Arte de Joseph Michael Linsner |
Kraderan—Demônio. Morto há séculos, teve o corpo reconstruído e é revivido pelos imperadores feiticeiros.
Altarin—Princesa guerreira que luta contra o império dos feiticeiros.
Taigor—Guerreiro; aliado e amante de Altarin.
Os sete imperadores feiticeiros:
Myrka—Aia do palácio de Planabás.
Gyanar—Um mago que surge num momento decisivo.
Capitão e 2 soldados—Fiéis servos do Império.
Escrava—Uma das dançarinas dos imperadores feiticeiros.
Dantor—Príncipe de seis anos de idade e alma guerreira.
Num mundo sem nome, bárbaro e primitivo, gerações de imperadores feiticeiros, sempre em número de sete, têm governado vastas terras durante quase setecentos anos. Mestres em diferentes ramos da magia, desejam expandir ainda mais seu poder.
A partir de um pedaço de osso, recriam um ser de uma raça antiga e cruel, que fora combatida e exterminada pelos homens: os demônios. Mas o corpo precisava de uma alma para viver. As almas torturadas dos escravos e dos covardes voluntários das fileiras do Caos fracassaram em atravessar os horrores dos caminhos astrais que levam a tão abominável criatura. Quando um nobre e bravo guerreiro é capturado—após uma grande batalha e a derrota dos exércitos libertários reunidos por uma velha profecia que anunciava o fim do Império—o demônio finalmente encontra a alma que lhe dá a vida. Renasce Kraderan.
Sem lembranças da vida anterior e com o corpo impregnado pelo Mal, ele infunde terror entre os homens, propagando a morte e a desgraça. Mas não consegue fazer mal àquela a quem amara, e chega a defendê-la, matando seus próprios subordinados, embora não entenda o porquê.
Perturbado, foge e encontra Gyanar, um misterioso mago...
À beira-mar. Kraderan na borda de um penhasco, olhando o mar abaixo. Som de ondas e gaivotas. Gyanar aproxima-se sem ser notado.
Gyanar: Um salto arriscado, se é o que tem em mente.
Kraderan (encarando-o, surpreso): Quem é você, reles humano, que ousa interpelar Kraderan, general demônio do Império?
Gyanar: Mas, se espera que o grandioso oceano, lá embaixo, seja benevolente e dê alívio a suas angústias com a dúbia benção da morte, o risco de fracassar pode ser maior. Seu corpo vil, construído da matéria abjeta do Caos avassalador, é bem capaz de resistir ao baque, e ainda permanecer incólume ao ser usado pela fúria das ondas como um aríete a destroçar o rochedo.
Kraderan (avançando para Gyanar): Sim, talvez tenha razão. Ver a água enrubescer com seu sangue e sua petulância em pedaços à deriva me podem dar mais prazer.
Gyanar: É provável. Mas um prazer fugaz, que em nada reduziria a angústia.
Kraderan: É a segunda vez que fala em angústia. Sou Kraderan, um demônio! Sou imune a esses tolos sentimentos humanos.
Gyanar: Não é a mim que deve convencer, mas a si mesmo. Se o conseguir, então nada terei a fazer aqui, e certamente me tornarei mais uma vítima anônima de sua cruel insanidade.
Kraderan: Não. Não anônima. Um homem corajoso ou louco o bastante para me desafiar e me chamar insano merece que ao menos eu saiba seu nome.
Gyanar: Gyanar é meu nome, e mago, meu ofício.
Kraderan: Um mago! Então é isso! Deseja saber como melhor servir ao Império… Para talvez, no futuro, como faz pressupor sua arrogância, tornar-se um dos sete imperadores feiticeiros de Turamork.
Gyanar: Minha magia não está a serviço de Turamork. Pelo contrário.
Kraderan: Então é mais louco do que eu supunha. Sei que há feiticeiros brancos, conspiradores que se escondem como coelhos em suas tocas. Sabem que não podem enfrentar diretamente o Império. Mas você… é diferente. Aparece para me desafiar. Acha que pode… me vencer?
Gyanar: Não vim para o desafiar, ou vencer. Vim para ajudá-lo.
Kraderan: Ajudar-me?! Por que acha que preciso da ajuda de um inimigo? Ou de quem quer que seja?
Gyanar: Não sou seu inimigo. E, se eu estiver certo, meu inimigo em breve será o seu. Mas deve confiar em mim.
Kraderan: Diz que me tornarei inimigo de Turamork? Como espera que eu confie…? E se estiver errado?
Gyanar: Então, você me matará. (Pausa.) Diga-me, Kraderan, por que não conseguiu matar a princesa de Planabás?
Kraderan: Eu o teria feito, se quisesse. Ela estava em minhas mãos… Tão indefesa, tão frágil…
Gyanar (com energia): E por que não quis, Kraderan? Por que não a tratou como a tantas outras mulheres indefesas, que gritaram e se debateram em vão sob seu corpo?
Kraderan: Eu… Eu não pude! (Perplexidade e fúria.)
Gyanar: Esta é a razão de sua angústia, não é, Kraderan?
Kraderan: O que você sabe sobre isso? Conte-me, velho, ou morrerá agora!
Gyanar: Sei tanto quanto você sabe. E saberei tanto quanto você saberá, quando terminar meu trabalho. O que tenho por ora são suposições. Eu o vinha seguindo à distância, já há algumas estações, esperando pelo momento certo, pelo momento em que uma porta fosse aberta.
Kraderan: Que porta? Eu não entendo.
Gyanar: Uma porta para seu passado esquecido. Eu não poderia abri-la, nem você. Só a Princesa Altarin tinha a chave, sem que ninguém—nem ela mesma—o soubesse. Mas, mesmo assim, ela destrancou a porta. E a deixou entreaberta. Você entreviu o que havia do outro lado, e isto o impediu de maltratá-la. Até o fez protegê-la, e matar aliados.
Kraderan: Como sabe disso? Não estava lá.
Gyanar (sorrindo): Um feiticeiro tem muitos olhos, você deve saber.
Kraderan: Ótimo! Assim não sentirá falta dos dois que vou arrancar.
Gyanar (sério): Eu lhos darei com prazer, se ainda os quiser, depois que eu fizer minha parte.
Kraderan: Essa coisa… o que havia do outro lado… me fez agir de modo estranho, causa-me angústia, admito. Se é tão terrível, e você pode destruí-la, faça-o. Farei com que quaisquer crimes que porventura tenha cometido contra o Império sejam perdoados, e seu nome será respeitado em Turamork.
Gyanar: Não posso alterar seu passado, ou de ninguém, e tampouco destruí-lo. Mas posso cerrar a porta, ou escancará-la. Encarcerar a razão de seu medo, ou libertá-la para que a enfrente. Preciso, porém, de seu consentimento.
Kraderan: Medo! Medo é uma sensação que um demônio não deve conhecer. Enfrentarei o que tiver de enfrentar. Abra a porta!
Gyanar: Decisão correta. Eu não a fecharia de novo, ainda que me torturasse.
Kraderan: Não me tente com a idéia.
Gyanar: Por favor, sente-se. (Sentam-se no chão, frente a frente.) Vamos começar. (Respira profundamente, ergue os braços devagar, palmas para cima, olhos fechados. Volta as palmas para Kraderan.) Aqui, sinta as energias dos elementos. (Kraderan encosta as pontas dos dedos às do mago.) Deixe o cosmos fluir através de seu corpo, até sua mente. Deixe que o rumor das ondas a embale. (Pausa.) Por que veio aqui? Por que não deixou as terras de Planabás com seu exército?
Kraderan (olhos fechados): Altarin… Ela gostava de vir aqui.
Gyanar (respiração acelerada): Continue! A porta está se abrindo.
Kraderan: (Começa a gemer em agonia.) Não! As sombras…
Gyanar (enérgico): Ignore-as!
Kraderan: Estão… rasgando… a minha mente! (Grita.)
Gyanar: Não! Não as afaste! Ignore-as! (Kraderan geme.) Isso! Concentre-se em Altarin. Deixe que sua lembrança o guie através da porta.
Kraderan: Altarin… Ajude-me! (Dá um grito curto e silencia.)
Gyanar (aflito): Eu o perdi. A escuridão…
Kraderan: As sombras… fecharam a porta, atrás de mim.
Gyanar: Mantenha o elo, Kraderan. (Pausa.) Kraderan, onde está? Kraderan!
Kraderan: Kraderan não está aqui.
Gyanar: Quem está aí?
Kraderan (abre os olhos): Taigor.
Gyanar (também abre os olhos, abaixa as mãos): Taigor. O que você vê?
Kraderan (levanta-se, olhar perdido): Vejo sofrimento… Dor e morte na batalha. Magia terrível. As sete luas reunidas. Estamos sendo massacrados. Altarin, lute! (Grita de dor e cai.)
Gyanar: Taigor, prossiga.
Kraderan: Correntes. Dor. (Contorce-se, gemendo.)
(Gyanar se arrasta até Kraderan e põe a mão em seu ombro.)
Gyanar: Taigor, o que houve?
Kraderan: (Ergue o rosto.) Eu morri. (Levanta-se devagar.) Morri… para dar vida a este demônio. (Gyanar também se levanta. Kraderan geme, expressão de terror, mergulha o rosto em mãos trêmulas, curvando-se, e Gyanar o ampara. Deixa cair as mãos.) Causei tanta dor, tanto sofrimento. (Empurra Gyanar com violência, fazendo-o cair junto à beira do penhasco.) Você, desgraçado, prometeu livrar-me da angústia, mas me trouxe o tormento muito maior da culpa. Sabe quantos inocentes eu matei?
Gyanar (ainda deitado): Era necessário. Se lhe tivesse revelado as conseqüências da libertação da memória, talvez você tivesse se recusado.
Kraderan (aproximando-se): Eu queimei minha própria aldeia. Parentes, amigos…
Gyanar: Pare! Eu… Eu não sabia.
Kraderan: (Agarra o mago pelas roupas e o suspende.) E se soubesse, o que teria mudado? Para você, apenas mais um crime praticado pelo demônio Kraderan. E é exatamente o que sua morte será para mim.
Gyanar: Não. Eu lhe devolvi sua consciência. Será um assassinato indigno do guerreiro leal e justo que você foi.
Kraderan: (Solta-o com raiva.) Ainda o sou. Mas, fale, maldito, por que fez isso comigo? Se queria livrar o mundo da ameaça de Kraderan, por que não tentou me matar?
Gyanar (pondo-se de pé): Sei que a morte lhe seria preferível a carregar tão pesada culpa. Mas não era Kraderan que eu queria morto.
Kraderan: Então, espera que eu mate alguém para você, alguém poderoso, para quem sua magia não seria páreo. Mas as habilidades sobre-humanas de um demônio… Achou que me faria um favor restaurando minha memória?
Gyanar: Você é inteligente, guerreiro, mas ainda não alcançou a verdadeira dimensão de meu propósito, que já existia muito antes da ressurreição de Kraderan, ou mesmo do nascimento de Taigor. Fiz parte de um grupo seleto de pessoas, treze magos e guerreiros que se prepararam com afinco para a difícil mas gloriosa tarefa de destronar os sete imperadores feiticeiros de Turamork. Cada um de nós teria uma missão específica, fosse anular certos ataques, dar cobertura a um companheiro ou executar determinado feiticeiro.
Kraderan: E o que aconteceu com o grupo? Ainda existe?
Gyanar: Não. Fomos descobertos, antes de estarmos prontos. Sou o único que resta.
Kraderan: Gyanar, o que espera exatamente de mim?
Gyanar: O que mais deseja agora?
Kraderan: A morte.
Gyanar: Acredita que ela traria alívio para sua culpa? Não acha que sua alma vagaria em tormento eterno? Não, não é a morte que você almeja. Há outra maneira de conseguir algum alívio.
Kraderan: Vingança.
Gyanar: (Sorri.) Sim. A morte será daqueles que o fizeram servir ao Caos. Eles são os responsáveis por seu sofrimento.
Kraderan: Somos apenas dois. Como poderemos…?
Gyanar: Na verdade, apenas um. Você irá só.
Kraderan: O Quê?! Por que pensa que…?
Gyanar: A magia que cerca meu corpo seria para Garax como um farol na escuridão. Jamais chegaria a Turamork sem o auxílio de Leriah e seus encantos protetores. Mas ela se foi, com todos os outros. Você, porém, tem livre trânsito na fortaleza.
Kraderan: Mas como espera que eu derrote os sete feiticeiros?
Gyanar: Um por vez, é claro. Lembre-se que, embora poderosos, eles ainda são humanos e mortais. E você é um demônio.
Kraderan: Continue a me lembrar disso, Gyanar, e poderei agir como tal a qualquer momento.
Gyanar: Talvez isto ajude a diminuir sua raiva contra mim. (Estende um objeto prateado a Kraderan, que o pega, desconfiado.) Um amuleto da mais pura prata, como a máscara de Lokengast, e feito especialmente para neutralizar os poderes que lidam com a morte.
Kraderan: Quer dizer que Lokengast nada poderá fazer contra mim?
Gyanar: Enquanto carregar o amuleto. Anular o Senhor dos Mortos era minha missão original. (Kraderan guarda o amuleto.) Creio que é o momento de nos despedirmos. É melhor partir o quanto antes.
Kraderan: Vá, Gyanar. Ainda tenho algo a fazer aqui.
Gyanar: Se me permite perguntar…
Kraderan: Preciso ver Altarin.
Gyanar: Pretende contar a ela… sobre você? Não percebe o quanto será doloroso, para ambos?
Kraderan: (Assente com a cabeça.) Vá.
(Gyanar assente, dá as costas e se afasta.)
Kraderan: Gyanar! (Ele olha por sobre o ombro.) Fez o que devia ser feito. Eu lhe agradeço por me mostrar quem sou.
(Gyanar sorri e prossegue. Kraderan fica só.)