sábado 2.9.2000 23:46 02-09-2000 Acordo às dez, completamente destruído. Acho que bateu o cansaço acumulado da Multimídia, do WAP e das duas semanas de Portugal. Carumba, fazia tempo que eu não dormia assim. O café da manhã me surpreende longe do leite que acabou de ser ordenhado, tomamos leite de caixinha e nescafé. Salvam-se o pão, sempre bom nessa Portugal, e os figos fresquinhos, colhidos naquela mesma manhã, no quintal. É no quintal que me vem a primeira grande prova de que estou longe do meu país. Começo a reparar na vegetação e me dou conta de como é diferente. As árvores têm folhas mais miúdas e aquelas com folhas maiores começam já a perdê-las. É engraçado reparar nisso só agora. Vamos à praia em Baleal: o casal, a sogra, os dois filhos e o intruso amarelo. Sabadão de sol no «Portugal Profundo», dizem-me eles. Eu vejo a estrada com olhos de gringo, com olhos de alguém que nada «percebe», que ainda não se definiu morador, turista, viajante, alienígena ou passageiro nesta terra de encantos que tocam àqueles que têm saudades. A estrada vai mostrando plantações; são milharais, macieiras, pereiras, oliveiras, videiras E eucaliptos, num reflorestamento imbecil que faz Leonor (a sogra) reclamar da substituição dos pinhais por essa porcaria que cresce rápido e acaba com o solo. O jornal de domingo vai dizer a mesma coisa. Algumas construções perdidas no meio do caminho dão conta da antigüidade desse povo. Vou entrando no clima, esperando nada, em tudo achando graça. Ao passarmos em Rio Maior, Leonor explica que essa cidade ia ter um muro separando Portugal em dois países: o norte comunista e o sul capitalista. Não consigo imaginar. Anoto os nomes das cidades, vilas e aldeias pelas quais passamos, just for fun. É no caminho que fica Óbidos, com suas muralhas imponentes e sua história peculiar. A cidade é do século XIII, e uma das mais bem conservadas. Quando o rei Dinis passou por lá (depois da expulsão dos mouros por Afonso I), sua mulher, Isabella de Aragão, deixou claro ter gostado muito da cidade. Dinis deu Óbidos de presente à Isabella, tradição que foi seguida por outros reis de Portugal. Chegamos em Baleal, praia larga de areia que me lembra o litoral paulista, próximo a Santos. No canto da praia, pedras, nas quais subo para ver o mar. O mar sempre me deu essa sensação de completude; aqui não é diferente. Para os japoneses, o mar é a mãe. Os russos chamam o rio Volga de Mãe Volga. Nós, afinal, passamos uns bons nove meses n'água, antes de nascer. Vai ver é isso, saudades do útero. Mas não, é o conjunto: ondas, barulho, cheiro, vento, e a promessa de vida, de sustento, de novas terras; o mistério e o infinito. Tento olhar para esse mar com os olhos de um português do século XIV, prestes a se lançar numa viagem sem garantias. Arrepio. Ao fundo, Peniche e, escondida no nevoeiro, a ilha Berlenga, que Mané me diz ser acessível pela barca, atravessando esse mar bravio. Passeio que vai ficar para a próxima. Chega de nostalgia. Ando pela praia e constato que a água é mesmo fria, gelada. Por isso eles gostam tanto de ir para o Brasil (leia-se, para as praias brasileiras). Damos uma volta pela ponta da direita da praia, recuperada recentemente, até decidirem ir comer em Peniche, no Cabo Carvoeiro. Mas uma parte dos restaurantes aqui não servem almoço depois das três. É, mesmo em pontos turísticos. Bato umas fotos e voltamos a Baleal para comer n'Os Acácios, onde finalmente experimento as sardinhas portuguesas, que não têm nada de mais. São gostosas, sim, mas a briga com as espinhas não vale a pena. A baba de camelo, doce de ovos, amêndoas e creme de leite, compensa tudo. E o café Tenho tomado mais café aqui do que em São Paulo, se isso é possível. E eles não se fazem de rogados: me acompanham a cada xícara. Paramos na volta em Caldas da Rainha numa pastelaria em frente ao parque Dom Carlos I para comer trouxas de ovos, um doce de fios de ovos montados em forma de cone que faz a cidade famosa. Manoel, se não disse antes, tem dois filhos, um moleque de dois anos e uma menina de sete meses. Eu já morria de vontade de ser pai. Passar o fim de semana com os dois só fez piorar Nem o choro esporádico (no caminho ou na casa) fez esmorecer a simpatia. À tarde damos um pulo até Santarém, Manoel quer me mostrar a Porta do Sol, uma fortificação transformada em parque e mirante. Dali domina-se o vale do Tejo até onde a vista alcança. Uma estátua de Afonso Henriques (Afonso I), que se proclamou o primeiro rei de Portugal em 1139, fica no meio da praça, mas não sei se a fortificação data dessa época. Não me admiraria se fosse. As seteiras e a altura de tiro das mesmas provam que os portugueses da época deviam ter minha altura, pouco mais, pouco menos. Ou não A luz de Portugal é a segunda prova do meu desterro. Aqui faz sol da sete da manhã até as oito da noite , no verão, é claro. Mas a luz é muito diferente do Brasil. Parece mais dura, mais invasiva. Luz através, em vez de luz sobre. Faz algum sentido? À noite, café no boteco (que nescafé não dá) e um passeio pela vila. Dez minutos leva o passeio, e visitamos tudo. E é daí que vem a terceira e definitiva prova do meu exílio: o céu. Cadê o Cruzeiro do Sul? Fico completamente desorientado. Em New York eu sequer vi o céu à noite (uma semana de tempo ruim, fora a poluição). Aqui, com esse céu limpíssimo, as estrelas resplandecem e me deixam boquiaberto. Nada reconheço desse céu. Nada sei desta terra. |