O único poeta vivo do Rio de Janeiro



Poemas de Marco Schneider


Engenhocas Sobre os Mortos


Até onde vão as antenas da alma?
É tão pouco, meu deus, tão pouco!
Podes me dar asilo?
Um recanto tranqüilo na tua mente?

Aonde se escondem os comandos? Um ejetor, um sofá reclinável, qualquer coisa ao alcance das mãos! Não há controle dos comandos, não há comandos, não há alcance, há apenas pilhas de animais, debatendo-se como focas gordurosas, uns contra os outros, dentes, barbatanas, pêlos, cloacas, excrementos, grunhidos e absoluta ausência de consideração por parte de prelados, banqueiros e tecnocratas fantasiados de deuses, sempre erguendo engenhocas sobre os mortos!


O Último Ornamento


O ornamento dos séculos cai, aos poucos, pesadamente. Primeiro, os místicos chifres da superstição; em seguida, as gigantescas asas da utopia. Resta, enfim, a máscara eletrônica, por detrás da qual já se entrevê a caveira descarnada da espécie, e ela grita, e grita mais quando vê o seu reflexo, mesmo que seus séculos dilacerados apareçam filtrados por fabulosas imagens e sons bastardos, progênie elétrica do comércio mercenário e sem freios da imaginação.

Espelhos, tragam-lhe espelhos, ou lagos, para que num grito derradeiro a nossa queridinha, nossa doce caveira arranque o último dos ornamentos!

Que a sua carcaça nua, se ainda puder, refloresça, e na falta de asas, se ponha a saltar, andar, rolar, espernear ao menos, para que não apodreça!


Forno de Padaria

Que nova mentira inventar?
Em qual armadilha cair?
Em que velho sonho mirar?
Em qual verde mar sucumbir?

Que forma de amor deformar?
Que grande amizade trair?
Que franca atenção esnobar?
Que baixo instinto assumir?

Com todos fui massa de pão
Num forno de padaria
Que assava qualquer coração
E as cascas endurecia.

Legião é o nome do cão
É o que o santo texto mugia.
O nome do eu, multidão
Segundo Whalt Whitman queria.

Aí é que surge a questão
Não há quem a julgue vadia:
Como existir solidão
Num forno de padaria?

Não tendo resposta mais linda
A tenho veraz, mesmo bruta:
Se há um padeiro ainda
Seu nome é Filho da Puta.

Sei que a lei vive da transgressão
Como a Deus legitima a blasfêmia
Legítimo é meu coração - mesmo assado
No espeto da farsa boêmia.

Batendo os tambores da sorte
Atrás de uma boa batida
Se avizinhando da morte
Querendo querer mais a vida.


Meu Coração


Meu coração de repente acelera como quem corre para salvar a pele, fugindo de tira, de onça ou cão brabo - ou como quem atira no tira, caça a onça prá trepar com ela e rouba a comida do cão -, atrás de bebida prá refrescar a alma e alterar a trama.

Meu coração de repente acelera como tambor de escola de samba de hoje, para ACORDAR os sentidos, para que os membros se animem e dancem, para que o cérebro entorpeça de excitação e prá bombear mais sangue pro caralho.

Meu coração de repente acelera pela lembrança da chifrada, presente daquela vaca, e pelo desejo de vingança, de matança, de comer picanha para tirar da boca esse gosto de morte, e por medo de doença e decadência, e por nostalgia da infância.

Meu coração de repente acelera de rancor e desencanto, de náusea, úlcera, súplica, ética, lógica, cólera, lápide, vácuo, século, década, sábado, pânico.

Meu coração de repente acelera sem nexo, à toa, de otário.
Meu coração reivindica um aumento inadiável no seu salário.
Meu coração ameaça entrar em greve.
E diz que será em breve.
Meu coração é o pano de chão e o amor é o rastro daquela cadela.
Meu coração se emporcalha de amor.
Meu coração é uma besta.
Antes fosse de pedra.
Ou de outra época.
Ou de outra donzela.


Fragmento



Tudo caótico, como sempre.
Caótico e decepcionante.

Mas o furor, a velocidade, os risos e as frases idiotas que surgiam como se nos espremêssemos o tempo todo para chamar a atenção e agradar... essa atmosfera poluída de embriaguez e espírito de porco... ainda davam o alento necessário para que continuássemos... continuássemos à espera de respostas dignas, que deveriam brotar da terra, das mãos e das bocas!... respostas em beijos, dinheiro, música, comida, política, afeto, para tudo que pediam, através dos signos frenéticos como uma metralhadora giratória, nossos anseios febris!... adiante, enquanto o fantasma da lassidão parece distraído, nosso carcereiro, ele cochila e nos esgueiramos pelas frestas e estendemos nossas quinhentas mãos, como uma confraria de mendigos bêbados e excitados!

O Rio de Janeiro está diferente. Cidade, mais do que nunca, à flor da pele!... nervos, estilhaços, hematomas!... o despropósito charmoso e ilusório que é a zona sul cai na real!... se o que dizem é verdade, o progresso, o mercado, o talento, ora, o meu não chega nem pro aluguel! seremos tão burros assim? Tantos de nós?

Em São Paulo, a chacina do presídio!... O paroxismo da polícia... e manifestações de aprovação e defesa do crime da ordem! Em Diadema, a favela Naval, no Rio, Cidade de Deus, o achaque ao cidadão. e mais Candelária e Vigário Geral. Não nos esquecemos... Aqui vivemos. Aqui pensamos. Mas deveríamos fazê-lo com mais freqüência. E deveríamos ser ouvidos! Parece que desistimos, mas não, nunca se desiste. Apenas fica-se menos forte, tem-se menos inspiração, boa-fé, vontade!... E quando a pança tá cheia, isso aqui é o imenso terreiro de uma só entidade: o espírito de porco! O Sr. Cid Moreira deveria ter sua cara de ovo podre impressa nas cédulas de dinheiro. Ali, ele ficaria calado, e todos saberiam o quanto de comida ou de drogas ele vale. Cada macaco no seu galho.

O céu também se expande por aqui. Conquista livrarias e contas bancárias. E velho isso, velho e verdadeiro: Miséria e desespero tornam a terra mais fértil para o florescimento desses venenosos frutos celestes. Ahá - os frutos celestes! O que vem de cima é bom ! O céu e o lixo do hemisfério norte. Chove merda!

Felizmente não acreditamos em kharma!... felizmente não nos resignamos!... ao contrário do que se diz, temos a revolta nas veias... só não sabemos o que fazer com ela!... somos diversos, e a inclemência do sol e de uma dinastia de tecnocratas nos mutila idéias e ações!... Queremos dinheiro. Não temos dinheiro, nem boas intenções. Pânico, é tudo!


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