Os Mutantes são demais (Revista Realidade, 1969)
Multidão hostil, uma vaia formidável
Estava tudo pronto para aquele ensaio do espetáculo que a Rhodia apresentaria na Feira de Utilidades Domésticas, no Parque Ibirapuera, São Paulo, em fins de abril. Cenários montados, másicos a postos, contra-regras correndo sem parar, cuidando dos últimos retoques. Só faltavam Os Mutantes, o conjunto que tocaria, cantaria e representaria. Assim que eles chegaram, o produtor levou as mãos à cabeça, em desespero: um dos integrantes do conjunto, Arnaldo, estava com o braço engessado. Seu rosto tinha uma expressão de dor.
De repente, Arnaldo começou a rir. Calmamente, retirou o gesso colado com esparadrapo e exibiu o braço sem um arranhão. O produtor suspirou aliviado. Mas, ainda mal refeito do susto, foi assaltado por uma dúvida.
- Você é maluco, rapaz?
Arnaldo, seu irmão Sérgio e Rita Lee, a moça loura do conjunto, muitas vezes ouviram perguntas desse tipo da gente que não os conhece bem. Só que na vida real Os Mutantes são exatamente como aparecem na televisão e em outras apresentações públicas: alegres, descontraídos, otimistas, brincalhões. E não se surpreendem com os comentários sobre o modo como se comportam, as roupas que vestem, as músicas que cantam, os instrumentos que tocam, as composições que fazem.
- São uns alienados.
- Esses caras pesquisam.
- Querem imitar os Beatles sem o talento dos Beatles.
- Ih, lá vem aqueles chatos! Desliga aí essa televisão.
- São geniais!
O santuário profanado
O público e a crítica se dividem ao defini-los, sobretudo porque eles próprios colaboraram para essa confusão. Faziam parte do "grupo baiano" sem ser baianos. Foram tropicalistas sem ser tropicalistas, e sem entender bem do que se tratava. Cantaram e tocaram música popular estrangeira e música erudita. Mas, antes de tudo, Os Mutantes são eles mesmos: tres jovens que buscavam um caminho diferente na música popular e que acreditam tê-lo encontrado. Até conseguir isso, enfrentaram muita vaia. Mas sempre reagiram com otimismo.
- Vaia é uma manifestação - diz Arnaldo. - Pior seria o silêncio.
O grande momento de afirmação de Os Mutantes foi precisamente diante de uma vaia formidável, dada pelas 2 mil pessoas que lotavam o Teatro Paramount, da TV Record, durante o III Festival da Música Popular Brasileira, quando eles acompanharam Gilberto Gil em Domingo no Parque, em setembro de 1967. A presença dos três ali significava uma profanação de um reduto da chamada música popular autêntica: eles eram então um conjunto de ié-ié-ié e, pior ainda, invadiam o Festival empunhando guitarras elétricas. Os puristas da música popular tinham espasmos de indignação.
- Quando nós pisamos no palco, com roupas coloridas e guitarras - relembra Sérgio- foi aquela vaia.
Junto com Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, apresentada uma semana depois no mesmo Festival, Domingo no Par-que era uma tentativa de ligar duas correntes da música popular brasileira: a tradicional, executada com arranjos característicos e instrumentos brasileiros ou já integrados há muito no País, e o ié-ié-ié.
O maestro Rogério Duprat, que há anos fazia música eletrônica em Brasília e que foi o autor do arranjo definitivo de Domingo no Parque, resolveu colocar as guitarras elétricas como uma provocação aos tradicionalistas: tratava-se de enfrentá-los em seu santuário. seu campo mais forte, o festival dá Record. Era uma grande cartada: poderiam vencer a batalha num único lance, ao invés de ganhá-la aos poucos, em discos isolados ou em breves aparições na televisão. Ao convidar Os Mutantes, vinte dias antes da apresentação, o maestro Duprat advertiu-os dos riscos:
- Preparem-se para o pior. Dificilmente vocês escaparão de uma vaia homérica.
Até ali, Os Mutantes só tinham tocado práticamente música jovem estrangeira, cantando em inglês, mas pretendiam executar música brasileira, desde que encontrassem um caminho novo. E o acaso os ajudou. O maestro Chiquinho de Morais, que já os ouvira na TV Bandeirantes, convidou-os para acompanhar Nana Caymmi na gravação de Bom Dia, de autoria dela e de Gil. O baiano estava procurando um conjunto bom e pouco conhecido, sem vícios musicais, para acompanhar Domingo no Parque.
- EIe nos mostrou a música e falou de novas idéias, para o emprego da eletrônica na execução de músicas brasileiras, com letras funcionais, quase como as histórias em quadrinhos, em forma de colagens pop ou concretistas, combinando sons e palavras, mas sem perder a característica nacional. Eu, Sérgio e Rita vibramos: estava ali o caminho musical que procurávamos - conta Arnaldo.
As vaias não impediram o exito, Domingo no Parque ficou em segundo lugar, perdendo apenas para Ponteio, de Edu Lôbo, e depois do Festival permaneceu muito tempo em posição d0 destaque nas paradas de sucesso.
Antes só que bem acompanhado
Alguns meses depois, eles acordaram para a realidade: de conjunto independente, tinham-se transformado em meros acompanhantes de outros artistas. O empresário do grupo era Guilherme Arafljo, o mesmo de Gil e Caetano Veloso, e não lhes dava oportunidade de se apresentarem sozinhos, como faziam antes na TY Bandeirantes, no progra.ma Quadrado e Redondo. Rita Lee diz que ela e os dois companheiros ficaram "numa fossa terrível".
- Fornos contratados pela TV Record pouco depois do Festival, em condições melhores, mas éramos sempre acompanhantes de Gil, Caetano, Gal Costa. Pensávamos entao se não teria sido melhor ficar nas músicas estrangeiras7 cantadas em inglês, ou então seguir o caminho aberto por Domingo no Parque, mas por conta própria.
Havia um precedente que os estimulava a fazer esta última opção. O conjunto argentino The Beat floys, que acompanhara Alegria, Alegria no Festival, acabara por se revoltar contra as condições impostas por Guilherme Araújo e decidira voltar para o ié-ié-ié, para o trabalho independente: antes só do que bem acompanhado.
Mas, para Os Mutantes, a decisão não era tão fácil, O prestígio do conjunto aumentara fabulosamente da noite para o dia, graças à sua ligação com o "grupo baiano". Caetano até compusera Uma música especial para êles, Panis et Circenses, gravada no LP Tropicália, que definiu aficialmente a linha tropicalista e foi considerado por muitos criticos como o mais importante disco de 1968. Em seis das doze faixas, eram Os Mutantes que faziam o acompanhamenro. Estavam numa fase ótima. Mas não era bem isso o que queriam.
A hora da opção: Tinham bom contrato, prestígío, mas eram simples coadjuvantes
Sozinhos, sem romper com Guilherme nem com os baianos, Os Mutantes deram um balanço em sua carreira e decidiram que não podiam continuar como simples coadjuvantes. Precisavam criar também. Ou melhor: continuar criando. Era uma questão de coerência com o que já tinham feito até então, mudando sempre de uma coisa para outra.
Afinal, Arnaldo, Rita e Sérgio decidiram abandonar os baianos. Sentiram que o caminho melhor seria o de compor suas próprias músicas e fazer seus próprios arranjos, dentro de uma linha que fosse jovem como eles e ao nível das estrangeiras, mas ao mesmo tempo brasileira.
- O fato de as músicas serem brasileiras não é apenas um detalhe patriótico - explica Arnaldo.
- Há todo um campo a explorar, porque a nossa música ainda é nova, num país nôvo, sem tradição. Existem recursos primitivos que podem ser aproveitados, como ainda acontece nos Estados Unidos, mas não na Europa, hoje esgotada.
Os irmãos Arnaldo e Sérgio nunca haviam feito música, mas mesmo assim aceitaram o trato que Rita Lee lhes propôs:
nos fins de semana, cada um apresentaria dez músicas inventadas ou, pelo menos, dez temas já esboçados. Quem não conseguisse pagaria uma multa de NCr$ 300. O dinheiro seria aplicado no Ford Fairlane 1960 que os três haviam comprado de sociedade.
Em dois meses, Os Mutantes fizeram mais de sessenta músicas completas. Um apresentava o tema e, se a idéia era boa, os outros o ajudavam a desenvolvê-lo. Primeiro, eles verificavam se a frase musical sugeria tristeza ou alegria; depois, começavam a busca das palavras ou das rimas, escolhendo as que tivessem som bonito. Evitavam, por exemplo, amor e dor, porque, além de gastas, são palavras que consideram feias, secas. Palavras bonitas são musculoso, libélula, lâmpada, sapato, cabelo, olho, mão, relógio, fio, pingente. Palavras feias: cadeira, piano, toalha, almofada, nariz, orelha. Após essa triagem, encaixavam as palavras na música e montavam a história da letra. É o sistema usado pelos Beatles, que chegam a inventar palavras, como obladi-obladá, que não quer dizer nada mas soa bonito.
Assim nasceram Mágica, uma tentativa de ligar a ciranda brasileira ao ié-ié-ié; Caminhante Noturno, inspirada na piada de um homem que seguia uma mulher na rua; Dom Quirote, sátira do personagem de Cervantes. E também O Relógio, Ave Gengis Khan e Senhor F, gravadas no primeiro LP do conjunto, lançado no meio do ano passado. O disco tinha ainda muita influência dos baianos, com quatro músicas dêles (Bat Macumba, Trem Fantssma, Panis et Circenses e Baby), e um arranjo moderno para Maria Fulô, do folclore nacional. Vendeu 30 mil cópias, número que no Brasil equivale a um sucesso.
Um garoto de opinião
Sérgio foi o primeiro a acreditar que podia obter êxito e ganhar dinheiro com música.
Aos catorze anos, muito antes de ser um dos Mutantes, estava na primeira série do Instituto de Educação Caetano de Campos e vivia matando aulas para ir ao cinema. Um dia, disse à mãe, em tom solene:
- Sou um profissional da guitarra. Vou viver disto e parar de estudar bobagens na escola.
Dona Clarice Leite não concordou com a idéia do filho. Como castigo, passou um ano sem dar nada a ele - nem roupas, nem sapatos, nem presentes. Sérgio aguentou firme em sua decisão. Quando já era um Mutante, a mãe reconheceu nele um rapaz de opinião.
Uma espécie de atavismo empurrava Arnaldo e Sérgio para a música. O pai, Sérgio Dias Batista, foi secretário particular do ex-Governador Ademar de Barros durante muitos anos, mas antes pertenceu ao Coral Paulista, do qual era tenor principal. Foi ainda dançarino do Balé Português e poeta nas horas vagas: é o autor da versão brasileira da músiCa de Natal Noite Feliz, assinada com pseudônimo. Dona Clarice é pianista, concertista e compositora de música erudita, 'mas sem êxito. O irmão mais velho de Arnaldo, Cláudio César, de 23 anos, já casado, fabrica instrumentos musicais elétricos e amplificadores de som.
No começo tocavam quase de graça, sem protesto: só queriam treinar, aparecer
Arnaldo, que agorajem vinste anos, era muito garôto quando a mãe resolveu faze-lo pian ista. Ele estudava contrafeito, por obrigação, e Dona Clarice terminou por desistir de vê-lo algum dia no Municipal, mas mesmo assim as liçóes continuaram. Arnaldo era mau aluno de piano, porém ótimo estudante do Instituto Caetano de Campos, onde fez o curso primário e o ginasial, sempre como primeiro aluno. Gostava de línguas, pensava estudar direito ou filosofia. Chegou a fazer o primeiro ano clássico no Mackenzie, mas parou o curso no ano passado, quando já era um Mutante e ganhava dinheiro com música.
Na casa sem luxo de dois pavimentos onde nasceram e moram até hoje, na Vila Pompéia, perto do campo do Paimeiras, em São Paulo, Arnaldo e Sérgio recebiam um amigo, Rafael Vilardi, que os influenciava muito nos brinquedos. Primeiro foi a mania da astronáutica, montando e desmontando telescópios, para estudar as estrelas no Planetário do Ibirapuera. Depois, a do aeromodelismo. Construíam avióezinhos e os destruiam em combates aéreos. Um dia, há oito anos, Rafael apareceu com um violão. Surgiu a mania dos conjuntos musicais.
- Mas aprender música -diz Arnaldo - exigia tempo. Com os telescópios e o aeromodelismo, conseguíamos tudo imediatamente. Na música, precisávamos não só aprender, mas também nos entrosar. Passamos um ano inteiro aprendendo a tocar guitarra. Serginho era muito pequeno, só ficava olhando. Como não tínhamos dinheiro para comprar uma guitarra, Cláudio construiu uma usando a tampa de uma privada e o braço de um violão. Só comprou as partes elétricas. Guardamos esta guitarra até hoje, como lembrança.
A época era de transição do rock'n roll para o twist. Rafael organizou um conjunto, os Wooden Faces (Caras de Pau), formado por ele, na guitarra-solo, Arnaldo, no contrabaixo, e mais dois amigos: Tobé, na guitarra-base, e Robertinho, na bateria. Havia ainda um pianista, Sérgio Orlando, que tocava de vez em quando, com mania de bossa-nova e jazz. Os outros rapazes não gostavam: passavam qualquer Garota de Ipanema ou Barquinho para o twist, às vezes em pleno baile, depois de rigoros ensaios. Nesses bailes, tocavam por NCr$ 30, mas o difícil era receber. Eles não ligavam para o pagamento: queriam era treinar e aparecer. Imitavam os americanos The Ventures, Arnaldo queria ser um Elvis Presley: passava brilhantina no cabelo, ajeitava o topete. Só que não podia cantar. Naquela época, no mundo inteiro, os conjuntos apenas tocavam.
Quando os Beaties iniciaram a nova moda, cantando além de tocar, Arnaldo quis cantar If 1 Feil, de Lennon e McCartney, dois dos Beatles, mas criou uma crise interna no conjunto, já que uma ala desejava continuar apenas tocando. Após três anos de vida, morriam os Wooden Faces.
Rita, a rata branquela
Foi há cinco anos que Arnaldo e Sérgio conheceram Rita Lee Jones, filha de pai americano e mãe italiana e que ainda mora na casa em que nasceu, na Vila Mariana, São Paulo. O pai, o dentista Chartes Fenley Jones, nada tem de Lee no sobrenome: fêz questão de colocar êsse nome nas três filhas - Virgínia, Mary e Rita - em homenagem ao General Lee, comandante das tropas sulistas durante a Guerra de Secessão dos Estados Unidos.
Rita era boa aluna do Liceu Pasteur, onde terminou o curso científico, e chegou a freqúentar um cursinho para a Escola de Comunicações, mas parou no ano passado, quando Os Mutantes se firmaram. Sempre gostou de música: na época da formatura, pediu ao pai que, em lugar de gastar dinheiro na festa, lhe desse uma bateria de presente. Charles Fenley Jones deu-lhe uma de NCr$ 60, muito ruim.
Em 1962, com catorze anos, Rita formou com três meninas do Liceu Pasteur um conjunto vocal, o Teen Ager Sisters, que só cantava música folclórica americana. Eram todas muito louras como Rita, e por isso os amigos apelidaram o conjunto de "rataria branquela". Duas delas, uma inglesa e outra suíça, voltaram aos seus países um ano depois. Rita ficou sem o conjunto: restara apenas sua colega paulista Sueli, hoje também cantora.
Num show de colégios no Teatro João Caetano, São Paulo, Rita conheceu Arnaldo, de quem é namorada desde então. Arnaldo, Rafael e Sérgio -que aprendera a tocar guitarra olhando os outros - tinham formado um trio de twist, os Flashs, meses depois da extinção dos Wooden Faces. Era um conjunto provisório, que eles pretendiam ampliar. Arnaldo fêz um convite às duas meninas:
- Por que vocês não vêm cantar com a gente?
Rita e Sueli aceitaram, nasceu então o O'Seis, formado pelos cinco e mais um baterista, Pastura. O nome O'Seis, além de designar o número de integrantes, tinha a intenção de fazer um trocadilho de ocês, forma acaipirada de vocês. O conjunto tocava e cantava músicas dos Beatles, sempre em inglês, e chcgou a participar dos primeiros programas Jovem Guarda, de Roberto Carlos, em fins de 1965, na TV Record. Arnaldo lançou a moda de um bonezinho e umas botinhas que passaram a ser usados por muitos conjuntos da época.
Rafael e Rita Compuseram duas músicas que o O'Seis chegou a gravar na Continental. Eram dois twists macabros, Suicída ("pulei do viaduto do Chá", "fui enterrado com a roupa do meu tio") e Apocalipse, a história de um homem que destruiu o mundo e quis matar-se porque ficou sozinho. A gravação ficou tão ruim, que vendeu apenas cinqúenta cópias. O próprio conjunto pediu à Continental que retirasse o disco das lojas.
O O'Seis durou dois anos. Com a ida de Sueli para os Estados Unidos, onde conseguiu uma bolsa de estudos, os remanescentes tentaram colocar uma moça no lugar, mas não deu certo e o conjunto acabou. Rafael abandonou temporariamente a música, o baterista foi para outro grupo. Restavam apenas Arnaldo, Sérgio e Rita Lee. Sem nenhum conjunto, Rita ficou meio perdida. Voltou a estudar na escola com mais interesse, mas de vez em quando tinha impetos de abandonar tudo. Quis ser aeromoça. Como falava bem inglês, achou que era fácil. Chegou asonhar com viagens ao redor do mundo, mas logo verificou que não tinha idade para ser aeromoça.- Em compensação - brinca Arnaldo - é uma moça aérea até hoje.
Dois perdidos por seis meses
Como Rita Lee, Arnaldo e Sérgio também ficaram perdidos uns seis meses. Arnaldo voltou a dedicar-se ao piano, passou a gostar de bossa-nova e Jazz, chegou a dar algumas canjas (sessões avulsas, de graça) pela cidade. Para impressionar Rita Lee, começou a estudar inglês. Sérgio, que se tornara um bom guitarrista, tentou formar uma dezena de conjuntos, mas nem um só deu certo. Resolveu dar aulas particulares de guitarra, em casa, mas os alunos eram tão ruins, que desistiu.
Em fins de 1966, Arnaldo teve um estalo: o de formar um conjunto de apenas três integrantes, ele, Sérgio e Rita. Arnaldo toca piano, órgão, guitarra-contrabaixo e flauta-doce; Sérgio, guitarra-solo, bateria.; Rita, banjo, pandeiro, flauta-doce, sininhos. E os três cantam. Não seria difícil se organizarem. Formaram então, com guitarra, baixo, flauta ou pandeiro, um trio sem nome. Era o embrião de Os Mutantes.
Na época, Ronnie Von tinha um programa de ié-ié-ié com boa audiência na TV Record. Como êle gostava de música clássica, Arnaldo, Rita e Sérgio ensaiaram bem a Marcha Turca de Mozart, em ritmo de rock'n roil, e se apresentaram lá. Além de bastante aplaudidos, encontraram um empresário, Asdrúbal Galvão, que se interessou por eles e arranjou-lhes um espetáculo no restaurante Urso Branco. Sérgio, (hoje com dezoito anos), ainda era menor, teve de tocar escondido atrás da cortina, por causa do Juizado.
O conjunto ia bem, preocupava-se em ensaiar bastante. Mas faltava um nome definitivo. Com Ronnie Von e o empresário, os três passaram a pensar em vários - Os Bruxos foi um dêles. Arnaldo, Rita e Sérgio queriam um que não fosse estrangeiro, costume já tão batido, nem um nome brasileiro de mau gosto. No meio de mil, surgiu aquele que ficaria: Os Mutantes.
Já como Os Mutantes, eles se apresentaram mais seis vezes no programa de Ronnie Von, fazendo o que queriam: clássicos em ritmo jovem, músicas dos Beatles. Ia tudo bem, até que num sábado o produtor Randal Juliano insistiu para que tocassem valsinhas e acompanhassem o cantor Altemar Dutra.
- Ou fazem como eu quero, ou vão embora - disse.
Eles preferiram ir embora. Passaram a cantar em inglês no programa Quadrado e Redondo, de Caetano Zama, até que conheceram Gilberto Gil.
Não sao gênios, nem loucos: Adoram coisas surrealistas, que causam choque
Os Mutantes não são alienados, nem gênios, nem loucos. São criaturas comuns, com a diferença de que gostam de coisas surrealistas. Por isso, para cantar usam roupas extravagantes, inventadas por eles mesmos. Mesmo quando aparecem vestidos à moda medieval, ou com Rita Lee de noiva, querem ser surrealistas. Geralmente, Rita faz o desenho e sua mãe, Dona Romilda Padula, é quem costura. Quando são roupas de plástico, vão a uma oficina especializada de São Paulo.
Eles sabem o que querem
Os Mutantes não têm contrato com qualquer emissora de televisao, mas trabalham muito, como free Iancers, fazendo sitoiva em São Paulo, Rio, Porto Alegre, Belo Horizonte. Cobram NG$ 6 000, livres de despesas. No Sul, fazem muito sucesso: suas apresentações, em têrmos de público, lembram as de Roberto Carlos. O contrato de publicidade com a Shell - que os lançou para enfrentar o Tigre da Esso - deu-lhes dinheiro e promoção em todo o País. Sles preferem não dizer quanto ganham:
- Pode-se dizer que hoje já podemos pensar em comprar carros ou casa, mas não é muito.
Descontados os 20 por cento do empresário e os impostos, ainda temos de dividir a renda por três.
Antes de viajar para a Europa, em janeiro dêste ano, Os Mutantes gravaram o segundo LP com sete músicas dêles -só no primeiro mês venderam tanto quanto o primeiro disco - e um compacto duplo com Caetano Veloso. Em Cannes, França, quando cantaram Caminhante Noturno no MIDEM (Mercado Internacional do Disco e de Edições Musicais), conseguiram destacar-se entre importantes conjuntos europeus.
A crítica comparou-os aos Beatles e aos The Mama's and the Papa's, mas com um jeito todo brasileiro de cantar. A Cash Box, a revista americana de maior prestígio no setor musical, viu na música desses três jovens um fenômeno tão importante quanto a bossa-nova.
Durante a temporada no exterior, não se impressionaram com as apresentações na França e em Portugal, nem com os contatos com a gravadora francesa que vai lançar seus discos, nem com alegres passeios por Paris, Londres, Nova York. Califórnia. O que os marcou fundo foram as pesquisas de sons e recursos de gravação que aprenderam nos estúdios dos Beatles, na Inglaterra, e em alguns outros dos Estados Unidos. Mais importante foi o amadurecimento musical que tiveram: voltaram sabendo que a técnica é atualmente quase tudo na música e que nesse campo, principalmente em gravações, ainda há muito por fazer no Brasil.
Apesar das brincadeiras, das reações infantis que por vêzes revelam, esses três jovens trabalham sério. Arnaldo pretende estudar música com empenho, sonha ser maestro. No segundo semestre, os três voltarão à Europa, para uma nova temporada. No Brasil, pensam fazer uma peça musical, outro LP mais avançado, um novo programa de televisão, usando todos os recursos possíveis de lentes, video-tapes, estúdios e exteriores - um projeto bem louco, como o jingle que gravaram para a Shell. E também um filme em cores, bem bacana, sem cair na chanchada. Só querem um bom diretor, porque a história eles mesmos farão. E continuarão a participar dos festivais de música brasileira, sem se importar com as vaias. Já encontraram seu caminho, fazem de uma frase quase uma divisa, uma definição ante a vida:
- Vaia é uma manifestação. Pior seria o silêncio.
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