Foram precisos quase cinqüenta anos para que a tecnologia de efeitos especiais se desenvolvesse o suficiente para transpor às telas a fantástica imaginação de J. R. R. Tolkien de modo realista, sem recorrer ao formato de animação, como fizera Ralph Bakshi em 1978. Também foi preciso o entusiasmo de um fã, o diretor Peter Jackson, pois, se dependesse da visão estreita dos executivos de Hollywood, provavelmente o filme nunca existiria.
Se alguém ainda não conhece a história, aqui vai, em linhas bem gerais: Frodo, um hobbit, pequeno ser de pés peludos, carrega um anel maligno que pode dar ao Senhor das Trevas poder absoluto. Guiado pelo mago Gandalf e ajudado por representantes das raças dos homens, elfos e anões, deve levar o anel para ser destruído no local onde foi forjado, em meio ao território inimigo, enfrentando todo tipo de monstros pelo caminho, incluindo os horripilantes guerreiros orcs. Dito assim, parece simples, mas há bem mais que "a eterna luta entre o Bem e o Mal", como pode pensar o espectador desavisado. Tolkien criou um mundo completo de fantasia a partir de lendas e folclores da Velha Europa, com mapas, povos, costumes, línguas e História.
Peter Jackson optou por manter a forma de trilogia e convenceu um estúdio relativamente pequeno, a New Line Cinema, a bancar corajosamente a produção dos três filmes, de uma só tacada para reduzir os custos. Filmou tudo em sua terra natal, a Nova Zelândia, e nos brinda com doses fartas de suas paisagens deslumbrantes, complementadas por cenários fantásticos, reais e virtuais. Com freqüência, vemos os personagens próximos de nós, para depois o campo de visão se ampliar e abarcar toda a grandiosidade à sua volta.
Os efeitos especiais, a cargo de empresa do próprio Jackson, devem ter calado o enciumado George Lucas, que havia dito que somente a sua Industrial Light & Magic seria capaz de dar vida à Terra-Média. Mas, ao contrário de seu A Ameaça Fantasma, aqui os efeitos estão a serviço da história, sem jamais se sobrepor a ela. Merece menção a perfeita redução de estatura dos atores que interpretam hobbits e anões, fazendo mesmo o espectador esquecer que se trata de um efeito especial. A maquiagem caprichada dá forma a mais de duzentos orcs, todos diferentes um do outro. Vale ressaltar ainda a presença de Alan Lee e John Howe, dois dos mais famosos ilustradores de Tolkien, no desenho de produção.
O roteiro traz a essência da obra e os fãs reconhecerão muitos diálogos, transpostos palavra por palavra. Alguns sempre vão reclamar das passagens que foram cortadas, mas são três horas de projeção que passam voando, e talvez outras três fossem precisas apenas para conter todos os eventos desta primeira parte. Jackson cortou o necessário para fazer um filme coerente, que não parecesse truncado. Ficaram de fora a Floresta Velha e o personagem Tom Bombadil, que pouca ou nenhuma influência têm nos acontecimentos futuros, enquanto a ótima passagem pelas Minas de Moria ganha merecido destaque. Pequenas mudanças foram feitas aqui e ali, mas não prejudicaram em nada a adaptação e me pareceram acertadas. A principal é o aumento da participação da elfa Arwen, que mal aparece no livro, e seu romance com Aragorn, originalmente só mencionado perto do final da história. Empolgantes duelos entre os magos foram acrescentados. E há corretas alterações na linha narrativa: no livro, muitos eventos são contados pelos próprios personagens, muito depois de terem ocorrido; no filme, apenas a fuga de Gandalf da torre aparece em flashback, que poderia ter sido evitado.
Em resumo, Jackson consegue ser fiel a Tolkien, sem se tornar seu escravo. Longe da pressão de um grande estúdio, teve liberdade para fazer o que quis, e o fez com surpreendente maestria. A direção só falha em alguns momentos das cenas de batalhas - que são ótimas, algumas espetaculares, mas às vezes a câmera se movimenta demais, a pretexto de transportar o espectador para o calor da batalha, num recurso bobo que só serve para dificultar o entendimento do que acontece na tela. Mas, diante do talento demonstrado no resto, a falha é até perdoável. Também o são as grotescas transformações de Bilbo e Galadriel perante a tentação do Anel: até para quem leu o livro, é difícil perceber que acontecem apenas na visão de Frodo, deturpada pelo Anel. Há momentos realmente emocionantes: um, na saída de Moria, me levou às lágrimas (coisa raríssima), tão envolvido me senti pelo filme.
O elenco foi bem escolhido e dirigido. Ian McKellen é Gandalf, e ponto. O Boromir de Sean Bean, dividido entre a lealdade aos companheiros e a tentação do Anel, também se destaca, enquanto Elijah Wood, mesmo sem ser brilhante, passa bem o desamparo de quem carrega o fardo de Portador do Anel. Há ainda a presença carismática do eterno Conde Drácula, Christopher Lee, numa caracterização perfeita como o malévolo Saruman. Difícil é engolir Cate Blanchett, por melhor que seja sua interpretação, como a lindíssima Galadriel - mas tudo bem para quem teve que se acostumar com uma certa Princesa Leia...
A trilha sonora de Howard Shore está à altura da produção, sempre integrada às imagens e com momentos muito bons, mas não me arrebatou como a de Basil Poledouris para Conan, o Bárbaro, por exemplo. Falta um grande tema, realmente marcante, para coroá-la - um tema como os do John Williams dos velhos e bons tempos de Guerra nas Estrelas, Superman e Caçadores da Arca Perdida. Mas, pelo menos, Jackson não chamou o medíocre Danny Elfman, com quem trabalhou no bom Os Espíritos. Enya contribui com duas canções: o tema para Aragorn e Arwen cai como uma luva, mas May it Be, nos créditos, só se justifica como tentativa de indicação ao Oscar de melhor canção.
É um filme para agradar a todos que tenham, pelo menos, um mínimo de capacidade para a fantasia. O final aberto pode incomodar os que não leram o livro. Para esses, é bom deixar claro que a trilogia conta uma única e longa história, e Tolkien jamais se preocupou em dar qualquer final a qualquer dos volumes isolados. O filme até termina melhor, ao incluir o primeiro capítulo do segundo volume e criar um vilão secundário para um bom duelo final.
Sem exagero, é um dos melhores filmes de todos os tempos, que só encontra rival em meu coração na saga de Guerra nas Estrelas - que, por sinal, deve muito a Tolkien. Deve levar vários Oscars, e só o preconceito da Academia contra filmes de fantasia e aventura pode lhe tirar o de melhor filme. Espero que ganhe! Pois, se o prestígio de Tolkien e de sua obra não for suficiente para vencer o preconceito, nada jamais o será.
Música: Lothlórien de Enya
(não do filme)
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