A Questão dos Direitos Humanos

e as "Pessoas Portadoras de Deficiência"*

* artigo publicado no Relatório Azul dos Direitos Humanos - Comissão de Cidadania e Direitos Humanos - Assembléia Legislativa do RS - 1998

Nos marcos da formação econômico-social do capitalismo e, mais especificamente na sociedade brasileira, que tem dentre suas características constitutivas tanto no seu processo de formação histórica quanto na sua dinâmica social dos dias de hoje, os aspectos de ser elitista, preconceituosa e discriminadora, a questão das chamadas "pessoas portadoras de deficiência" destaca-se como um singular caso de exclusão social.

Trata-se de um caso de dupla exclusão, que aqui é entendida como restrição ou impossibilidade de acesso aos bens sociais, incluindo-se aqueles relacionados com uma vida independente e auto-sustentada. A primeira e principal exclusão advém dos próprios mecanismos constitutivos da sociedade capitalista, em especial nos países periféricos e subdesenvolvidos, a de relegar extensos, senão majoritários, contingentes populacionais a uma condição de miséria absoluta ou, no máximo, de subsistência. A segunda exclusão é devida a condição de portar uma "diferença restritiva" nas áreas física ou sensorial ou cognitiva ou ainda comportamental, que situam-se em desacordo com os padrões estabelecidos como produtivos, eficientes, funcionais ou mesmo de beleza. Essa questão da inconformidade com os padrões obviamente não é específica para as "pessoas portadoras de deficiência", da mesma forma e com as especificidades de cada caso, ela também atinge outros setores excluídos socialmente: negros, mulheres, homossexuais entre tantos outros.

Porém, diferentemente dos demais setores excluídos, para os quais há um nível de discussão e de denúncia das opressões, bem como um movimento social organizado e articulado em diversos níveis que, se ainda não são suficientes para a superação das respectivas exclusões, já constituem um patamar de visibilidade social mínimo, com as "pessoas portadoras de deficiência" isso ainda não ocorre nesta proporção, acarretando portanto entraves adicionais para a eliminação da exclusão.

De fato, advindas das próprias limitações das suas "diferenças restritivas" somadas a inadaptação do meio social (espaço construído, meios de transporte, acesso à educação, etc.) e agravadas sobretudo por uma visão e uma prática social assistencialista e paternalista com as quais suas questões são tradicionalmente entendidas e tratadas, as "pessoas portadoras de deficiência" tem sido historicamente objetos da ação e da piedade sociais. Essa condição de "não-sujeito" da sua vontade, começa pouco a pouco a ser superada através das lutas de seus diversos movimentos sociais organizados, que no Brasil remontam a menos de três décadas e que, em que pese terem obtido significativos avanços recentes, ainda não é suficiente para obstaculizar um senso comum arraigado a séculos, senão milênios.

"PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIÊNCIA" :

O QUÊ SÃO E QUANTAS SÃO?

Essas duas perguntas básicas tem sido insistentemente formuladas sem que ainda tenham sido satisfatoriamente respondidas. Qualquer planejamento sério, quer seja a partir de um simples projeto, quer principalmente seja por parte dos governos na elaboração de suas políticas públicas, deve buscar responder essas indagações. A título de introdução, uma vez que foge ao objetivo desse texto aprofundar essa discussão, podemos apontar os seguintes indicativos:

"As pessoas com deficiência não formam um grupo homogêneo. Por exemplo, as pessoas com enfermidades ou deficiências mentais, visuais, auditivas ou da fala, as que tem mobilidade restringida ou as chamadas "deficiências médicas": todas elas se defrontam com barreiras diferentes, de índole diferentes e que devem ser superadas de maneiras diferentes."

ONU – Programa de Ação Mundial para as Pessoas com Deficiência, Cap.I - art. 8º.

1) Uma das características mais marcantes do ser humano é a diferença. Não existem duas pessoas iguais. É isso que torna cada indivíduo único.

2) As diferenças pessoais variam, em qualquer aspecto físico ou psicológico considerado, em uma graduação que vai de 0% a 100%. Esta variação faz com que haja diferenças mais visíveis, mais flagrantes do que outras.

3) Se, em um extremo desta graduação não há ninguém 100% perfeito, no outro extremo encontramos pessoas com déficits ou lesões físicas, sensoriais ou mentais mais ou menos acentuadas. Tais pessoas, portadoras de limitações em grau mais acentuado, encontram uma série de barreiras sociais, ambientais e comportamentais existentes na sociedade que lhes dificultam a vida cotidiana.

4) Estas pessoas portadoras de limitações em grau mais acentuado, são de uma maneira genérica e, imprecisamente designadas, como pessoas portadoras de deficiência, tal designação baseia-se em padrões tidos como "médios ou normais".

5) É importante frisar que, diferentemente de fatores como sexo e raça que se constituem-se em classificações humanas válidas do ponto de vista biológico, os padrões de "normalidade" são construídos socialmente e, portanto, variam no tempo e no espaço. O "normal" por conseguinte é uma concepção sociocultural e histórica.

6) Encontramos dentre as pessoas portadoras de deficiência uma enorme heterogeneidade de diferenças advindas de vários tipos de déficits ou lesões físicas, sensoriais e mentais, que evidenciam o fato de não constituírem tais pessoas um grupo, segmento ou outra denominação similar, quer do ponto de vista biológico, psicológico ou sociológico.

7) Apenas com um objetivo didático, visando somente operacionalizar e instrumentalizar o entendimento e demais questões pertinentes, é que podemos falar em "pessoas portadoras de deficiência". Mesmo assim é necessário que se faça uma especificação prática: a divisão por grandes áreas de deficiência, agrupando desta forma lesões que, ou pela origem orgânica, ou pelo equipamento utilizado, identificam situações semelhantes. As grandes áreas são: Deficiência Física, Deficiência Sensorial (Visual ou Auditiva), Deficiência Mental e Deficiência Orgânica ou Médica.

8) Cada área de deficiência por sua vez comporta subdivisões, que reagrupam ou por características das seqüelas ou pelo equipamento (órtese ou prótese) utilizado os casos similares. Como exemplo, podemos citar a área da deficiência física que engloba vários tipos de limitação motora. Sem a pretensão de esgotar as possibilidades, as principais subdivisões são as seguintes:

* PARAPLEGIA: paralisia total ou parcial da metade inferior do corpo, comprometendo as funções das pernas. Geralmente causada por lesão de medula espinhal ou seqüela de poliomielite.

* TETRAPLEGIA: paralisia total ou parcial do corpo, comprometendo as funções dos braços e pernas, possuindo as mesmas causa da paraplegia.

* HEMIPLEGIA: paralisia total ou parcial da funções de um lado do corpo, como conseqüência de lesões cerebrais causadas por enfermidades, golpe ou trauma.

* AMPUTAÇÃO: falta total ou parcial de um ou mais membros do corpo.

* PARALISIA CEREBRAL: termo amplo para designar um grupo de limitações psicomotoras resultantes de uma lesão do sistema nervoso central. A paralisia cerebral oferece diferentes níveis de comprometimento, dependendo da área da lesão cerebral. É impróprio considerar que uma pessoa com paralisia cerebral possui também deficiência mental.

TERMINOLOGIA

A conceituação acerca da denominação das "pessoas portadoras de deficiência" também é matéria de discussão, várias tem sido as tentativas de obter a melhor caracterização, sendo que o próprio movimento organizado das "pessoas portadoras de deficiência" ainda não chegou a um consenso quanto a essa questão.

Cabe aqui apenas destacar o traço ideológico dessa conceituação. É importante frisar que definir é um ato relativo, subjetivo, no qual estão envolvidos, no mínimo dois pólos, o que define e o que é definido. Em geral e historicamente, o ato de definir e, sobretudo, a possibilidade de definir, são prerrogativas de quem, indivíduo, grupo ou classe social, detém o poder.

No que diz respeito à questão das chamadas "pessoas portadoras de deficiência", o ato de definir, de rotular não foge a esta regra. Historicamente elas tem sido definidas, classificadas e rotuladas porque possuem "diferenças restritivas" específicas que as fazem diferir dos padrões culturais criados e adotados como "naturais ou normais".

Tem por conseguinte, sido rotuladas de forma a enfatizar as suas diferenças, suas limitações ou déficits, e nunca pelo contrário. Quem define esquece, ou quer esquecer, que o ser humano é um ser incompleto, carente e principalmente não igual ou homogêneo em qualquer aspecto considerado.

Sob esta perspectiva o "sujeito desviante", física, sensorial, mental ou comportamentalmente, representaria para o ser humano "normal" a lembrança e a representação concreta de sua incompletude, de sua imperfeição e da certeza de que não é, nem nunca será, aquilo que sonha: um ser perfeito.

Pois tudo que é perfeito parece, de certa forma, irreal. Na verdade toda a imagem (e vivemos presos ao imaginário) tem seu preço inconsciente, já que para ser "perfeito" muito é preciso reprimir e, para ser "diferente" arca-se com uma culpa muito grande.

Portanto a "deficiência" ou desvio é uma situação e não um estado definitivo, determinado apenas pelas incapacidades do indivíduo, é uma situação criada pela interação entre a limitação física, sensorial, mental ou comportamental e o obstáculo social que impede ou dificulta a participação nas atividades da vida cotidiana.

Na grande maioria dos casos a inadaptação/diferença é definida e interpretada como limitada ao indivíduo, em termos de mal funcionamento ou constituição e, portanto reduzidos à uma dimensão individual /pessoal.

O enfoque sobre os indivíduos reconhecidos como "casos patológicos", além dos problemas relativos ao próprio conceito de patologia, impede que se enquadre corretamente os papéis representados pelo meio social na origem e agravamento dos fenômenos de inadaptação, desvio ou diferença.

" O termo deficiência surgiu para substituir anormalidade, seguindo um processo que tem como base uma lógica de institucionalização e segregação das diferenças. Entretanto, lida-se com a deficiência como se ela fosse natural, estática, definitiva. Porém esse é um fenômeno relacional (depende do contexto, de situação, da cultura em questão, etc.): a explicação sob o referencial organicista não dá conta dos critérios de agrupamento e não justifica e exclusão. Pode-se dizer que a prática dessa área se caracteriza pela manutenção do conceito de deficiência, reputada a causas biológicas, emocionais ou sociais. Mesmo quando relativizada (considerando deficiência como construção) afirma a existência de uma identidade deficiente. A preservação desse conceito, ao mesmo tempo que estigmatiza e marginaliza alguns grupos sociais, obscurece os efeitos de poder nesses grupos. (...) Talvez convenha substituir o conceito de deficiência pelo conceito de interdição, pois a deficiência seria de única e total responsabilidade do indivíduo, enquanto que interdição remete a algo, ou alguém, ou uma situação que está impedindo o acesso ao processo de singularização. E essa interdição pode ser orgânica, emocional, estrutural, política, econômica ... de tantas ordens diferentes. Talvez aí esteja o nó que impede uma tal mudança de concepção, os "deficientes" deixam de ser os outros, e percebemos que todos estamos mais – ou menos – interditados". (1)

Relacionamos a seguir as terminologias mais aceitas e utilizadas, tanto pelas "Pessoas Portadoras de Deficiência - PPD´S" quanto por técnicos e instituições da área.

O termo-chave é "DEFICIÊNCIA", em inglês " DISABILITY" e em espanhol "DISCAPACIDAD", utilizados por todos os países que formam as Nações Unidas. No Brasil, utilizamos "PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIÊNCIA", "PORTADORES DE DEFICIÊNCIA" ou "PESSOAS COM DEFICIÊNCIA", ( People with Disability, em inglês, e Personas con Discapacidad, em espanhol.)

Este termo é genérico e se refere a todas as áreas de deficiência, independente do tipo de seqüela ou característica da deficiência. Quando utilizamos o termo "Pessoas Portadoras de Deficiência", estamos nos referindo a cegos, surdos, paraplégicos, paralisados cerebrais e outros, agrupados em áreas de deficiência física, sensorial, mental ou orgânica.

Dentro da terminologia aceita pela área técnica, em especial ligada à Pedagogia, temos a noção de "PESSOAS PORTADORAS DE NECESSIDADES EDUCATIVAS ESPECIAIS " que objetiva dar conta das diferenças educacionais que implicam a surdez, a cegueira, as limitações motoras, a Síndrome de Down ou outras condições que demandam particularizações no processo ensino-aprendizagem. Por ser uma expressão que não define a qual área de deficiência se refere, pode causar reforço no senso comum que vê às "pessoas portadoras de deficiência" como integrantes de um único "grupo". Por referir-se à questão pedagógica tão somente, não deve ser utilizada fora desse contexto.

ESTATÍSTICA

A primeira dificuldade no levantamento do número de "pessoas portadoras de deficiência" existente na nossa sociedade, advém da própria imprecisão e indefinição acerca do conceito de PPD´s, acima esboçada.

De fato, a questão da imprecisão conceitual e sua conseqüente dificuldade de aplicabilidade nos levantamentos censitários, há muito vem preocupando e desafiando os estatísticos e demais responsáveis por esses levantamentos. Corre-se o risco, no caso do levantamento do número das "pessoas portadoras de deficiência" , de não obter-se êxito na elaboração dos instrumentos e na metodologia da pesquisa no sentido de dotá-los da flexibilidade e precisão necessárias para poder "captar" toda a complexidade da questão, para a qual a existência dos casos limítrofes entre duas ou mais situações é crucial.

Os resultados e as metodologias aplicadas a essa questão infelizmente parecem, possivelmente por não haver um questionamento crítico do senso comum acerca do conceito de "pessoas portadoras de deficiência", reproduzir as dificuldades apontadas. Em conseqüência disso, os resultados apontam para uma "visibilidade" somente dos casos mais flagrantes e, sobretudo, aparentes das "diferenças restritivas" existentes na população.

No Brasil, onde há uma dificuldade crônica desses levantamentos, as poucas tentativas de enfrentar essa questão mostraram-se desastradas. Encontramos em recente artigo importante análise dos dados estatísticos do Censo de 1991 do IBGE relativamente a essa questão.

" Estamos utilizando dados do Censo de 1991, fornecidos pelo IBGE (...) Nesse Censo Demográfico, para a obtenção dos dados da população deficiente, foram definidas duas frações amostrais distintas: 10% para os municípios com população estimada superior a 15.000 habitantes e 20% para os demais municípios. (...) Foram colhidas informações pelos pesquisadores, em visitas domiciliares e, posteriormente, feita a expansão do número de deficientes para todo o país. Supomos que, devido ao grande preconceito que envolve a sociedade, possivelmente assimilados pelos familiares informantes, poderá haver ocultamento nas declarações. As informações estão sendo apontadas dentro dos referenciais incorporados no senso comum, o que nos faz aventar a possibilidade de que o conjunto desses dados quantifique os grandemente lesados e/ou os que, tendo passado por algum critério de diagnóstico (clínico, pedagógico, etc.) são aceitos como tal."

E, mais importante ainda, continuam os autores:

" Dentro do quadro delineado, os dados do IBGE atestam 2.198.988 deficientes numa população total de 146.815.750 habitantes. Isto representa 1,498% de deficientes."(2)

Ainda hoje o mais usual é trabalharmos com as projeções e estimativas da Organização Mundial de Saúde-OMS/ONU elaboradas em 1980/1 (sic!), onde há uma projeção de que a parcela da população "portadora de deficiência" somaria a taxa de 10%, podendo ainda nos países subdesenvolvidos atingir 12%. Mesmo as projeções mais "realistas" que ampliam essa taxa, como a publicada no Relatório Azul-95 (3), que admite para o Brasil um percentual de até 15%, deixam a desejar em termos de apreensão dessa realidade.

Na inexistência de dados confiáveis no Brasil, nos socorremos no intuito de estabelecer um paralelo comparativo, de levantamentos mais aprofundados realizados em outros países.

Na Suécia, desde o início da década de 1980 já é trabalhado um percentual de "pessoas portadoras de deficiência" na casa dos 19% da população total. Nos EUA, dados recentes do The United States Bureau of Census (4) relativamente a dados de 1995 mostram o que segue (as denominações são do texto citado):

* 7,4% entre brancos;

* 12,7% entre afro-americanos;

* 11,7% entre índios americanos, esquimós e aleutas;

* 9,1% entre os de origem hispânica;

* 4,5% entre asiáticos ou das ilhas do pacífico.

Se Suécia e Estados Unidos, países desenvolvidos do ponto de vista econômico e com os indicadores sociais de qualidade de vida entre os mais elevados do mundo, trabalham com percentuais populacionais na casa dos 20%, como explicar que no Brasil, com os gravíssimos problemas econômico-sociais que possui, tenha-se obtido o índice de menos de 1,5%.

Parece claro que essa discrepância está na razão direta dos problemas de conceituação acerca das "pessoas portadoras de deficiência" antes exposta. Ao contrário, tudo parece indicar que no Brasil, face aos seus problemas estruturais: miséria e subnutrição, baixos índices educacionais, precariedade do sistema de saúde, altíssimos níveis de acidentes de trânsito e trabalho, doenças endêmicas, etc., o número de pessoas com "diferenças restritivas" ao desempenho das atividades cotidianas seja maior do que aqueles dos países desenvolvidos.

POLÍTICAS PÚBLICAS

Em uma sociedade de massas como a nossa as políticas públicas tem que necessariamente assumir a condição de serem "políticas generalistas" no sentido de atenderem o maior número possível de situações. Acontece que essa condição as faz não atenderem, ou atenderem com muita precariedade àqueles que, devido possuírem "diferenças" em relação ao padrão/norma, requerem procedimentos e adequações específicas.

Se ponderarmos as considerações anteriores quanto ao número de "pessoas portadoras de deficiência" e acrescentarmos que elas via de regra de não vivem sozinhas, ou seja tem família, amigos, etc., ou seja estão inseridas, em que pese as precariedades dessa inserção, na vida comunitária e social, veremos que, se elas constituem uma "minoria" social é tão somente do ponto de vista de acesso às oportunidades e ao poder, e nunca do ponto de numérico.

Essa constatação por si justifica a necessidade de adequação das políticas públicas no sentido de dotá-las de condição de atenderem às demandas da população real, quer seja portadora de "diferenças restritivas" ou não.

Porém como conseqüência de nosso ainda precário estágio de desenvolvimento social, além da herança cultural que relega para as "pessoas portadoras de deficiência" um papel absolutamente dependente e subordinado nesse processo, as políticas sociais tradicionais reservam e canalizam para a Assistência Social as demandas dessa área. Ainda é dominante o senso comum que entende que essas demandas são restritas a área da assistência social.

A assistência social é sem dúvida uma importante política social para as "pessoas portadoras de deficiência", uma vez que nossa realidade perversa e excludente, coloca um imenso contingente populacional na faixa da pobreza absoluta, para quem a assistência social, construtiva e transformadora, tem um amplo campo de trabalho. O erro é limitar todo um conjunto de políticas voltadas para a questão dos portadores de deficiência, que no seu conjunto tem um extraordinário poder questionador da sociedade capitalista e de seus valores culturais e simbólicos, a uma questão meramente assistencialista.

Se, como objetivo máximo as "pessoas portadoras de deficiência" almejam: Igualdade de Oportunidades, Plena Participação, Vida Independente e Auto-suficiência Econômica, visando passarem a ser cidadãos produtivos e inseridos na vida social, cabe ao Estado em todos os seus níveis, como impulsionador e regulador das relações sociais, promover essa transição. Portanto é imperativo que deixe de ter a postura ambígua que tradicionalmente o tem caracterizado, por um lado afirmando a vida independente como meta e, por outro lado, construindo significativos obstáculos para a sua concretização.

REFLEXÕES SOBRE A DIMENSÃO POLÍTICA DAS BARREIRAS ARQUITETÔNICAS

Quando se fala sobre "barreiras arquitetônicas" e suas implicações, geralmente se aborda a questão pelo aspectos dos direitos de cidadania das "pessoas portadoras de deficiência", direito de ir e vir com autonomia e independência e as possíveis alternativas técnicas de acessibilidade. Mais recentemente o enfoque foi ampliado pelo questionamento do "tipo padrão" que fundamenta o planejamento dos espaços construídos. Entretanto é raro vermos reflexões acerca das implicações político-ideológicas do "espaço construído portador de barreiras arquitetônicas".

O espaço construído não é neutro. Suas formas, dimensões, proposições, etc. refletem os valores sociais dominantes. Esses valores estéticos, econômicos, políticos e ideológicos são os padrões estabelecidos como "normais" ou "naturais" e são estipulados e difundidos pela classe social hegemônica que os cria e reproduz. O espaço construído pode contribuir portanto para segregar ou integrar as pessoas.

Toda e qualquer elaboração/modificação do espaço construído tem que considerar os aspectos de funcionalidade e conforto para utilização humana. Portanto faz-se necessária a adoção de padrões físicos do ser humano, que invariavelmente recaem em um tipo médio, abstrato e não relativizável, o que torna o padrão válido somente para os que se aproximam dele, segregando os demais. Ora, esta questão não é meramente técnica, estão implícitos nela todo um referencial de valores acerca do padrão, na norma, impondo autoritariamente e a priori que, aquém e além da "normalidade" estão os anormais, os desviantes.

A questão adquire ainda maior gravidade se considerarmos que o padrão físico, além de abstrato e artificial, é elaborado fora da realidade brasileira, com parâmetros baseados nos biotipos europeus e norte-americanos.

Portanto pretender moldar o ser humano a um ambiente artificial criado pelo planejador é inviável e uma inversão totalmente sem sentido. Cabe ao planejador organizar o espaço físico em função do homem real, do homem "diferente", do homem indivíduo, sempre limitado de uma ou outra forma, jamais em função de um tipo padronizado, ideal e inexistente.

Se o espaço é construído, implica em que ele é planejado, ou pelo menos que não é estruturado ao acaso, daí poder-se afirmar que todas as articulações sociais ligadas a ele exprimem um conteúdo ideológico, que pode ser explícito ou não, mas que ao serem materializadas imprimem ao espaço seus valores, fazendo com que o mesmo por sua vez passe a reproduzi-los, com o acréscimo de deixarem de ser valores, portanto subjetivos, passando a ser coisa concreta, real e palpável.

Seria forçado afirmar ser o espaço construído uma mera projeção da sociedade e de seus valores sociais. Esse processo não se dá direta e mecanicamente, ao contrário sofre influências e mediações de outras instâncias, principalmente econômicas (custo, matéria-prima, mão-de-obra), geográficas (localização, condições geológicas e topográficas, clima) e estéticas (design, estilo, beleza). O que se enfatiza é que os valores sociais e ideológicos, entre eles o padrão físico do ser humano estão presentes em cada uma das instâncias referidas e no todo envolvido, sendo por conseguinte internalizados pelos responsáveis pela do espaço: planejadores, administradores públicos, construtores, arquitetos, engenheiros, etc., que acabam por reproduzi-los sem questioná-los.

Barreiras Arquitetônicas:

Um Caso Concreto de Discriminação do Espaço Construído

Dentre as características do ser humano, uma sobressai, a heterogeneidade relativa à conformação física dos indivíduos. Assim há indivíduos altos ou baixos, gordos ou magros, brancos ou negros, masculinos ou femininos, jovens ou velhos, como deficiências em maior ou menor grau, etc. Seria lógico pensar que idealmente essas diferenças fossem consideradas no planejamento e concretização de todos os objetos, máquinas, veículos e especialmente no espaço construído. Entretanto isso não ocorre na realidade, pois planeja-se para o "homem padrão" em detrimento do "homem real".

O reflexo dessa concepção, especialmente nos espaços construídos, é constituírem-se em verdadeiras barreiras arquitetônicas para aqueles que não se enquadram no padrão artificial de ser humano. Dentre esses salientam-se aqueles que se constituem nos casos limites do padrão de "normalidade" imposto, são os chamados "deficientes físicos". Mas não são apenas os únicos atingidos, também há os chamados "deficientes temporários", ou seja, aqueles que momentaneamente tem reduzida sua capacidade de locomoção, tais como: fraturados, gestantes, enfermos, etc. Além desses há ainda os idosos, crianças e aqueles com problemas orgânicos: cardíacos, hipertensos, reumáticos, diabéticos, etc.

Para todos esses, que se somados serão um percentual bastante significativo da população, o espaço construído e os equipamentos em geral são inadequados e perniciosos. Esse contingente seguramente atingiria a totalidade da população se atentarmos para a questão da segurança e da prevenção de acidentes.

O espaço construído sendo incorretamente planejado para o homem ideal=atleta, acarreta para o homem comum toda sorte de barreiras e perigos. Os acidentes diários, alguns dos quais com graves conseqüências tornam-se rotineiros. Considerar as chamadas "pessoas portadoras de deficiência" no projeto é importante mas ainda é pouco, pois a maioria continua massificada, padronizada. E a primeira conseqüência desta padronização do ser humano é o acidente. Conforme estatísticas da OMS/ONU os acidentes da vida diária, tanto quanto os acidentes do trânsito e do trabalho, são campeões em criar deficiências, ou em transformar pequenas diferenças, muitas vezes imperceptíveis, em diferenças gritantes.

É neste contexto que é possível falar segregação urbana e barreira arquitetônica, mais precisamente sobre como o espaço construído legitima o padrão humano artificial adotado. Conforme Lefebvre "Caso ainda mais altamente significativo é o da arquitetura que comporta uma prática específica, parcial e espacializada, ligada ao cotidiano. O encargo/encomenda social impõe ao arquiteto a realização de espaços que convenham à sociedade, quer dizer, que "reflitam" as suas relações, dissimulando-as se possível (se não for muito oneroso) na paisagem. (...) Quando responde a um encargo/encomenda social (a dos "promotores" e dos "poderes") o espaço arquitetural e urbanístico contribui pois ativa e abertamente para a reprodução das relações sociais.(5)

A homogeneização artificial do ser humano, o estabelecimento de critérios rígidos de "normalidade", sem dúvida beneficia a maximização do lucro, a "racionalidade" do processo produtivo, a minimização do "desperdício" (energia, matéria-prima, etc.) o que determina ser o espaço construído, interior e exteriormente, menos diversificado. Esses aspectos implicam em duas importantes conseqüências: a produção em série, quantitativa e, o controle social. "Os conceitos do espaço, do quotidiano, do urbano, da diferença não fazem parte do sistema - do espaço dominado pela estratégia, do cotidiano programado, da homogeneização".(6)

Existe pois, na base da concepção vigente do padrão físico do ser humano uma teoria geral acerca da organização social. Ao não relativizar o padrão físico, os "responsáveis" pela construção do espaço deixam implícita a idéia de uma sociedade indiferenciada, homogênea, sem espaço para a diferença e, por extensão para a mudança. A concepção de uma sociedade indiferenciada em relação a constituição física é no mínimo politicamente conservadora, o que além das conseqüências apontadas facilita o controle social dos indivíduos. Controle esse que é estendido espacialmente pelo ordenamento e massificação da forma construída, tendo como resultados a segregação urbana e as barreiras arquitetônicas.

Neste sentido aplica-se a esta questão o conceito de "biopoder" de Foucault, pois "(...) a arquitetura não pode determinar o comportamento humano, mas deve haver certa convergência entre a organização espacial e formas de liberar ou oprimir as pessoas". Esse controle social expresso no espaço padronizado é fruto da mesma ideologia do padrão físico humano, ao conceber uma sociedade indiferenciada quanto a este aspecto, acima e fora das classes sociais, esta ideologia retira da questão tanto o conflito quanto a diferença, e principalmente reduz as possibilidades da mudança. Portanto "apolítica, humanitária, universalista e cientista, a ideologia do ambiente transforma a desigualdade social em entraves físicos e funde as classes sociais num exército único de escoteiros. Ela é, desta forma, a expressão mais acabada (dado que mais generalizada) da ideologia do urbano".(7)

CASOS

Reproduzo a seguir, por ser exemplar de uma visão dominante o seguinte depoimento verídico:

Aos gritos, andando pela sala atropelando os móveis, o homem externaliza em gestos incoerentes o furor contido. Num esforço, sobre-humano, controla os movimentos e organiza as frases de forma quer pareçam coerentes e racionais:

A. M. G, 27 anos, paraplégico há um ano em função de assalto na cidade de Porto Alegre, no qual levou dois tiros, é morador de uma vila de sub-habitação tem infecção generalizada e precisa deslocar-se regularmente de sua casa até o hospital para cuidados gerais e fisioterapia. Como não há transporte público adaptado e nem oferecimento desse serviço pelo sistema de saúde, após ter buscado por auxílio em várias instituições e gabinetes parlamentares, procurou como última alternativa a Coordenação de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de Porto Alegre e encaminhou sua demanda.

J.M.S., 64 anos, mãe de P.S.A, 44 anos, procurou também procurou a Coordenação de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de Porto Alegre, onde relatou o seguinte caso. De família de pequenos agricultores do interior do estado, mudaram-se para a capital na tentativa de melhorar de vida, viviam modestamente até que J.S.A. , que sustentava a casa e sua mãe, foi atropelado por um caminhão que fugiu do local, como conseqüência ficou paraplégico e com outros seríssimos problemas daí advindos. Impossibilitado de trabalhar e de ganhar o sustendo para a família, foram despejados da casa onde viviam. A mãe, na impossibilidade do filho, relata desesperada, que estavam morando sob uma das pontes do Guaíba e que estava vendo o filho morrer devido a falta de assistência e de recursos financeiros. Relatou ainda que, em sua peregrinação em busca de apoio foi agredida e posta para fora de um ônibus quando comunicou que não tinha dinheiro para pagar a passagem.

CONCLUSÃO

A partir do exposto, conclui-se que a questão das "pessoas portadoras de deficiência" como problema complexo que é, não será equacionado a partir de ações setoriais ou isoladas, ao invés disso está diretamente vinculada a superação dos mais relevantes problemas de desenvolvimento e justiça social em nosso país.

As "pessoas portadoras de deficiência" sabem que os avanços da ciência e da tecnologia atuais, no limiar do século 21, podem apoiar seus processos de independência em uma proporção nunca antes vista. Porém, esse potencial para ser plenamente exercido, requer uma ação conjunta e dedicada de todos os setores da sociedade, - responsáveis pelas políticas públicas, organizações não-governamentais, setor privado, mídia, além é claro, das próprias "pessoas portadoras de deficiência" e suas entidades representativas e comunidade envolvida. O movimento das "pessoas portadoras de deficiência" em direção a uma vida independente e auto-sustentada é um desafio à nossa democracia social.

Humberto Lippo Pinheiro

Sociólogo

1997

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1 – WAINER, Iafa Sara – "Diferenças e Institucionalização: Uma Visita à Galeria dos Espelhos"

Anteprojeto de Dissertação para Seleção de Mestrado em Psicologia Social e Institucional – Instituto de Psicologia/UFRGS

2 - JANUZZI, Gilberta S. de Martino e Nicoláo – "Portadores de Necessidades Especiais no Brasil: Reflexões a partir do censo demográfico 1991" , Revista Integração, 7(18):40-46, 1997

3 - RELATÓRIO AZUL – 1995 – "Assistência Social: do clientelismo à cidadania", 199-203

4 - THE UNITED STATES BUREAU OF CENSUS – "Achieving Independence: the challenge for the 21 century" – Documento disponível na Internet no site www.census.gov

5 - LEFEBVRE, Henry – "A Re-produção das Relações de Produção, Ed. Antídoto, Porto, Portugal, 1973

6 - -------------, Op. Cit.

7 - CASTELLS, Manuel – "A Questão Urbana" – Ed. Paz e Terra, São Paulo, 1983

8 - AMARAL, Lígia Assumpção – "Pensar a Diferença/Deficiência", Coordenadoria Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, Brasília, 1994

 

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