tamanho dos trens permite ganhos importantes de custos (principalmente condução), sem um comprometimento significativo no prazo de entrega das cargas e da produtividade dos vagões. (...)

O aumento do tamanho do trem traz para a tração elétrica um inconveniente importante. Para tracionar trens maiores, normalmente se aumenta a quantidade de locomotivas por trem (para realizar a força de tração necessária), aumentando-se a potência absorvida da rede aérea de forma concentrada, diminuindo o fator de carga do sistema, e conseqüentemente aumentando o custo da energia.

Para minimizar o custo com equipes de condução é necessário aumentar o tamanho dos trens e, para minimizar o custo de energia elétrica, é necessário reduzí-los. Que caminho seguir? Não há uma solução sem perdas na tração elétrica.

Na tração diesel este problema não se apresenta, permitindo a formação de trens mais longos e, sob o ponto de vista da condução, mais eficientes.

Outra desvantagem importante da tração elétrica é que em muitos casos ela não serve todas as linhas entre a origem e o destino de um determinado fluxo, exigindo troca de locomotivas e muitas vezes recomposição de trens. Essas operações exigem a presença da equipe de condução, para manobra e revista, o que diminui sua produtividade. A FEPASA está buscando aumentar a operação com trens unitários, e a tração elétrica impõe maiores dificuldades para isso.

A conclusão do trabalho é devastadora:

Recomenda-se não realizar as novas eletrificações, e abandonar a tração elétrica (no médio prazo), onde são necessários grandes investimentos na renovação e modernização dos equipamentos fixos. Recomenda-se utilizar a vida útil remanescente dos equipamentos elétricos erradicados, substituindo gradualmente os trens elétricos por trens diesel.

De fato, a morte da eletrificação na FEPASA foi definitivamente selada no início de 1999, quando a ferrovia foi privatizada e o novo controlador, Ferrovias Bandeirantes S.A. - FERROBAN, não manifestou interesse em manter esse tipo de tração, com exceção de um pequeno trecho entre São Paulo e Amador Bueno. Entre o final de 1999 e o início de 2000 toda a rede de alimentação para os trens foi retirada das linhas por iniciativa da RFFSA, proprietária dos equipamentos.

Hoje a eletrificação ferroviária só existe nos sistemas de transporte de massa, como as linhas de subúrbio ou em metrôs. Como exceção à regra, temos a linha de cremalheira na Serra do Mar da MRS Logística (antiga E.F. Santos a Jundiaí), o trecho da antiga E.F. Sorocabana entre São Paulo e Amador Bueno, e a E.F. Campos do Jordão. Esta última, na verdade, assemelha-se mais a uma linha de bondes intermunicipal, ligando Pindamonhangaba a Campos de Jordão. Provavelmente a linha ferroviária eletrificada mais longa no país é o trecho entre Raiz da Serra e Jundiaí, da antiga E.F. Santos a Jundiaí, hoje sob controle misto da MRS Logística e da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos - CPTM.

De toda forma, atualmente a eletrificação perdeu muito do apelo nacionalista e ecológico que tinha até cerca de dez anos atrás. Do ponto de vista nacionalista:

E do ponto de vista ecológico:

Como se vê, em dias de globalização e de consciência ecológica aguçada, a decisão sobre que tipo de energia usar não é fácil...


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Última Atualização: 14.01.2003

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