O caderno perdido de Renato Russo

 
 
Numa tarde de janeiro de 1991, Renato Russo alugou uma suíte do Hotel Sheraton, um dos mais caros do Rio de Janeiro, com vista para o mar e a praia de Ipanema. Ele ainda morava com a família na suburbana Ilha do Governador e alugar um quarto de hotel era habitual quando queria ficar sozinho. Dinheiro não era problema para um grande astro como Renato Russo.
Ele pegou o telefone e ligou para o escritório de Luís Fernando Artigas, produtor dos primeiro shows da Legião Urbana e velho amigo dos tempos de Brasília. "Tô no Sheraton, vem pra cá", pediu.
Na suíte, Renato coordenava uma festa particular com muitos estimulantes, num estado de hiperatividade que Luís Fernando já conhecia. Renato não estava bem de cabeça e procurava fugir da depressão. Ele descobrira que era soropositivo.
Tarde e noite adentro Renato falou sem parar, de tudo: música, política, amor, família. E falou também de um certo caderno dele que teria ficado com Felipe Felipe Lemos, o Fê, baterista do Capital Inicial e também velho amigo de Brasília. Renato queria que Luís Fernando pedisse a Fê o caderno de volta.
Mas Luís Fernando não ligou para Fê Lemos. Na ressaca do dia seguinte, ainda abalado pelas outras coisas que ouvira do amigo, ele esqueceu o pedido de Renato. Fê só foi saber que Renato queria o caderno 2 anos depois, em São Paulo, por uma estranha coincidência.
"Foi uma situação esquisita", lembra Fê. "Dei carona pra um amigo de um amigo de um amigo que disse conhecer o Renato, com quem eu não falava há um tempo. Pra mim, ele tinha se tornado inacessível. Aí o cara disse, sem mais nem menos, que eu tava com um livro que era do Renato. Levei um susto. Pô, só podia ser o caderno do Aborto Elétrico!"
Fê foi procurar no fundo de um baú empoeirado que guarda recortes do início de sua carreira em Brasília e achou o caderno de letras compostas por Renato Russo para o Aborto Elétrico entre 1977 e 1981.
Três anos depois, Renato morreu sem ter visto novamente o caderno do Aborto Elétrico.
SUBINDO A COLINA
Brasília, meados de 1978, início do processo de abertura política que botou fim na ditadura militar. Aos 16 anos, Felipe Lemos, filho de um professor da Universidade de Brasília, voltara de uma estadia na Inglaterra com os pais para morar num conjunto de quatro prédios, com vista para o Lago Norte, apelidado de Colina. Os apartamentos eram espaçosos e serviam de residência para os professores.
Numa noite, uns amigos levaram Fê a uma festa onde a vitrola tocava músicas do Sex Pistols, Ramones e The Clash, as mesmas que Fê Lemos ouvia na Inglatera. Querendo saber quem era o dono dos disco, Fê foi apresentado a um sujeito estranho, que usava camisa social e andava segurando uma capanga numa mão e um guarda-chuva na outra. Era Renato Russo.
"Foi uma afinidade imediata por causa daqueles discos e ele passou a freqüentar minha casa todo dia", lembra Fê. Logo Renato estava enturmado na Colina, onde viria a se formar o núcleo da maioria das bandas de Brasília. No começo era apenas uma turminha de garotos que gostavam de punk rock e se reuniam para ouvir música, tomar porres de vinho Chapinha, fumar baseado e cheirar benzina de vez em quando.
Às vezes, o clima pesava, Renato e Fê, dopados e entediados, sentaram-se na escada de serviço de um dos prédios para conversar, Renato no degrau de cima e Fê no de baixo. De repente, sem avisos, Renato começou a fazer xixi nas calças. "Fiquei chocado. Provavelmente era o que ele queria. Levantei xingando e fui pra casa. Ele ficou lá todo molhado", conta Fê.
Nessa noite, como muitas outras, Renato voltou para casa a pé, uma caminhada de pelo menos duas horas na escuridão da madrugada.
Renato ainda não tinha 20 anos. Chocar as pessoas era uma de suas prioridades.
CLUBE DA CRIANÇA JUNKIE
Renato Russo respirava música. Seu quarto era um festival de colagens, mais de 500. Tinha tanta coisa para ver que quem entrava ali podia ficar horas de olhos grudados nas paredes. Havia também uma imensa coleção de discos e livros e um aparelho de som com quatro caixas, o melhor da cidade. Era nesse quarto que ele enfrentava o tédio das tardes de Brasília.
Renato era do tipo aglutinador. Ligava para todos da turma, marcava os encontros, tinha idéias para atividades em grupo e quando começava a falar era difícil pará-lo. Extremamente bem-informado, tinha uma cultura vasta e adorava planejar o futuro de sua própria vida. Tinha gente em Brasília que o achava chato. Pelo menos quando bebia demais e resolvia espalhar seu excesso de amor nos bares da cidade.
Ainda em 1978, Renato conheceu André Pretorius, qua andava na cidade vestido de punk e era filho de um diplomata da África do Sul. Pretorius e Fê haviam combinado montar uma banda com André Muller, qua estava morando na Inglaterra. Mas Renato precipitou os acontecimentos e convidou Fê e Pretorius para formar uma banda com ele no baixo. Fê na bateria e Pretorius na guitarra.
"A gente tava na Colina sentado no chão, pensando qual ia ser o nome da nossa banda. Eu tava com um negócio de elétrico na cabeça e alguém falou tijolo elétrico. Aí o André Pretorius falou: não. Aborto Elétrico", recorda Fê. Segundo ele, a versão de que o nome da banda é por causa do cacetete elétrico, usado pela polícia de Brasília em atos de repressão, não é verdadeira.
Renato escreveu "I want to be a junkie" na parede do quarto, apesar de nunca ter sequer visto as drogas realmente pesadas. E começou a compor o repertório do grupo. Estava formada a "mãe" de todas as bandas de Brasília.
PURO PAU PUNK
Os ensaios do Aborto Elétrico aconteciam na própria Colina e o primeiro show foi em 1980, no centro comercial Gilberto Salomão, num barzinho chamado Só Cana. Era um show instrumental, Renato não cantava. André Pretorius quebrou a palheta e cortou os dedos nas cordas, continuando a tocar enquanto o sangue escorria. Foi o primeiro e único show do Aborto Elétrico com Pretorius na guitarra. Ele foi para a África do Sul servir ao exército de lá, naquela época dramaticamente envolvido na manutenção do Apartheid.
Quem estava no Só Cana gostou. Nos colégios de Brasília começou a correr a notícia de que uns punks maconheiros tocavam uma música violenta. Os playboys da cidade não gostaram. Quando as turmas se encontravam, o pau comia.
Para Fê, "a gente tava fazendo algo com nossas vidas, mexendo no ambiente onde a gente vivia, e isso despertava curiosidade e inveja". Logo, outros garotos seguiriam os passos do Aborto Elétrico, formando bandas e detonando o fenômeno musical do rock de Brasília.
Anos mais tarde, em entrevista à Sonia Maia publicada na Bizz, Renato disse que o Aborto Elétrico acabou virtualmente quando "Petrorius foi a África do Sul matar negros".
Flávio Lemos, irmão de Fê, assumiu o baixo no Aborto Elétrico e Renato pegou a guitarra. Os ensaios aconteciam na nova cada de Fê e Flávio no Lago Norte também marca o começo do fim da turma da Colina, que passou a ter um novo ponto de encontro. Na nova casa de Fê, cercada por lindas árvores do cerrado, a turma fazia camisetas, cartazes e música no intervalo entre os baseados.
Renato sempre chegava com idéias das letras e os acordes na guitarra. "Ficava fácil, porque as idéias que ele trazia floresciam na banda", lembra Fê. "Ele era um puta baixista também". As músicas, raivosas e radicais, falavam muito em morte. Renato era um catalisador de sofrimentos na sua poesia, embora fosse doce e delicado no convívio diário.
Ainda em 1980, Pretorius voltou para umas férias em Brasília e participou dos ensaios cruciais para criação de "Música Urbana", "Que País é Esse?" , "Veraneio Vascaína", "Conexão Amazônica" e "Baader-Meinhof Blues", todas as músicas que teriam grande impacto na história do rock brasileiro.
Em 1985, André Pretorius morreu de overdose nos Estados Unidos.
ASCENSÃO E QUEDA
O auge do Aborto Elétrico aconteceu em 1981. Foram vários shows com outras novas bandas de Brasília, todas originárias de alguma forma da turma da Colina: Blitx, Plebe Rude, formada pelo André Muller, Fusão, 5a Coluna. No meio do ano, Ico Ouro Preto assumiu a guitarra do Aborto Elétrico e Renato passou a se ocupar apenas dos vocais.
O cantor, compositor e ex-guitarrista do Aborto Elétrico, Renato Russo, vivia falando de como seria sua carreira numa banda de rock.
O grupo estava em plena atividade nas festinhas, nos colégios e em festas de aniversário. Mas, para ele, era pouco.
Renato sonhava acordado. Fê Lemos não tinha tanta urgência em deixar a inocência do amadorismo. "Nas férias, eu ia pra praia e ele ficava em Brasília, numa ansiedade muito grande de ver alguma coisa acontecer. Eu era muito garotão, a fim de curtir, tocar numa banda. Renato tinha outros planos. Ele desenhou até a capa que nosso disco ia ter. Era um enforcado num bosque. Acho que essa diferença de atitude entre nós foi um dos motivos do fim do Aborto".
O fim do Aborto Elétrico aconteceu em Março de 1982. Renato disse que o grupo terminou numa briga por causa da música "Química", um dos primeiros clássicos da Legião Urbana. Segundo Renato, Fê lhe disse que "Química" era muito ruim e o acusou de ter perdido o jeito de fazer música. Renato respondeu que Fê só queria fica fazendo camiseta e pediu boné.
Fê Lemos concorda que foi esse o momento da ruptura, mas o clima entre os dois não estava muito bom havia algum tempo. "Achei 'Química' horrível. Não tinha nada a ver com que a gente fazia, com que a gente era. Pô, o Renato era ótimo em química, eu também. Achei que ele tava forçando a barra. Que bobagem minha! Hoje a música é um clássico."
Aconteceram outras brigas entre Fê e Renato. Uma delas foi no dia do primeiro aniversário da morte d John Lennon, um dos grandes ídolos do Renato. "Fomos fazer um show numa cidade satélite e o Renato tava super sentido. Eu fiquei com ciúme. Quando ele errou uma música, atirei uma baqueta nele e acertei na cabeça. Ele me olhou com uma cara horrível e sumiu depois do show. Aí saquei o que eu tinha feito. Fui na casa dele e só faltou me jogar aos seus pés. Era uma amizade muito forte, tinha um quê de mágica, porque nos conhecemos através dos discos de punk".
Renato Russo e Fê Lemos tinham 22 e 20 anos, respectivamente. Até aquele momento eram os principais líderes da turma de Brasília, os fundadores do Aborto Elétrico, a primeira banda punk da cidade, os aglutinadores do movimento. Mas o fim do Aborto Elétrico mudou destinos e separou os amigos em bandas diferentes. "Depois que a gente montou o Capital Inicial e o Renato formou a Legião Urbana, a coisa não era mais a mesma entre a gente. Acho que ele se sentiu traído. Ele esperava mais, até num sentido de amor, e eu não percebia isso. Ele guardava segredos que eu não conhecia, apesar de ter convivido com ele por cinco anos, unha e carne."
Mesmo sem Renato Russo, Fê tentou manter o Aborto Elétrico. Afinal, eles já tinham uma certa fama no circuito alternativo de Brasília. Como numa despedida oficial, Fê chamou Renato para uma última apresentação com o grupo. Renato foi e o Aborto Elétrico teve sua derradeira aparição. Seis meses depois Fê foi convidado para entrar no Capital Inicial. Flávio foi com ele.
Era 1982 e a semente lançada em Brasília pelo Aborto Elétrico havia gerado muitos frutos em forma de bandas de punk rock. Com o fim do Aborto Elétrico, Renato Russo intitulou-se O Trovador Solitário e, com um violão, tocava abrindo shows de outros grupos locais e apresentando novas composições, como "Faroeste Cabloco".
Mas Renato não queria seguir sozinho. Ele achava que era importante ter uma banda no mundo do rock. Nesse mesmo ano Renato formou a Legião Urbana.
Extraído da Bizz - Junho de 97

 

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