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João conta dinheiro
- O negócio é simples: é só contar dinheiro.
- Quanto ganha?
- Tudo o que tu contar.
João olhou, desconfiado:
- Quem vai me pagar tudo isso?
- Presta atenção: é uma fábrica. Tem uma máquina que faz a grana. Ela faz, mas não conta. É aí que tu entra.
Eles precisam saber quanto ela já fez.
- Pra quê?
- Pra contabilidade. Se eles não souberem quanto tá sendo feito, o contador fica sem poder trabalhar.
- Mas se eu ganhar tudo o que contar, não vai sobrar nada pra eles.
- Eles não gostam, mas têm que te pagar. Faz parte do negócio. Ou tu vai trabalhar de graça? Se tu quiser,
eu posso falar com eles...
João se apressou em fazer que não, com a cabeça.
- Além do mais, tu não vai contar todas as notas. É muita coisa. Tu ia ficar maluco!
- O resto fica sem contar?
- Tem outros que fazem o serviço.
- Quanto é que os outros ganham?
- O mesmo que tu. A política, lá, é a igualdade.
João pensou, pensou:
- Se todo mundo ganha tudo o que conta, continua não sobrando nada. - Era mais inteligente do que o outro
pensava.
- Deixa a matemática com eles. Se preocupa só em contar dinheiro.
João fez um gesto com o ombro, querendo dizer "tudo bem". Já ia com o outro, quando lembrou de fazer mais
uma pergunta:
- Isso não é proibido?
- Proibido?! Tá todo mundo sem dinheiro. O comércio não tem. O governo vive reclamando que falta.
Até pros bancos tá difícil. Tu acha que eles iam proibir uma coisa que eles tão precisando?
Na cabeça de João, fazer dinheiro continuava parecendo uma coisa proibida. Mas aquela explicação soava tão
certa. E ele precisava demais do emprego.
Foram-se os dois.
Na fábrica, o outro explicou a rotina :
- Tu vai ficar nessa mesa. Trabalha quando quiser. É tu que faz o teu horário. Só não pode sair daqui.
Questão de segurança. Tu vai dormir no chão. Eles te emprestam um colchonete. Pra comer, tem a Cantina do
Rashid, do lado da máquina. Lá é bom. O único problema é que ele não aceita dinheiro falso. Tu não vai
poder pagar com o que ganha aqui.
- O dinheiro daqui é falso?
- Claro! Falso e da melhor qualidade.
- Eu não tenho outro dinheiro.
- Não faz mal. Tu pode sair e trocar as tuas notas no comércio.
- Tu disse que eu não posso sair.
- A trabalho pode.
- O comércio aceita dinheiro falso?
- Só não aceita se souber. Comerciante é assim mesmo: não gosta de fiado, cheque, dinheiro falso...
- E o Rashid? Por que ele não aceita?
- Porque sabe que é falso. Se não soubesse, aceitava.
No primeiro dia, ainda sem prática, João contou quinhentos cruzeiros. Trocou-os, na lanchonete em frente à
fábrica, e voltou pra comer no Rashid. Espantou-se com os preços: trezentos cruzeiros, uma esfiha.
- É caro!
O árabe, que era loiro, ponderou:
- Não gostou, vai comer em outro lugar!
- Não tem outro lugar.
- Então, não reclama.
João fez as contas e concluiu que, mesmo caro, dava. Pediu um refrigerante pra acompanhar. Gastou os
quinhentos cruzeiros.
Com mais experiência, contou mil cruzeiros no segundo dia. Surpreendeu-se com a facilidade com que se ganhava
dinheiro ali. Também teve uma surpresa na cantina:
- Mil cruzeiros, uma esfiha e um refrigerante? Ontem, era quinhentos!
- Inflação!
Esse aumento de preço o desanimou. No terceiro dia, só contou trezentos cruzeiros. Não dava nem pra comprar
o salgadinho. Pra sua sorte, a cantina tinha mais uma surpresa:
- Promoção do Rashid: duzentos cruzeiros, a esfiha; cem, o refrigerante.
João só lamentou não ter conseguido contar mais notas:
- Hoje, dava pra economizar uns trocados.
Mais motivado, no dia seguinte conseguiu contar o absurdo de dois mil. Se a promoção do Rashid continuasse,
ia embolsar mil e setecentos. Ele nunca teve tanto dinheiro! Só que, na cantina:
- Promoção mudou: dois mil!
- Isso é promoção? Tava trezentos.
- Promoção do Freguês. Quando Rashid tá com bolso forrado, faz promoção pra agradar freguês. Quando tá duro,
faz pra freguês agradar Rashid.
Contrariado, João pediu o lanche. Enquanto comia, a fábrica foi invadida por dezenas de homens, que entraram
de assalto, apontando armas em todas as direções:
- Polícia. Ninguém se mexe!
Foi todo mundo parar na delegacia.
No fim, a polícia ficou satisfeita com a operação. Conseguiu desbaratar a quadrilha de falsários e apreender
seus equipamentos. Os criminosos, não tem do que reclamar. Com o dinheiro verdadeiro que pegaram na Cantina
do Rashid, contrataram bons advogados e hoje cumprem pena em liberdade.
Só ficou preso o João, que gastava todo o salário em esfihas e refrigerantes, e não pôde pagar sua defesa.
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