Não havia qualquer evidência de que a tormenta cessaria tão cedo e faltavam poucos quilômetros para casa. A estrada estava completamente deserta e não deveria haver problema algum, pensei. Mas eu estava errado nos dois casos.
Num momento, havia apenas a estrada, a chuva, e a escuridão. E de repente ela estava lá: uma jovem num vestido de noite branco, braços estendidos à frente, uma expressão apavorada tomando seu rosto enquanto eu dirigia a seu encontro. Em vão, pisei nos freios, enquanto virava o volante desesperadamente para a direita. Um grito foi abafado por um trovão, e eu não poderia dizer se tinha sido Sally ou a garota na estrada. Eu não sabia se tinha conseguido desviar, pois minha manobra tinha me colocado para fora da estrada e eu tentava recuperar o controle do carro, o qual deslizava perigosamente na lama. Era como se uma mão invisível o estivesse empurrando para uma rota fatal. O grito seguinte, eu sabia que tinha vindo de Sally. E ouvi meu próprio, quando o dela foi interrompido abruptamente por um tremendo impacto. Então, rápido como tinha começado, aquilo acabou. A coisa toda tinha acontecido em poucos segundos.
Estava escuro. Mais escuro que antes. As luzes tinham-se apagado. A chuva fustigava meu rosto através do pára-brisas quebrado. À minha direita, um braço ensangüentado permaneceu imóvel, projetando-se do meio de um monte de metal retorcido. Busquei por sinais de vida. Nada. Segurei-lhe a mão e senti minhas lágrimas se misturando à chuva.
Um relâmpago delineou a sombra imensa de seu assassino. Estava ali, ereto diante de nós, imponente, impiedoso, rindo-se de minha dor. Durante um longo minuto, meu olhar fixou-se no velho carvalho. Eu poderia jurar que ele me olhava de volta com desdém.
Um relâmpago brilhou novamente. Vi uma velha casa de madeira à distância e, não tinha certeza, alguém correndo por entre as árvores. Felizmente, o próximo relâmpago veio logo. Por um breve momento, eu a vi de novo. Era ela! Era a garota que tinha causado a tragédia. Senti minha ira crescendo e arranquei o cinto de segurança. Com algum esforço, abri a porta e saí. Meus olhos procuraram por ela. Não puderam encontrá-la no escuro, e esperei por novo relâmpago. Desta vez, ela olhou para trás e pensei que me tivesse visto. Mas virou-se de novo e ainda pude vê-la passar pelos portões da velha casa. Segui-a. Pensamentos confusos percorriam minha mente enquanto avançava pelo mato. Poderia realmente culpá-la pelo acidente? Provavelmente, ela estava tão perturbada quanto eu.
Logo passei entre os portões balouçantes e alcancei os degraus da entrada. Hesitei, sem saber exatamente por quê. Tive um pressentimento estranho em relação à casa. Quis correr de volta ao carro e estava prestes a fazê-lo, mas… havia a garota. Estava curioso. Não, era mais do que curiosidade. Eu tinha de encontrá-la. Precisava falar com ela.
Tentei girar a maçaneta. A porta se abriu. Minha inquietante sensação sobre a casa cresceu, como se uma onda de maldade tivesse-me atingido. A freqüência dos relâmpagos tinha subitamente aumentado, como se estivessem sendo comandados por alguma entidade sobrenatural para iluminar a grande sala de estar.
A garota estava lá, sentada num sofá empoeirado, escondendo o rosto entre as mãos. Quando entrei, deixou as mãos descerem frouxamente e levantou olhos de um azul profundo para mim. Fechei a porta devagar. Através das janelas, vindo de várias direções e distâncias, os relâmpagos persistiam em sua sempre cambiante brincadeira com as sombras. No rosto da garota, não vi surpresa, medo, tristeza ou qualquer outra coisa. Andei até uma poltrona a sua frente e sentei. Olhamos um para o outro e ela esperou que eu falasse.
—O que estava fazendo lá fora, na tempestade?—perguntei, após alguns segundos angustiantes.
—Tentando pegar uma carona—disse ela, com um sorriso leve, tímido, baixando a cabeça.
Esperei um pouco, mas, como ela não disse mais nada, falei:
—Está vestida para uma festa…
—É—confirmou ela, olhando-me através do cabelo molhado.—Mas parece que ele achou alguém mais interessante que eu na festa. Peguei o carro e tudo o que eu queria era estar bem longe dele e de toda aquela gente hipócrita. E adivinhe só! Fiquei sem gasolina bem no meio da chuva.
Suspirou, e começou:
—E quanto a você, Sr. …?
—Barker—completei.—Stephen Barker.
Ela me estendeu a mão, que aceitei com certa hesitação.
—Jennifer Livingstone. Chame-me de Jenny. Posso lhe chamar de Stephen?
Comportava-se como se nada tivesse acontecido. Não pude retribuir seu sorriso e disse, meio irritado:
—Sally está morta. Minha namorada está morta. Pode entender isto?
Ela pareceu entender. Seu rosto mudou para uma expressão de surpresa e tristeza.
—Eu não sabia…—disse entre lábios trêmulos.—Então, era você, na estrada. O acidente! Eu o causei. Eu… Eu a matei.
A última frase foi pouco mais que um sussurro. Seus olhos umedeceram, enquanto repetia:
—Eu a matei.
Sentindo-me mal, fui sentar a seu lado, no sofá. Segurando suavemente seus ombros, disse, embaraçado:
—Não. Não se culpe. Foi um acidente. Você…
Ela deixou a cabeça cair contra meu peito e começou a chorar. Abracei-a e ela foi-se acalmando gradativamente. Sua pele delicada, o cabelo louro escorrendo entre meus dedos, seu corpo quente contra o meu, fizeram-me sentir algo que não devia. Envergonhado, empurrei-a para o lado e caminhei até as grandes janelas.
—Você a amava?—perguntou Jennifer, após alguns minutos de silêncio, de pé atrás de mim.
—Ela era tão doce—disse eu, meus olhos ainda perdidos na chuva lá fora—Tão… alegre. Se eu não tivesse…
—Fui um acidente—interrompeu-me Jennifer.—Você mesmo disse, lembra?
Voltei-me para encará-la. Ela me olhou com olhos sedutores. Temi que ela tivesse notado o que estava provocando dentro de mim. Lutei contra aquele sentimento, mas ele persistiu. Era mais que uma forte atração. Era algo que eu nunca havia sentido antes e quase não podia controlar. Aquilo me assustava.
Ela quebrou o silêncio:
—Está frio aqui. Vamos acabar pegando uma pneumonia com estas roupas molhadas.
Eu realmente não sabia se havia alguma segunda intenção atrás daquelas palavras. Dei uma olhada na lareira, que continha alguma lenha. Embora eu tivesse parado de fumar há mais de um ano então, ainda mantinha comigo meu isqueiro de prata. Contudo, a madeira estava úmida, e todas as minhas tentativas falharam.
Jennifer já havia tirado as longas luvas, e de seu sorriso deduzi que tinha notado minha ansiedade. Sally veio a minha mente como uma imagem castigadora. Houve um trovão tremendo, que sacudiu os vidros das janelas e assustou Jennifer, que deu um passo para trás e olhou em torno com uma expressão amedrontada. Tive de sorrir.
—Não ria de mim!—disse ela, também sorrindo, jogando uma almofada em mim. Então, séria, afirmou:
—Esta casa… Ela me assusta.
—Acho que ninguém mora aqui há décadas—disse eu.
—É, também acho—concordou ela, os olhos inspecionando o teto.—Mas eu não gosto deste lugar.
Eu sabia do quê ela estava falando. Senti um forte desejo de sair correndo imediatamente, mas a razão prevaleceu. A tempestade estava ficando ainda mais forte.
—Talvez devêssemos descansar—sugeri.—Vai ser uma noite longa. Deve haver quartos no segundo andar.
Logo depois de ter dito isso, arrependi-me. Jennifer aceitou minha sugestão e senti-me ainda mais perturbado enquanto subíamos vagarosamente as escadas e os degraus rangiam sob nossos pés. Ele me deu a mão. Como eu, pensei, estava certamente engajada numa luta interna para sobrepujar suas superstições.
Chegamos a um corredor e experimentei a primeira porta à direita. Um quarto grande com uma cama de casal próximo à janela foi revelado por um relâmpago. As teias de aranha não me fizeram sentir bem, mas duvidava que pudesse encontrar um só canto livre delas em toda a casa.
—Você pode ficar neste—disse eu, usando meu isqueiro numa vela próxima, e Jennifer já tinha entrado no quarto.—Vou estar no quarto ao lado.
Um novo relâmpago foi imediatamente seguido pelo rugir de um trovão, e ela veio até mim, seus braços apertando meu corpo tão forte quanto podiam.
—Não, por favor—choramingou ela.—Fique comigo. Estou com medo.
—Tudo bem—disse-lhe baixinho, suavemente.
Numa inesperada demonstração de gratidão, ela se pendurou em meu pescoço e beijou-me com fervor. O que senti não poderia—e não precisava—ser descrito. Entretanto, no momento em que seus lábios deixaram os meus, fui tomado de assalto pela terrível imagem de Sally jazendo no carro, ensangüentada, imóvel… Jennifer notou minha reação.
—Você não gostou?—perguntou, entre surpresa e desapontamento.
—Jenny, não podemos…—comecei, e ela pareceu entender.
—Você não respondeu: você a amava?
—Isso não faz a menor diferença.
—A amava?
—Estávamos juntos uma hora atrás. Eu simplesmente não posso…
—Amava?
—Não, mas…
Seus braços ainda estavam em volta de meu pescoço. Tentei resistir, mas minha consciência, meus princípios, minha força de vontade, estavam prestes a desmoronar diante de algo muito mais forte.
—Eu prometi a ela que nunca trairia sua confiança—disse como meu último esforço.
—Ela está morta—disse Jennifer, baixo mas enfaticamente.
Eu não sabia o que pensar dela. Tinha parecido chocada à primeira vez que lhe falei sobre Sally, e há um momento estava chorando como uma garotinha assustada. Mas, de repente, tornara-se calma, firme, algo insensível.
—Nós estamos vivos—continuou ela.—E pertencemos um ao outro. Como sempre foi. Desde o primeiro instante em que o vi, eu soube. Não podemos mudar isto.
Suas palavras ficaram ecoando em minha cabeça enquanto me deixou por um momento para fechar a porta. Ela vencera, e sabia disso. Foi devagar até a cama, sentou nela e começou a acariciar a coberta. Uma nuvem de pó elevou-se e a fez parar, sorrindo com seu próprio erro.
Aproximei-me e sentei a seu lado, enquanto ela me voltava as costas, de modo que eu pudesse baixar o zíper do vestido. Ao mesmo tempo, totalmente vencido, comecei a beijar-lhe o pescoço. Ela fechou os olhos, moveu a cabeça para trás e um doce sussurro veio de seus lábios:
—Ama-me.
Um raio caiu perto, causando um leve tremor em seu corpo. Outros se seguiram, com freqüência crescente, enquanto nossas roupas eram jogadas ao chão.
Alguns minutos depois, quando a tempestade parecia estar no clímax, tive a maior e mais deliciosa surpresa de toda a minha vida: Jenny era virgem.
Minha mão procurou por seu corpo nu por toda a cama, mas não o encontrou. Vagarosamente abri os olhos. A tempestade havia passado. O sol estava alto no céu e um vento suave entrava por uma fresta na janela, cuja tranca se partira.
Jennifer não estava em lugar algum no quarto.
Minha mente foi invadida pela lembrança daquela noite, enquanto me vestia. Fora tudo maravilhoso com Jenny, como nunca o tinha sido. Mas havia Sally. Como eu pude ter feito aquilo na noite em que ela morrera? Agora que um novo dia estava nascendo, a culpa me atingiu como um martelo batendo sem parar em minha cabeça. No entanto, não me arrependi de nada. Afinal de contas, havia Jenny. Aquilo era macabro. Havia sido a minha melhor noite, e também a pior.
Saí do quarto e desci as escadas. Jennifer também não estava na sala. Eu estava prestes a ir até a porta da frente quando meus olhos caíram casualmente numa das outras portas, meio-aberta. Não estava fechada, na noite passada?
Fui até lá e detive-me diante da escada, que descia. Pouca luz penetrava lá embaixo, mas pude distinguir algumas tochas nas paredes laterais e alguma coisa como uma mesa, no centro. Chamei por Jenny enquanto descia, mas ela não estava lá. O porão, contudo, era de algum modo interessante, e usei meu isqueiro para acender as tochas. Comecei pela parede à esquerda. O ambiente foi-se revelando a meus olhos. Havia um nicho na parede, entre a segunda e terceira tochas. Uma pilha de crânios humanos o preenchia. Alguns tinham rolado para fora e quase pisei neles. Passei cuidadosamente até as duas tochas seguintes.
Fiquei impressionado com a grande pintura na parede dos fundos. Mostrava uma estranha figura sentada num trono dourado. Tinha pernas peludas, com cascos no lugar de pés, e um torso humano enorme, musculoso, com um pentáculo de fogo ardendo no peito nu. Olhos de réptil irradiavam maldade, incrustados numa cabeça de bode.
Voltei-me para o que havia pensado ser uma mesa. De fato, tinha uma base esculpida com inúmeros anões deformados segurando uma longa laje de mármore. Manchas marrom-avermelhadas concentravam-se no centro da laje, ainda que vários filetes seguissem para as bordas e abaixo. Meu coração começou a bater mais rápido, embora eu soubesse não haver razão para medo. O mais terrível que pudesse ter sido, o que quer que tivesse acontecido naquela casa pertencia ao passado. A poeira e as teias estavam ali para provar.
A parede da direita também tinha um nicho. Acendi mais duas tochas, parei diante dele e estiquei o braço para alcançar a tocha do outro lado. Aquele nicho não continha nenhum crânio. Em vez disso, havia uma única prateleira com um grande livro, e uma adaga sobre ele. Havia uma substância seca avermelhada na lâmina. Não era difícil imaginar o que seria. A parede atrás da prateleira tinha um horrível rosto com chifres esculpido. Os olhos eram duas gemas azuis, mas não ousei pegá-las.
Removi a adaga e uma camada de pó de cima do livro. Algumas palavras tinham sido escritas na capa de couro, em alguma língua antiga, usando runas. Abri o livro e vi, sob a luz trêmula, uma lista de nomes, sete por página, escritos em tinta vermelha.
Tinta?
Estavam escritos numa caligrafia que parecia gótica, mas ainda era nosso alfabeto. Podia lê-los. Na maioria, eram nomes americanos comuns—nomes de mulheres, todos eles. Continuei lendo, procurando por alguma coisa que sabia não poder estar ali. Mas, depois de umas poucas páginas, eu achei. Eu li de novo, e de novo, várias vezes, meu coração numa batida louca, enquanto minha mente racional tentava convencer o resto de meu ser de que aquilo não era mais do que uma coincidência estúpida. Esforço vão! O nome estava lá. O nome dela!
Li uma vez mais, ouvindo minha própria voz: "Jennifer Livingstone."
Com alguma dificuldade, coloquei meus pensamentos em ordem. Ela tinha planejado tudo, desde o início. Provavelmente fora responsável pelo "acidente" e pela morte de Sally. Assim sendo, Jenny tinha matado apenas para obter algo que jamais encontrara em sua curta vida, brutalmente tirada num ritual cruel: uma simples noite de amor.
Arte colorida de Michael Whelan
Arte em P&B de G. S. Reis
Música de Jean-Michel Jarre
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