Rita Lee


"Adeus sarjeta/buana me salvou/não quero gorjeta/ faço tudo por amor." Maior bregão. Angela Maria? Bolerão da Rádio Nacional, anos 50? Ou um tipo de bom humor que pautou os discos de uma cantora que foi do lança-perfume para um tombo num grande festival e deu a volta por cima, com um disco erroneamente caracterizado de "baixo astral"?
Vale a última das alternativas, e a letra é um trecho da brega "Joana Buana", com acordeon e tudo, uma das muitas excluídas da hora do acerto final de Rita e Roberto. Um produto controvertido, garimpado cuidadosamente, revelando o brilho de pepitas arrancadas de quatro paredes de um estúdio.
"Foi um disco diferente", conta Rita, sentada num quarto de hotel no centro de São Paulo, esperando a hora de subir ao terraço do Banespa. Em frente ao viaduto do Chá, para gravar um trecho do clipe de "Vítima''. Na TV à sua frente, a reprise da novela Jogo da vida. Jogo duro. "A história do Rock in Rio Foi um desespero mesmo. Uma coisa de estar fora da consciência até as cortinas se abrirem."
Rita pode falar agora aliviada sobre seu grande "choque cultural". Sem preparo físico, esperando a magia que não veio - e que viria de um trabalho com o "guru" Thomas Green Morton, o entortador de talheres cultuado, entre outros, por Pepeu e Baby - vinda de um baque emocional (a morte do pai), de um disco péssimo (BomBom. Um confeito sensaborão), "carente pra xuxu", só foi descobrir que estava cortejando o desastre "depois de ter passado pelo vexame todo".
A dupla só sentiu que tinha dado a volta por cima quando acabou de gravar o disco. Antes da catástrofe carioca, estava num "processo superlegal, o de fazer as demos (fitas de demonstração)". Entravam num estúdio sem levar nada pronto de casa e trabalhavam freneticamente. Decodificando novos instrumentos, como o poderoso DX-1 da Yamaha, levantando idéias e, pela primeira vez, fazendo um disco "muito mais puxado pelas musicas".
Rita tá mau mesmo. Está querendo se vingar. Usou "Yê Yê Yê" ("Vanguarda moderninha/anfetamina sonolenta/yê yê yê dos 80") para dar um pito nos roqueiros. Reações suscitadas pela primeira audição do disco por um amplo espectro da crítica e por coleguinhas que resolveram vestir a carapuça. "Mas é um trabalho tão pra cima, nao sei por que ficam martelando, querendo que eu faça o segundo Lança Perfume, o Rock III, o Rambo II. A crítica caiu de pau só porque eu não estava me repetindo. É de estúdio, sim. Mas é um trabalho de duas pessoas que passaram por uma barra pesada, que saíram vivos, superotimistas com o mundo, super pé no chão, superdesintoxicados de tudo", desabafa Rita antes de se virar para a maquiadora e perguntar se o batom é o vermelho, para combinar com a roupa branca, bordada, de tom oriental.

A tragédia alegre e a música visual da nova fase: como nos velhos tempos


Mesmo este desabafo fica longe da ira dos ameaçadores dragões de sua roupa. Ela está calma, com uma tranquilidade garantida por vinte anos de janela e uma trajetória que passa pelo grupo folk da escola, pelo pré-Mutante, O Conjunto, pelos Mutantes e a Tropicália e pelo começo do estouro com Babilônia (1977), que a preparava para ser uma das poucas unanimidades nacionais. "O meu negócio do mendigo musical, é só uma brincadeira com o rock. Por quê? Não pode?" Rita e Roberto tem um lado alegre? Tem sim: "O lado alegre da tragédia".

Relembrando os Mutantes de "Suicida" e os bolerões da irmã - porra-louca nunca mais


A nova fase, também. Não é auto-biográfica, ''é só cinematogrâflca", puxando um lado visual sempre presente. (E eu me lembro aqui das hilárias e pandemônicas gravações de Divino Maravilhoso, no final dos anos 60, na falecida TV Tupi. Cor perde.) Assim como não é autobiográfica a letra de "Glória F", uma suicida que se joga do viaduto do Chá, se esborracha e volta, remendada. E apenas uma releitura de "Suicida", dos Mutantes (e que assustou Rita durante a gravação do clip. vestida de Julie Andrews, em Noviça Rebelde, ela ameaçou se jogar do viaduto três vezes, para absoluta indiferença dos transeuntes).
Assim como repescou "Suicida", Rita, num dia de chuva, começou a se lembrar da irmã ouvindo Dolores Duran, Tito Madi, João Gilberto, "aquele sofrimento de meu amor acabou, meu mundo caiu", e sapecou a bossa-bolero "Molambo Souvenir" ("A nossa fase paz e amor foi porra-louca demais"), uma "viagem pelo Brasil dos anos 50, e não um molambo qualquer".
Um dia de chuva como os muitos em que ela, uma mulher essencialmente caseira, passa em casa, lendo George Orwell, as ficções científicas da coleção portuguesa "Os Argonautas", pilhas de gibi e a embalagem de Kleenex, entre as muitas lágrimas provocadas por Furacão Elis (outra unanimidade, só que de uma trip infelizmente sem retorno). Uma mulher que gostaria de ter, na formação de uma banda ideal, Sting no baixo e Steward Copeland na bateria. Que ouve tudo que sai, mas que está mais ligada no trabalho das bandas novas, brasileiras e estrangeiras.
"Entre os discos dos Stones e a moçada nova, prefiro a moçada nova. Beatles também não consigo mais ouvir. Gosto de uma coisa mais dura, mais de agora. Até o Bruce já cansou. Sou mais a Laurie Anderson." E a vanguarda é temperada com o Tears for Fears, "com um trabalho de muita simplicidade", pelo Eurythmics, "genial" -sintomaticamente, duas duplas - e pelo U2, "bom mas já um pouco cansativo".
Para quem "não deu o coração" em BomBom, jogando a bomba na mão dos americanos do estúdio, da "eficiência a serviço da competência ou vice-versa", e resolveu voltar à tona com Rita e Roberto", o que pode pintar pela frente? "Em matéria de show a gente está vai, não vai, mas queríamos um teatro pequeno para começar tudo de novo. Para estar mais próxima das pessoas, o que não acontece desde Babilônia".
O"porão", como à volta dos tempos do underground do Teatro Ruth Escobar e do excelente Tutti Frutti. Um porão que pretende incorporar também gente de fora, e shows europeus, "com Sade, o pessoal da bossa inglesa". Sade, aliás, recebeu fitas de Rita com músicas como "Mania de Você", "Caso Sério" e, como outros grupos ingleses, manifestou interesse em um trabalho conjunto.
De quebra, a possível edição de um livro que vem sendo escrito há anos, uma coleção de fragmentos com memórias, poemas, contos, histórias infantis e muitas fotos. "Só preciso da ajuda de uma pessoa disciplinada." Pessoa que falta também na amarração de um projeto de rádio, motivo de diversas reuniões entre os dois, Antonio Bivar, Okky de Souza, Marcelo Paiva, Patrício Bisso e Mônica Figueiredo, e que nunca chegou a decolar. E um filme, com direção de Bivar, com um personagem que, "se possível", nada teria a ver com a Rita popstar.
Muitos planos para muito fôlego. Como no "2001" dos Mutantes: "Astronauta libertado/minha vida me ultrapassa/em qualquer rota que eu faça/dei um grito no escuro/sou parceiro do futuro na reluzente galáxia".
José Eduardo Mendonça

E viva ela!


caetano: "Depois de canções como 'Mamãe Natureza' e 'Mania de Você', toda vez que encontrava com ela, a chamava de 'meu poeta'
Roger Ultraje: "É um barato. Tipo rainha mesmo. E a nossa irmã mais velha. Se o disco é bom? Eu já esperava isto".
Liminha ex-Mutantes: "Quanto às cobranças que andam fazendo em relação à alegria, não se tem sempre 18 anos para se fazer gracinhas. Esta mudança é fruto do amadurecimento e é também arrojo".
Erasmo carlos: "Gosto cada dia mais. Rita já se tomou uma pessoa que se der um espirro eu gosto".
Herbert Vianna: "Não sou da apologia do contra, mas este disco da Rita e Roberto é contra tudo que esperavam. Sou a favor de se fazer o que se tem vontade, e foi o que fizeram
Lobão: "Foi a primeira pessoa com o significado que transou o som da palavra. Não havia esta qualidade do rock antes dela".
Gilberto Gil: "Acho que ela talvez esteja com dificuldade de deixar o espaço jovial que sempre ocupou. Mas tem a capacidade positiva de deixar o trabalho atual mostrar estas questões que está vivendo".
cazuza: "Ela sempre esteve na frente e agora volta a mostrar isto. Tinha virado a namoradinha do Brasil e agora deu uma bofetada em 'Mania de Você'
Paula Toller: "Foi a primeira pessoa do rock que levantou a bandeira do romantismo, de assumir o casamento e dizer eu gosto".
Evandro Mesquita: "Hoje eu a considero uma guerreira consciente do que fez, sem a ansiedade de quem está começando, mostrando serviço"
Lulu Santos: "Na hora de me modelar, optei por um artista nacional que já tinha o beneplácito do público brasileiro. Este artista foi Rita. Ela foi minha luz-guia
Bruno Biquini Cavadão: "É um dos poucos artistas que se mantiveram joviais em relação ao que está acontecendo. O que ela me passa e que o rock é uma coisa contínua, que não vai sumir depois do boom".
Colaboraram Sonia Maia, Carmen Pereira
1