A Espada de Deus

G. S. Reis

A Espada de Deus

O vento fustigava-lhe o rosto cansado e agitava-lhe os cabelos desgrenhados e a surrada capa sépia, que apertava em torno de si enquanto manquejava pela rua escura e fétida. Parou à frente da construção imponente, de paredes de mármore escuro e ornamentada com afrescos de ouro e jade, cujo brilho, no entanto, estava bastante esmaecido sob o manto de nuvens cinzentas que cobria o céu. Os olhos injetados de sangue contemplaram a ainda magnífica catedral, enquanto o corpo se apoiava numa bengala de ferro, recoberta de entalhes minuciosos que contrastavam com a simplicidade de suas roupas.

Com um suspiro de resignação, subiu forçosamente os largos degraus, puxando o capuz por sobre a cabeça, ao sentir os primeiros pingos da chuva sulfurosa. Além do pórtico, pesadas portas de madeira enfumaçada bloqueavam o acesso à nave. Esmurrou-as, primeiro de leve, depois furiosamente. Estava quase desistindo quando ouviu um ranger de trincos e um rosto alvo e suave deixou-se entrever numa pequena fresta.

—Já encerramos os trabalhos—disse uma voz jovem, porém firme.

—Pensei que a Casa do Senhor estivesse sempre aberta às almas aflitas—retrucou o visitante.

—O que deseja?—perguntou o rapaz, sem se afastar.

—Preciso me confessar—respondeu o estranho, com firmeza.

—O sacerdote já foi embora—disse o jovem, fazendo menção de fechar a porta.

—Não. Devo ver o Mestre.

—Você é louco? Por que Ele o receberia?

—Por que devo me confessar com Ele.

—Uma confissão com o Mestre não custa barato.

—Sei quanto custa. E posso pagar.

Meteu a mão num bolso e retirou alguns discos de prata, com incrustações de rubis e esmeraldas. O jovem olhou-os com disfarçada ambição.

—Ei, por que não volta amanhã e fala com o sacerdote de plantão?

—Meu pecado só pode ser confessado ao Mestre.

O rapaz torceu o nariz.

—Se o seu pecado é tão grave que deva ser confessado ao Mestre, é mesmo um louco. Será açoitado em praça pública e apodrecerá nas câmaras do pavor, onde os vermes o comerão vivo lentamente.

—Talvez eu consiga a absolvição.

O rapaz deu uma risada amarga.

—Deixe-me entrar—tornou o visitante, deixando um dos discos menores escorregar para a mão do outro. O rapaz pareceu indeciso por um momento, mas guardou o dinheiro, olhando cuidadosamente em torno.

—Não posso garantir nada, mas entre. Verei se ainda está acordado.

Deixou-o passar e apontou uma bandeja segurada por um anjo sem rosto.

—Deposite ali o pagamento. São nove mil.

O dinheiro tilintou na bandeja, ecoando pela nave iluminada pela luz tênue azulada de dezenas de velas elétricas.

—Eu sei—disse o homem.—É quase tudo o que tenho.

—A quem devo anunciar, se é que isso faz diferença?

—Gabriel.

Mal o rapaz se retirou, dois vultos moveram-se nas sombras.

—Fique onde está!—ordenou um deles.

—O quê?!

—Detectamos a emanação de resíduos energéticos. O que traz aí? Uma arma?

Gabriel deu uma risada.

—Uma arma na Casa do Senhor? Não, não, claro que não!

Fez menção de tirar algo de sob o manto, mas imediatamente ouviu o engatilhar de um radiador fásico. O braço do desconhecido avançou, mas o rosto permanecia na penumbra.

—Calma, calma!—tornou Gabriel. Tirou a capa e o capuz muito lentamente e pegou, com muito cuidado, um recipiente cilíndrico que estendeu ao guarda.

—É só a minha marmita. Um pequeno reator para manter a comida quente, sabe? Quer provar?

Apertou um botão e a tampa se abriu em espiral, revelando uma mistura esverdeada de mau cheiro. O guarda recuou um passo.

—É sopa—disse Gabriel.—Boa sopa!

—Guarde sua comida—disse o outro vulto, mais atrás, e voltando-se para o companheiro:—Deixe-o passar.

Gabriel agradeceu e caminhou timidamente entre os bancos, olhando os vitrais, foscos na noite chuvosa. O bater da bengala ecoava e quebrava o silêncio. Virou-se ao chegar ao altar, e não viu ninguém. Mas sentiu os olhares vindos das sombras.

"Eu sei que estão aí", murmurou para si. "E não são apenas dois. Não podem enganar o velho caçador."

De repente, uma porta abriu-se atrás do altar, deixando entrar uma luz esverdeada. Através da luz, Gabriel, estreitando os olhos, pôde distinguir a vaga figura do Mestre, que entrava imponente.

—Minha luz o ofusca, pobre pecador?—perguntou uma voz grave e bela.

—Sim, Meu Senhor—admitiu Gabriel, humildemente, caindo de joelhos.

—Siga-me!—ordenou o Mestre, levando-o por uma porta entre duas colunas de obsidiana a um cubículo escuro, onde a única mobília era uma cadeira de assento estofado e ricamente entalhada.

Gabriel fechou a porta atrás de si e ajoelhou-se ao lado da cadeira, agora ocupada pelo Mestre, cuja luz, que o envolvia como uma roupa, era a única a iluminar o recinto, à exceção ocasional de um raio que iluminava o vitral, revelando o desenho de anjos com espadas de fogo a punir pecadores.

—Então, meu filho, qual é o seu pecado?—perguntou o Mestre, serenamente.

Gabriel hesitou em responder:

—O pior dos pecados: matar, Meu Senhor.

—E quem você matou?—quis saber o Mestre, sem se abalar.

—Ninguém, ó Divindade... Ainda.

—Mas tem o desejo de matar?

—Não, não tenho. Mas é algo que... devo fazer. Há alguém que devo matar. Ou talvez não. Quer dizer, é alguém que deve morrer, mas... será que a cabe a nós, simples servos de Deus, julgar e executar?

—Deixe-me julgar então.

—Sempre acreditei que todos os homens tivessem direito à vida.

—Onde ouviu tamanha tolice?

A voz de Gabriel saiu incomumente baixa:

—Nas Terras Verdes. Vivi alguns meses lá. Isso foi há muitos anos. Mas havia aquele homem... Suas palavras... Ficam ecoando em minha cabeça. Não me deixam em paz! Preciso fazer algo... Ajude-me!

—Quem é este homem?

—Um líder local. Há outros como ele.

—As Terras Verdes são terras bárbaras. Estão repletas de falsos profetas que almejam apenas incutir sentimentos de ódio contra Deus e tudo o que é sagrado. Não passam de uma praga a ser exterminada.

—Então há homens que devem morrer?

—Somente os que seguem os desígnios do Senhor e da Santa Igreja merecem viver. Os blasfemadores, os hereges, que não só estão em pecado, mas que também, com palavras falsas, levam outros ao pecado... Esses devem morrer.

—Não entendo. Não há perdão?

—O perdão é para aqueles que seguem os ensinamentos sagrados. Os homens de que você fala foram inseminados com a semente de Lúcifer. É a ele que devem prestar conta os falsos Messias.

—Mas temos o direito de matar?

—Se a morte de um homem for a salvação de muitos, faça de si mesmo a Espada de Deus e, em Sua glória, beba o sangue do inimigo e conquiste o Reino dos Céus.

Gabriel parecia profundamente aliviado:

—Oh! Obrigado, Mestre! Obrigado por tirar esse peso de minha consciência! Agora sei o que devo fazer. Finalmente encontrarei a Paz.

Levantou-se trêmulo, lágrimas de alegria refletindo a luz que emanava do Mestre. Gabriel teve a impressão de ver um sorriso complacente, mas era difícil ter certeza.

—Serei a Espada de Deus!—gritou, erguendo a bengala.

Nesse momento, o polegar escorregou para um botão oculto no cabo e a extremidade inferior se abriu em oito hastes que se dobraram num ângulo de noventa graus. Um mecanismo interno estalou e zumbiu, e de repente a luz verde do Mestre pareceu fluir para a bengala, soltando faíscas e chiando, enquanto ele tremia impotente em seu trono. Por um segundo, Gabriel viu-lhe o rosto enrugado, o queixo caído e os olhos arregalados em estupefação de um velho indefeso. Gabriel girou a bengala, encostando a outra ponta ao peito do Mestre e ao mesmo tempo deslizando o polegar para outro botão. Uma lâmina de aço projetou-se direto através do coração, atravessando o encosto da cadeira. O sangue esguichou no rosto de Gabriel e a lâmina se dividiu em cinco, rasgando músculos e partindo costelas.

Gabriel ouviu vozes e passos apressados se aproximando. A vítima não tivera tempo de gritar, mas talvez a anulação do campo de força tivesse disparado um alarme. Deixando a bengala para trás, o assassino pulou contra o vitral, cortando-se com os estilhaços e caindo de uma altura de dois metros sobre pernas muito firmes que o ajudaram a desaparecer depressa na escuridão chuvosa.


Música de Enya

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