O Vagamundo

de G. S. Reis

O Vagamundo

Adoro viajar. Mais uma vez, estou no Egito, contemplando a majestosa esfinge. Percebo com tristeza que já não sinto o mesmo fascínio das primeiras visitas, embora ainda admire a civilização que a erigiu. Paris, Londres e Roma há muito não me interessam mais, e mesmo a beleza do Oriente já perdeu sua aura de mistério.

Decido então deixar as dunas áridas e embrenhar-me na selva. Logo caminho entre vegetação tão densa que o dia quase se torna noite. Não há qualquer trilha, mas sei para onde vou. Ouço o som de macacos e inúmeros pássaros, e até o rugido próximo de um leopardo. Serpentes se esgueiram entre a folhagem. Mas não tenho medo. Prossigo.

De repente, ouço um som peculiar, como o do ar reverberando através de um cano. Nenhum outro animal na face da Terra poderia produzi-lo. Estou próximo. Caminho com satisfação. Poderia usar um meio mais rápido, mas neste momento prefiro andar. Já estive aqui antes, e não me sinto ansioso, pois sei que posso voltar sempre que quiser.

Depois de alguns minutos, finalmente chego ao lago barrento encravado no meio da selva. Um pescoço de oito metros se ergue de sob a água emitindo seu grito peculiar. O corpo colossal surge em seguida, deixando a água sobre patas poderosas, que afundam no solo lamacento. Alguma coisa deve tê-lo assustado, penso, pois essas criaturas raramente andam em terra. Avisto outras, mais distantes, meio submersas. Os nativos as conhecem. Chamam-nas mokele-mbembe. Já estão aqui há dezenas de milhões de anos, mas a Ciência só descobriu seus fósseis. É pena que eu não possa compartilhar meu conhecimento.

Aproximo-me da primeira criatura. Caminho despercebido debaixo de seu ventre. Permaneço mais alguns minutos, observando-as. Decido partir.

Subo devagar, como que levado pela brisa, e passo bem perto da cabeçorra, que mais parece um rochedo. Ela recua de repente. Não me poderia ter visto, mas talvez me tenha percebido de alguma forma que não posso explicar.

Continuo subindo, um pouco mais rápido. A selva se torna um grande manto verde e o lago, uma pequena jóia incrustada que logo desaparece sob as nuvens tempestuosas que se formam. Para onde irei? Vi o interior de vulcões e as profundezas dos oceanos. Nenhum deles me atrai agora. Vou mais e mais rápido. Mergulho na negritude do espaço e tangencio a Lua, visualizando por momentos pegadas perenes e uma bandeira que não tremula.

Vou mais longe, guiado apenas pelo meu pensamento, pela minha vontade. Penso em Marte. Penso em estar lá, em desvendar seus mistérios... Sinto uma brusca mudança de trajetória e uma fantástica aceleração. A Terra desaparece rapidamente e me vejo imerso no vazio, cercado pela luz fria de estrelas distantes. Sinto medo pela primeira vez: medo de não poder voltar, de vagar eternamente como um pedaço de rocha perdido no Cosmos. Tento afastar esse sentimento e concentrar-me em meu objetivo, para não acabar retornando antes do desejado.

Uma bola rubra surge do nada e cresce rapidamente. Caio vertiginosamente em sua direção. É Marte! Atravesso rapidamente sua atmosfera. Penso tolamente que serei o primeiro homem a pisar seu solo. Mas quantos antes não terão vindo da mesma maneira?

É uma sensação especial pousar num mundo totalmente novo. Corro como uma criança, experimentando a sensação de total liberdade. Sensação... Como essa palavra soa estranha agora!

Lamento não poder trazer instrumentos de pesquisa. Não posso procurar por bactérias ou outras formas microscópicas de vida que ainda possam existir aqui. Olho o céu tingido em tons de amarelo e laranja. Do alto de uma montanha, vejo crateras e vales. Tudo parece morto e enferrujado. Bem, de fato é ferrugem que dá ao solo marciano essa cor. O que era fascínio e excitação ameaça tornar-se depressão. Não! Não é um sentimento que eu admita ter em minhas viagens. Eu o afasto com a lembrança de uma evidência de vida que eu posso pesquisar: o grande rosto na superfície de Marte, fotografado pela Viking, esculpido não se sabe se pela Natureza ou por outras mãos.

Quase que sem querer, elevo-me novamente, carregado por forças que não consigo compreender. Não preciso procurar. Meu pensamento me conduz. No entanto, retardo intencionalmente a viagem, apreciando o vôo por entre as montanhas e despenhadeiros. Avisto pirâmides ao longe e não sei dizer se são formações naturais ou não. Mas já vi pirâmides demais por hoje. Sigo direto para o grande rosto, que se desenha à minha frente. Subo um pouco, para observá-lo melhor, e pairo bem acima, mal podendo abrangê-lo com a visão. Minha dúvida se esvai. Na face por milhões de anos castigada e desfigurada pelos ventos, dois olhos serenos ainda parecem me olhar de volta com uma expressão complacente. Desço emocionado para tocá-lo. Deito sobre a face direita e tento acompanhar seu olhar em direção ao céu. O Sol está se pondo e algumas estrelas começam a aparecer. Penso em como o planeta deve ter sido no passado longínquo, antes de se transformar num grande deserto. Penso em como viviam seus habitantes e em como deviam se parecer conosco. Teriam mesmo desaparecido ou... apenas se mudado?

As estrelas se multiplicam no céu. Penso em quantas delas serão sóis, com sistemas planetários como o nosso e mundos repletos de vida. Quanto a explorar! Quanto a conhecer! Penso em quanto fui tolo, preso por tanto tempo à Terra.

Sem surpresa, percebo-me levitando uma vez mais. Uma nova viagem está prestes a começar, e meu ser regozija-se em antecipação. Súbito, porém, ouço uma voz tênue chamar meu nome, de muito longe. Não agora!, penso com certa irritação, quando sinto um puxão em minha nuca. O fio de prata se contrai como um elástico que tivesse sido esticado ao seu limite, e me arrasta vertiginosamente de volta à Terra—de volta ao meu maldito corpo.

Os olhos grandes, belos e azuis de Amanda me olham com compaixão, e percebo que as estrelas podem esperar. Mãos delicadas acariciam-me o rosto. Sinto angústia por não poder retribuir-lhe o gesto.

—Vovô, por que não fala comigo?—diz a menina, baixinho, sem esperar resposta, ajoelhada ao lado da cadeira de rodas.

Se eu apenas pudesse dizer-lhe para não sentir pena de mim! Se eu pudesse lhe contar sobre o que conheci, vi e aprendi nestes últimos anos...

Tento falar. Mas não consigo mover um músculo!

Vejo as lágrimas correrem nas maçãs arredondadas. Sinto-as brotar em meus olhos também.


"Excelência Literária", Litteris Editora, 1997.

Música de Vangelis

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