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O AMOR
É UMA FALÁCIA
Max Schulmon
Eu era frio e lógico. Sutil, calculista, perspicaz,
arguto e astuto - era tudo isso. Tinha cérebro poderoso
como um dínamo, preciso como uma balança de
farmácia, penetrante como um bisturi. E tinha imagem
- só dezoito anos.
Não é comum ver alguém tão jovem
com um intelecto tão gigantesco. Tomem, por exemplo,
o caso do meu companheiro de quarto na universidade, Petey
Bellows. Mesma idade, mesma formação, mas burro
como uma vaca. Um bom sujeito, compreendem? Mas sem nada lá
em cima. Do tipo emocional. Instável, impressionável.
Pior do que tudo, dado a manias. Eu afirmo que a mania é
a própria negação da razão. Deixar-se
levar por qualquer nova moda que apareça, entregar-se
a alguma idiotice só porque os outros a seguem, isto,
para mim, é o cúmulo da insensatez. Petey, no
entanto, não pensava assim.
Certa tarde, encontrei-o deitado na cama com tal expressão
de sofrimento no rosto que o meu diagnóstico foi imediato:
apendicite.
- Não se mexa. Não tome laxativo. Vou chamar
o médico.
- Marmota - balbuciou ele.
- Marmota? - disse eu, interrompendo minha corrida.
- Quero um casaco de pele de marmota - gemeu ele.
Percebi que seu problema não era físico, mas
mental.
- Por que você quer um casaco de pele de marmota?
- Eu devia ter adivinhado - gritou ele, dando tapas nas próprias
têmporas.
- Devia ter adivinhado que eles voltariam com o Charleston.
Como um idiota, gastei todo meu dinheiro em livros para as
aulas e agora não posso comprar um casado de pele de
marmota.
- Quer dizer - perguntei incrédulo - que estão
mesmo usando casacos de pele de marmota outra vez?
- Todas as pessoas importantes da Universidade estão.
Onde tem andado?
- Na biblioteca - respondi, citando um lugar não freqüentado
pelas pessoas importantes da Universidade.
Ele saltou da cama e pôs-se a andar de um lado para
o outro do quarto.
- Preciso conseguir um casaco de pele de marmota - disse,
exaltando. - Preciso.
- Por que, Petey? Veja a coisa racionalmente. Casacos de pele
de marmota são anti-higiênicos. Soltam pêlos.
Cheiram mal. São pesados, são feios, são...
- Você não compreende - interrompeu ele com impaciência.
É o que todos estão usando. Você não
quer andar na moda?
- Não - respondi, sinceramente.
- Pois eu, sim - declarou ele. - Daria tudo para ter um casaco
de pele de marmota. Tudo.
Aquele instrumento de precisão, meu cérebro,
começou a funcionar a todo vapor.
- Tudo? - perguntei, examinando seu rosto com olhos semicerrados.
- Tudo - confirmou ele, em todo dramático.
Alisei o queixo, pensativo. Eu, por acaso, sabia onde encontrar
um casaco de pele de marmota. Meu pai usava um nos seus tempos
de estudante; estava agora dentro de um malão, no sótão
da nossa casa. E, também por acaso, Petey tinha algo
que eu queria. Não era dele, exatamente, mas pelo menos
tinha alguns direitos sobre ela. Refiro-me à sua pequena,
Polly Espy.
Eu há muito desejava Polly Espy. Apresso-me a esclarecer
que meu desejo não era de natureza emotiva. A moça,
não há dúvida, despertava emoções,
mas eu não era daqueles que se deixam dominar pelo
coração.
Desejava Polly para fins engenhosamente calculados e inteiramente
cerebrais.
Cursava eu o primeiro ano de Direito. Dali a algum tempo,
estaria me iniciando na profissão. Sabia muito bem
a importância que tinha a esposa na vida e na carreira
de um advogado. Os advogados de sucesso, segundo minhas observações,
eram quase sempre casados com mulheres bonitas, graciosas
e inteligentes. Com uma única exceção,
Polly preenchia perfeitamente estes requisitos.
Era bonita. Suas proporções ainda não
eram clássicas, mas eu tinha certeza de que o tempo
se encarregaria de fornecer o que faltava. A estrutura básica
estava lá.
Graciosa também era. Por graciosa, quero dizer, cheio
de graças faciais. Tinha o porte ereto, a naturalidade
no andar e a elegância que deixavam transparecer a melhor
das linhagens. À mesa, suas maneiras eram finíssimas.
Eu já vira Polly no barzinho da escola comendo a especialidade
da casa - um sanduíche que continha pedaços
de carne assada, molho, castanha e repolho - sem nem sequer
umedecer os dedos.
Inteligente ela não era. Na verdade, tendia para o
oposto. Mas eu confiava em que, sob minha tutela, haveria
de tornar-se brilhante. Pelo menos, valia a pena tentar. Afinal
de contas, é mais fácil fazer uma moça
bonita e burra ficar inteligente do que uma moça feia
e inteligente ficar bonita.
- Petey - perguntei - você ama Polly Espy?
- Acho-a uma boa garota - respondeu - mas não sei se
chamaria isso de amor. Por quê?
- Você - continuei - tem alguma espécie de arranjo
formal com ela? Quero dizer, vocês saem exclusivamente
um com o outro?
- Não. Nos vemos seguidamente, mas saímos os
dois com outros também. Por quê?
- Existe alguém - perguntei - algum outro homem de
quem ela gosta de maneira especial?
- Que eu saiba, não. Por quê?
Fiz que sim com a cabeça, satisfeito.
- Em outras palavras, a não ser por você, o campo
está livre, é isto?
- Acho que sim. Aonde quer chegar?
- Nada, nada - respondi com inocência, tirando minha
mala de dentro do armário.
- Onde é que você vai? - quis saber Petey.
- Passar o fim-de-semana em casa.
Atirei algumas roupas dentro da mala.
- Escute - disse Petey, apegando-se, com força, ao
meu braço - em casa, será que você não
poderia pedir dinheiro ao seu pai, e me emprestar para comprar
um casaco de pele de marmota?
- Posso até fazer mais do que isso - respondi, piscando
o olho misteriosamente. Fechei a mala e saí.
- Olhe - disse ao Petey, ao voltar na segunda-feira de manhã.
Abri a mala e mostrei o enorme objeto cabeludo e fedorento
que meu pai usara ao volante do seu Stutz Bearcat em 1925.
- Santo Pai! - exclamou Petey, com reverência. Mergulhou
as mãos no pêlo do casaco, e depois o rosto.
- Santo Pai! - repetiu, umas quinze ou vinte vezes.
- Você gostaria de ficar com ele? - perguntei.
- Sim! - gritou ele, apertando a coisa sebosa contra o peito.
Em seguida, seus olhos tomaram um ar precavido. - O que você
quer em troca?
- A sua pequena - disse eu, não desperdiçando
palavras.
- Polly? - sussurrou Petey, horrorizado. - Você quer
a Polly?
- Isso mesmo.
Ele jogou o casaco para longe.
- Nunca! - declarou, resoluto.
Dei de ombros.
- O.K. Se você não quer andar na moda, o problema
é seu
Sentei-me numa cadeira e fingi que lia um livro, mas continuei
espiando Petey, com o rabo dos olhos. Era um homem partido
em dois. Primeiro olhava para o casaco com a expressão
de uma criança desamparada à vitrina de uma
confeitaria. Depois dava-lhe as costas e cerrava os dentes,
altivo. Depois voltava a olhar para o casaco, com uma expressão
ainda maior de desejo no rosto. Depois virava-se outra vez,
mas agora com tanta resolução. Sua cabeça
ia e vinha, o desejo ascendendo, a resolução
descendendo. Finalmente, não se virou mais; ficou olhando
para o casaco com pura lascívia.
- Não é como se eu estivesse apaixonado por
Polly - balbuciou.
- Só mesmo a namorando, ou coisa parecida.
- Isso mesmo - murmurei.
- Afinal, Polly significa o que para mim, ou eu para ela?
- Nada - respondi.
- Foi uma coisa banal. Nos divertimos um pouco, só
isto.
- Experimente o casaco - disse eu.
Obedeceu. O casaco, lhe cobria as orelhas e caía até
os sapatos. Ele parecia um monte de marmotas mortas.
- Serve perfeitamente - disse, contente.
Levantei-me da cadeira e perguntei, estendendo a mão:
- Negócio feito?
Ele engoliu em seco.
- Feito - disse, e apertou minha mão.
Saí com Polly pela primeira vez na noite seguinte.
O primeiro programa teria o caráter de pesquisa preparatória.
Eu desejava saber o trabalho que me esperava para elevar a
sua mente ao nível desejado. Levei-a para jantar.
- Puxa, que jantar bacana! - disse ela, quando saímos
do restaurante. Fomos ao cinema.
- Puxa, que filme bacana! - disse ela, quando saímos
do cinema.
Levei-a para casa.
- Puxa, foi um programa bacana! - disse ela, ao me desejar
boa noite.
Voltei para o quarto com o coração pesado. Eu
subestimara gravemente as proporções da minha
tarefa. A ignorância daquela moça era aterradora.
E não seria o bastante apenas instruí-la. Era
preciso, antes de tudo, ensiná-la a pensar. O empreendimento
se me afigurava gigantesco, e a princípio me vi inclinado
a devolvê-la a Petey. Mas aí comecei a pensar
nos seus dotes físicos generosos e na maneira como
entrava numa sala e segurava uma faca e um garfo, e decidi
tentar novamente.
Procedi, como sempre, sistematicamente. Dei-lhe um curso de
Lógica. Acontece que, como estudante de Direito, eu
freqüentava na ocasião salas de Lógica,
e portanto tinha tudo na ponta da língua.
- Polly - disse eu, quando a fui buscar para nosso segundo
programa.
- Esta noite vamos até o parque conversar.
- Oh, que bacana! - respondeu ela.
Uma coisa deve ser dita em favor da moça: seria difícil
encontrar alguém tão bem disposta para tudo.
Fomos até o parque, o local de encontros da Universidade,
nos sentamos debaixo de um velho carvalho, e ela me olhou
cheia de expectativa.
- Sobre o que vamos conversar? - perguntou.
- Sobre Lógica.
Ela pensou durante alguns segundos e depois sentenciou:
- Bacana!
- A Lógica - comecei, limpando a garganta - é
a ciência do pensamento. Se quisermos pensar corretamente,
é preciso antes saber identificar as falácias
mais comuns da Lógico. É o que vamos abordar
hoje.
- Bacana! - exclamou ela, batendo palmas de alegria.
Fiz uma careta, mas segui em frente, com coragem.
- Vamos primeiro examinar uma falácia chamada Dicto
Simpliciter.
- Vamos - animou-se ela, piscando os olhos com animação.
- Dicto Simpliciter quer dizer um argumento baseado numa generalização
não qualificada. Por exemplo: o exercício é
bom, portanto todos devem se exercitar.
- Eu estou de acordo - disse Polly, fervorosamente. - Quer
dizer, o exercício é maravilhoso. Isto é,
desenvolve o corpo e tudo.
- Polly - disse eu, com ternura - o argumento é uma
falácia. Dizer que o exercício é bom,
é uma generalização não qualificada.
Por exemplo: para quem sofre do coração, o exercício
é ruim. Muitas pessoas têm ordens de seus médicos
para não se exercitarem. É preciso qualificar
a generalização. Deve-se dizer: o exercício
é geralmente bom, ou é bom para a maioria das
pessoas. Senão, está-se cometendo um Dicto Simpliciter.
Você compreende?
- Não - confessou ela. - Mas isto é bacana.
Quero mais. Quero mais!
- Será melhor se você parar de puxar a manga
do meu casaco - disse eu e, quando ela parou, continuei: -
Em seguida, abordaremos uma falácia chamada de Generalização
Apressada - Ouça com atenção: você
não sabe falar francês, eu não sei falar
francês, Petey Bellows não sabe falar francês.
Devo portanto concluir que ninguém na Universidade
sabe falar francês.
- É mesmo? - espantou-se Polly. - Ninguém?
Reprimi a minha impaciência.
- É uma falácia, Polly. A generalização
é feita apressadamente. Não há exemplos
suficientes para justificar a conclusão.
- Você conhece outras falácias? - perguntou ela
animada. - Isto é até melhor do que dançar.
Esforcei-me por conter a onda de desespero que ameaçava
me invadir. Não estava conseguindo nada com aquela
moça, absolutamente nada. Mas não sou outra
coisa senão persistente. Continuei.
- A seguir, vem o Post Hoc. Ouça: Não levemos
Bill conosco ao piquenique. Toda vez que ele vai junto, começa
a chover.
- Eu conheço uma pessoa exatamente assim - exclamou
Polly. - Uma moça da minha cidade, Eula Becker. Nunca
falha. Toda vez que ela vai junto a um piquenique...
- Polly, - interrompi, com energia. - É uma falácia.
Não é Eula Becker que causa a chuva. Ela não
tem nada a ver com a chuva. Você estará incorrendo
em Post Hoc, se puser a culpa na Eula Becker.
- Nunca mais farei isso. - prometeu ela, contrita: - Você
está bravo comigo?
- Não, Polly - suspirei. - Não estou bravo.
- Então conta outra falácia.
- Muito bem. Vamos experimentar as Premissas contraditórias.
- Vamos - gorjeou ela piscando os olhos alegremente.
Franzi a testa, mas continuei.
- Aqui vai um exemplo de Premissas Contraditórias.
Se Deus pode fazer tudo, pode fazer uma pedra tão pesada
que Ele mesmo não conseguirá levantar?
- É claro - respondeu ela imediatamente.
- Mas se Ele pode fazer tudo, pode levantar a pedra.
- É mesmo - disse ela, pensativa. - Bem, então
acho que Ele não pode fazer a pedra.
- Mas Ele pode fazer tudo - lembrei.
Ela coçou sua cabeça linda e vazia.
- Estou confusa - admitiu.
- É claro que está. Quando as premissas de um
argumento se contradizem, não pode haver argumento.
Se existe uma força irresistível, não
pode existir um objeto irremovível. Compreendeu?
- Conte outra dessas histórias bacanas - disse Polly,
entusiasmada.
Consultei o relógio.
- Acho melhor pararmos por aqui. Levarei você para casa,
e lá pensará no que aprendeu hoje. Teremos outra
sessão amanhã de noite.
Depositei-a no dormitório das moças, onde ela
me assegurou que a noitada fora realmente bacana, e votei
desanimadamente para meu quarto. Petey roncava sobre sua cama,
com o casaco de pele de marmota encolhido a seus pés
como um enorme animal cabeludo. Por alguns segundos, brinquei
com a idéia de acordá-lo e dizer que podia ter
sua pequena de volta. Era evidente que meu projeto estava
condenado ao fracasso. A moça tinha, simplesmente,
uma cabeça à prova de Lógica.
Mas logo reconsiderei. Perdera uma noite, por que não
perder outra? Quem sabe se alguma parte daquela cratera de
vulcão adormecido que era a mente de Polly, algumas
brasas ainda estivessem vivas. Talvez, de alguma maneira,
eu ainda conseguisse abaná-la até que flamejassem.
As perspectivas não eram das mais animadoras, mas decidi
tentar outra vez. Sentado sob o carvalho, na noite seguinte,
disse:
- Nossa primeira falácia dessa noite se chama Ad Misericordiam.
Ela estremeceu de emoção.
- Ouça com atenção - comecei. - Um homem
vai pedir emprego. Quando o patrão pergunta quais as
suas qualificações, o homem responde que tem
uma mulher e seis filhos em casa, que a mulher é aleijada,
as crianças não têm o que comer, não
têm o que vestir nem o que calçar, a casa não
têm camas, não há carvão no porão
e o inverno se aproxima.
Uma lágrima desceu por cada uma das faces rosadas de
Polly.
- Isto é horrível, horrível. - soluçou.
- É horrível - concordei - mas não é
argumento. O homem não respondeu a pergunta do patrão
sobre suas qualificações. Em vez disso, tentou
despertar a sua compaixão. Cometeu a falácia
Ad Misericordiam. Compreendeu?
- Você tem um lenço? - pediu ela, entre soluços.
Dei-lhe o lenço e fiz o possível para não
gritar enquanto ela enxugava os olhos.
- A seguir - disse, controlando o tom de voz - discutiremos
a Falsa Analogia. Eis um exemplo: Deviam permitir aos estuantes
consultar seus livros durante os exames. Afinal, os cirurgiões
levam radiografias para se seguirem durante uma operação;
os advogados consultam seus papéis durante um julgamento;
os construtores têm plantas que os orientam na construção
de uma casa. Por quê, então, não deixar
que os alunos recorram a seus livros durante uma prova?
- Pois olhe - disse ela, entusiasmada - esta é a idéia
mais bacana que eu já ouvi há muito tempo.
- Polly - disse eu, com paciência. - O argumento é
falacioso. Os cirurgiões, os advogados e os construtores
não estão fazendo testes para ver o que aprenderam,
e os estudantes sim. As situações são
completamente diferentes e não se pode fazer analogia
entre elas.
- Continuo achando a idéia bacana - disse Polly.
- Bolas! - Murmurei. E prossegui, persistente. - A seguir,
tentaremos a Hipótese Contrária ao Fato.
- Essa parece boa. - Foi a reação de Polly.
- Ouça: Se Mme. Curie não deixasse, por acaso,
uma chama fotográfica numa gaveta junto com uma pitada
de pechblenda, nós hoje não saberíamos
da existência do rádio.
- É mesmo, é mesmo - concordou Polly, sacudindo
a cabeça. - Você viu o filme? Eu fiquei louca
pelo filme. Aquele Walter Pidgeon é tão bacana!
Ele me faz vibrar.
- Se conseguir esquecer o Sr. Pidgeon por alguns minutos -
disse eu, friamente - gostaria de lembrar que o que eu disse
é uma falácia.
Mme. Curie teria descoberto o rádio de alguma outra
maneira. Talvez outra pessoa o descobrisse. Muita coisa podia
acontecer. Não se pode partir de uma hipótese
que não é verdadeira e tirar dela qualquer conclusão
defensável.
- Eles deviam botar o Walter Pidgeon em mais filmes - disse
Polly. - Eu quase não vejo ele mesmo no cinema.
Mais uma tentativa, decidi. Mas só mais uma. Há
um limite ao que podemos suportar.
- A próxima falácia é chamada Envenenar
o Poço.
- Que bonitinho! - deliciou-se Polly.
- Dois homens vão começar um debate. O primeiros
e levanta e diz: "Meu oponente é um mentiroso
conhecido. Não é possível acreditar numa
só palavra do que ele disser." Agora, Polly, pense
bem. O que está errado?
Vi-a enrugar a sua testa cremosa, concentrando-se. De repente,
um brilho de inteligência - o primeiro que eu vira -
surgiu em seus olhos.
- Não é justo! - disse ela com indignação.
- Não é nada justo. Que chance tem o segundo
homem se o primeiro diz que é um mentiroso, antes mesmo
dele começar a falar.
- Exato! - gritei, exultante. - Cem por cento exato! Não
é justo.
- O primeiro homem envenenou o poço antes que os outros
pudessem beber dele. Atou as mãos do adversário
antes da luta começar... Polly, estou orgulhoso de
você.
- Ora - murmurou ela, ruborizando de prazer.
- Como vê, minha querida, não é tão
difícil. Só requer concentração.
É só pensar, examinar, avaliar. Venha, vamos
repassar tudo o que aprendemos até agora.
- Vamos lá - disse ela, com um abando destruído
na mão.
Animado pela descoberta de que Polly não era uma cretina
total, comecei uma longa e paciente revisão de tudo
o que dissera até ali. Sem parar, citei exemplos, apontei
falhas, martelei sem dar tréguas. Era como cavar um
túnel. A princípio, trabalho, suor e escuridão.
Não tinha idéia de quando veria a luz ou mesmo
se a veria. Mas insisti. Dei duro, cavouquei até com
as unhas, e finalmente fui recompensado. Descobri uma fresta
de luz. E a fresta foi se alargando até que o sol jorrou
para dentro do túnel, clareando tudo.
Levara cinco noites de trabalho forçado, mas valera
a pena. Eu transformei Polly em uma lógica, e a ensinara
a pensar. Minha tarefa chegara a bom termo. Fizera dela uma
mulher digna de mim. Estava apta a ser minha esposa, uma anfitrioa
perfeita para as minhas muitas mansões, ser a mãe
adequada para os meus filhos privilegiados.
Não se deve deduzir que eu não sentia amor pela
moça. Muito pelo contrário. Assim como Pigmalião
amara a mulher perfeita, que moldara para si, eu amava a minha.
Decidi comunicar-lhe os meus sentimentos no nosso encontro
seguinte. Chegara a hora de mudar nossas relações,
de acadêmicas para românticas.
- Polly - disse eu, - na próxima vez que nos sentarmos
sob o carvalho não falaremos de falácias.
- Puxa! Disse ela, desapontada.
- Minha querida - hoje é a sexta noite que estamos
juntos. Nos demos esplendidamente bem. Não há
dúvida de que formaremos um bom par.
- Generalização Apressada! - exclamou ela, alegremente.
- Perdão? - disse eu.
- Generalização Apressada - repetiu ela. - Como
é que você pode dizer que formamos um bom par
baseado em apenas cinco encontros?
Dei uma risada, divertido. Aquela criança adorável
aprendera bem suas lições.
- Minha querida - disse eu, dando um tapinha tolerante em
sua mão. - Cinco encontros são o bastante. Afinal,
não é preciso comer um bolo inteiro para saber
se ele é bom ou não.
- Falsa Analogia - disse Polly prontamente. - Eu não
sou um bolo, sou uma pessoa.
Dei outra risada, já não tão divertida.
A criança adorável talvez tivesse aprendido
sua lição bem demais. Resolvi mudar de tática.
Obviamente, o indicado era uma declaração de
amor simples, direta e convincente. Fiz uma pausa, enquanto
meu potente cérebro selecionava as palavras adequadas.
Depois comecei.
- Polly, eu a amo. Você é tudo no mundo para
mim. É a lua e as estrelas e as constelações
no firmamento. Por favor, minha querida, diga que será
minha namorada, senão minha vida não terá
mais sentido. Enfraquecerei, recusarei a comida, vagarei pelo
mundo aos tropeções, um fantasma de olhos vazios.
"Pronto", pensei, "está liquidado o
assunto".
- Ad Misericordiam - disse Polly.
Cerrei os dentes. Eu não era Pigmalião. Era
Frankestein, e meu suspiro me tinha pela garganta. Lutei desesperadamente
contra o pânico que ameaçava invadir-me. Era
preciso manter a calma a qualquer preço.
- Bem, Polly - disse, forçando um sorriso - não
há dúvida de que você aprendeu bem as
falácias.
- Aprendi mesmo - respondeu ela, inclinando a cabeça
com vigor.
- E quem foi que as ensinou a você, Polly?
- Foi você.
- Isso mesmo. E portanto você deve alguma coisa, não
é mesmo minha querida? Se não fosse por mim,
você nunca saberia o que é uma falácia.
- Hipótese Contrária ao Fato - disse ela sem
pestanejar.
Enxuguei o suor do rosto.
- Polly, - insisti, com voz rouca - você não
deve levar tudo ao pé da letra. Estas coisas só
têm valor acadêmico. Você sabe muito bem
que o que aprende na escola nada tem a ver com a vida.
- Dicto Simpliciter - brincou ela, sacudindo o dedo na minha
direção.
Demorei bastante. Levantei-me num salto, berrando como um
touro.
- Você vai ou não vai me namorar?
- Não vou - respondeu ela.
- Por que não? - exigi.
- Porque hoje à tarde prometi a Petey Bellows que seria
namorada dele.
Quase caí para trás, fulminado por aquela infâmia.
Depois de prometer, depois de fecharmos negócio, depois
de apertar minha mão!
- Aquele rato! - gritei chutando a grama. - Você não
pode sair com ele, Polly. É um mentiroso. Um traidor.
Um rato.
- Envenenar o Poço - disse Polly. - E pare de gritar.
Acho que gritar também deve ser uma falácia.
Com uma admirável força de vontade, modulei
minha voz.
- Muito bem - disse. - Você é uma lógica.
Vamos olhar as coisas logicamente. Como pode preferir Petey
Bellows? Olhe para mim: um aluno brilhante, um intelectual
formidável, um homem com o futuro assegurado. E veja
Petey: um maluco, um boa-vida, um sujeito que nunca saberá
se vai comer ou não no dia seguinte. Você pode
me dar uma única razão lógica para namorar
Petey Bellows?
- Posso, sim. - declarou Polly. - Ele tem um casaco de pele
de marmota.
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